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O conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago

by Lucas Gomes

Publicado em 1998, o livro O conto da Ilha Desconhecida se assemelha às parábolas contadas por Jesus Cristo aos seus discípulos com o objetivo de lhes fazer pensar. Sentimo-nos discípulos ao lê-lo. Pode ser lido como a parábola do sonho realizado, isto é, como um canto de otimismo em que a vontade ou a obstinação fazem a fantasia ancorar em porto seguro. É um livro que nos leva a “navegar” para além do real, de uma forma simplista e conseguida. Antes, entretanto, ela é submetida a uma série de embates com o status quo, com o estado consolidado das coisas, como se da resistência às adversidades viesse o mérito e do mérito nascesse o direito à concretização. Entre desejar um barco e tê-lo pronto para partir, o viajante vai de certo modo alterando a idéia que faz de uma ilha desconhecida e de como alcançá-la, e essa flexibilidade com certeza o torna mais apto a obter o que sonhou.Saramago nos conta a busca de uma ilha que não consta em nenhum mapa. Uma fábula simples, nas mãos de um escritor como o português José Saramago, pode se transformar numa pequena obra-prima. É o que acontece com O conto da ilha desconhecida.

A busca do autor, que é universal, inicia-se na direção a que o ser humano se sente impelido, mesmo ciente de que talvez não chegue ao fim.

O homem (escrito com h minúsculo) pede ao rei (escrito com r minúsculo) um barco. O rei pergunta-lhe para que fim. O homem esclarece que almeja sair para buscar e encontrar a ilha desconhecida, a qual os geógrafos já haviam adiantado, não mais existe, pois todas as ilhas desconhecidas já foram buscadas e encontradas e assim já se tornaram conhecidas. O homem argumenta que assim são todas as ilhas até que alguém desembarque nelas.

Seu sonho, no entanto, parece cada vez mais distante. Os geógrafos do rei tentam dissuadi-lo, pois já não existem ilhas por conhecer; os marinheiros recusam-se a embarcar na aventura, o mar parece tenebroso.

Com insistência e ousadia consegue convencer o monarca a satisfazer seu desejo, embora parecesse uma insensatez, uma vez que havia pedido o barco para buscar uma ilha que ninguém conhecia, nem ele mesmo.

O homem estava determinado e conquistou a simpatia da mulher da limpeza do Castelo, que decidiu abandonar a vida enfadonha que levava para segui-lo. De posse do barco e em companhia da mulher da limpeza do palácio, o homem se depara com a dura realidade: ninguém mais quer acompanhá-lo na jornada estapafúrdia; nenhum marujo o leva a sério e tudo parece perdido.

Mesmo assim o homem, com o apoio da mulher, empenha-se em sua “busca”.

Questionamentos afloram:

– o que buscamos durante a vida inteira, nós, os seres humanos: a verdade, a felicidade, a segurança, ou buscamos o que não conhecemos pela simples razão de precisarmos fazê-lo?

– por quê sempre buscamos, em um movimento dialético, a maioria das vezes sem entender bem o quê?

A busca faz parte de nossa condição humana. E o personagem de Saramago insiste em seu intento e encontra o que procura.

Qual o propósito da busca daquele humilde súdito? Que ilha desconhecida é essa? Partindo do lugar-comum filósofico de que “todo homem é uma ilha”, o personagem do conto quer descobrir a si mesmo, o sentido de sua existência. A ilha desconhecida é uma metáfora da consciência, daquilo que costumamos chamar de “o mundo interior”. Seu projeto de “buscar a si mesmo” na imagem poética de uma ilha misteriosa, como são misteriosos os sonhos humanos, reflete um anseio que é universal e que nos move desde os tempos mais remotos. Cada aventureiro, ou viajante, que desbravou novas terras estava tomado por essa estranha obsessão: transcender-se, superar-se, ir onde nenhum outro jamais esteve, descobrir algo fora de si que traga a compreensão de verdades mais profundas, escondidas na alma (como uma ilha).

