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O Lustre, de Clarice Lispector

by Lucas Gomes

O
Lustre

, segundo romance de Clarice Lispector, é penetrante. É
a vida interior de Virgínia, a personagem principal, que tem sua história narrada
desde a infância e também aparece sob o signo do mal, tal como Joana, personagem
do primeiro romance. É uma obra em que a ação, personagens,
diálogos estão marcados por aquela às vezes angustiante interiorização, a percepção
de sentimentos cruéis, de desejos delicados, de medos impensáveis, de intimidades
inconfessáveis, de ódios e amores entrelaçados, de paciências, de inocências,
de culpas, de pudores, de euforias, de tristezas, de compaixões, todo um mundo
muito mais do que feminino – um mundo em que praticamente só a alma tem a palavra.
 

É um
“romance” em que a ação, personagens, diálogos estão marcados por
aquela às vezes angustiante interiorização, a percepção de sentimentos cruéis,
de desejos delicados, de medos impensáveis, de intimidades inconfessáveis, de
ódios e amores entrelaçados, de paciências, de inocências, de culpas, de pudores,
de euforias, de tristezas, de compaixões, todo um mundo muito mais do que feminino
– um mundo em que praticamente só a alma tem a palavra.

É uma obra de muitos
símbolos, muitas mensagens: há um chapéu de um afogado, no começo, que reaparecerá
no final do livro, e há um lustre, de um casarão, onde Virgínia e o irmão Daniel
passaram a infância e que é sempre um ponto de convergência do seu passado e
de sua volta. Quando o personagem deixa a Granja Quieta, e que lembra Virgínia
no trem é o fato de ter saído do casarão e não ter olhado o velho lustre.

Para alguns críticos,
o lustre representa a procura da Luz pelo personagem, já que a sua vida interior
sempre fora triste e vivida em função da morte. Virgínia lembra no trem: Que
pena, disse surpreendida. Que pena, repetiu-se com arrependimento. O lustre…
Olhava pela janela e no vidro descido e escuro via em mistura com o reflexo
dos bancos e das pessoas o lustre. Sorriu contrita e tímida. O lustre implume.
Como um grande e trêmulo cálice d’água. Prendendo em si a luminosa transparência
alucinada o lustre pela primeira vez todo acesso na sua pálida e frígida orgia
– imóvel na noite que corria com o trem atrás do vidro. O lustre. O lustre.

Todo o romance é elaborado
nesse tom, um tom nostálgico, de balada sofrida e cheia de reminiscências. Não
tem capítulos, é um fluir constante do pensamento de Virgínia, através de uma
terceira pessoa narrativa, que assume, sob o ponto de vista da técnica literária,
a própria condição do personagem. Do isolamento na Granja onde vivia, Virgínia
passa ao isolamento na cidade grande. Não se adapta. Tenta a volta, mas tudo
lá no interior já está mudado, só o passado de antiga grandeza do casarão da
família ainda lhe manda um apelo de nostalgia, os poucos móveis que escaparam
à falência, os muitos quartos vazios, a escadaria de tapete de veludo púrpura,
a enorme sala de jantar, os cristais, os frisos, o lustre. Virgínia não encontra
mais o que tinha vivido, a infância perdida, o passado morto.

Embora com a visão longínqua
da luz do antigo lustre, Virgínia vive sempre mergulhada na sombra, como se
esperasse a morte a qualquer momento. A cidade não lhe faz bem, muito menos
um amante que arranja, tampouco a convivência com o irmão Daniel, e morrerá
um dia solitária na rua atropelada por um carro, reconhecida por aquele chapéu
marrom do começo do romance, um chapéu simbólico de um suposto afogado.

Este é, em síntese, o
tema e o não-enredo do romance, uma incursão bela e sensível pela linguagem
literária, que tocará o mais frio dos leitores.

Em
O Lustre, de 1946, Virgínia mantém um relacionamento incestuoso com o
irmão, Daniel, com quem faz reuniões secretas em que experimentam verdades,
na condição de iniciados especiais. Os protagonistas Virgínia e Daniel fazem experiência com o mal, ora como agentes
(beneficiários), ora como vítimas. Nas brincadeiras de infância entre os dois
irmãos, o menino exercita sua maldade com jogos perversos que denunciam o abuso
do poder de que se sabe possuidor. Virgínia é o instrumento de obtenção daquele
prazer que no romance anterior parecia poder levar ao êxtase a jovem Joana:
a fascinação pelo mal, o prazer advindo da percepção – e, neste caso, do uso
– da inerente maldade humana. Para o menino, o mal metamorfoseia-se em perversidade,
exige relação, necessita de um outro para se completar: pratica o mal pelo mal,
convertendo-se o meio em fim.

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