É importante destacar, aqui, a exemplo de outras obras de Saramago, o tratamento dado à personagem feminina, no papel de força mediadora e profícua na realização significativa do processo de busca do autoconhecimento da personagem masculina, questionando e promovendo a reflexão sobre essa busca que é impossível de ser realizada isoladamente, mas requer uma disposição de viver junto, de pensar uma nova condição humana, envolta em princípios que caracterizam um novo ser: como a solidariedade, a confiança nos homens e o fazer constante para a transformação do individual para o coletivo, fundado numa ética humanista, que valoriza o estudo das relações do Eu em conformidade e ligação com os seus semelhantes, pois apenas dessa forma o homem pode realizar-se e ser feliz. Contrariando, assim, a ótica da modernidade, onde ser-mais é ter mais, é ocupar o primeiro lugar, é usufruir do poder e do outro, manipulando-o, numa cegueira que impossibilita ver no outro a si mesmo. Em O Conto da Ilha Desconhecida, a dificuldade de visualizar e amar o invisível, de construir o novo a partir do lugar onde nos encontramos, concepção utópica de vida, que incita as ações humanas e impede a estagnação da história, nos impulsionando a mantermos a esperança, é metaforizada no fato de mais ninguém, além da mulher da limpeza, ter concordado em fazer parte da tripulação na busca da ilha desconhecida. É cômodo viver o conhecido, o novo é assustador, é preciso ousadia para encarar o desconhecido, que às vezes somos nós mesmos, quando deixamos emergir nossos demônios, nosso lado demens que nos impulsiona a permitir o aflorar do nosso interior.

Os personagens do conto não têm nomes definidos, apenas as profissões aparecem para marcar suas posições interpretativas na narrativa. Talvez a iniciativa de recorrer às funções dos personagens, transpareça no enredo como uma articulação estilística necessária ao retratar a sociedade da época. Ou seja, Saramago marca a posição hierárquica dos personagens enfatizando suas funções. Chama-nos atenção para uma ordem social necessária a qualquer sociedade que resulta de uma complexidade de relações que asseguram um sistema marcado pelas desigualdades.

Não há tempo determinado para encontrar o lugar desejado, assim como nós precisamos muitas vezes, sem o respeito à determinação de um tempo em específico, sair de nós mesmos para encontrar o tão almejado. O lançar-se no mar para navegar é o avançar para um objeto de desejo e realização, às vezes próximo, contudo, não enxergado, não percebido pela nossa própria incapacidade pessoal de objetividade e percepção do desconhecido. O texto traduz-se num paradoxo estranho. Nós, em alguns momentos de nossas vidas, queremos estar longe de nós mesmos para, então, enxergarmos melhor nossa natureza.

A mulher da limpeza é o único personagem que decide espontaneamente abandonar a vida enfadonha que levava para seguir o homem do povo. Troca sua rotina por uma viagem poética em busca de seus sonhos. A obsessão do homem em descobrir algo fora de si que traga verdades mais profundas contagia de forma simplista a sensatez da sensibilidade feminina.

Ocupado como sempre estava com os obséquios, o rei demorava a resposta, e já não era pequeno sinal de atenção ao bem estar e felicidade do seu povo quando resolvia pedir um parecer fundamentado por escrito ao primeiro-secretário, o qual, escusado seria dizer, passava a encomenda ao segundo-secretário, este ao terceiro, sucessivamente, até chegar outra vez à mulher da limpeza, que despachava sim ou não conforme estivesse de maré.

Saramago, de maneira engenhosa, mostra a figura do monarca como emblemática. Os obséquios eram bem vindos, enquanto as petições não eram resolvidas, eram sim postergadas e posteriormente decididas, a depender do estado de espírito da mulher da limpeza. A burocracia nos serviços sublinha um governo distante de seu maior objetivo, promover o bem estar do povo. O repúdio do rei salta aos olhos quando evita aproximar-se do homem. Uma realidade próxima do absolutismo monarca. O rei teme ao homem, ao que possivelmente ouviria como crítica, por isso, barra seu contato com a voz do povo, como um instrumento que poderia proporcionar transformação social, ainda que veiculado primeiro ao plano pessoal e posteriormente com uma inclinação perceptível ao coletivo.

A narrativa de Saramago está sempre em busca de uma conscientização do leitor. Como intelectual engajado nos problemas e tensões políticas de Portugal, ele conduz a problemática de uma historicidade local, em seus movimentos e contingências, investigando e recriando situações que questionam as ansiedades e esperanças humanas.

Quero falar ao rei, Já sabes que o rei não pode vir, está na porta dos obséquios, respondeu a mulher, Pois então vai lá dizer-lhe que não saio daqui até que ele venha, pessoalmente, saber o que quero, rematou o homem, e deitou-se ao comprido no limiar, tampando-se com a manta por causa do frio.

Como já citado, não importa o “status quo” do sujeito, sua procedência, sua identidade. A postura do homem demasiadamente lúcido de se plantar na porta do rei é uma forma de dizer “não” à infelicidade determinada e de dizer “sim” à transcendência do sujeito transformado continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpolados nos sistemas culturais que nos rodeiam.

Quanto à narração, esta é sempre em primeira pessoa.

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