Home EstudosLivros O ovo e a galinha (Conto das obras Felicidade clandestina e A legião estrangeira), de Clarice Lispector

O ovo e a galinha (Conto das obras Felicidade clandestina e A legião estrangeira), de Clarice Lispector

by Lucas Gomes

O conto “O ovo e a Galinha” se parece mais com uma dissertação sobre o mistério
do ovo. Mas sendo algo entre a crônica e o conto ou um simples texto sem
classificação, pouco tem daquela organização que encontramos no poema “O Ovo da
Galinha”, de João Cabral de Melo Neto.

“O ovo e a galinha” começa com uma frase em que se identifica o tempo, o espaço
e o narrador da história: “De manhã na cozinha sobre a mesa vejo um ovo”.

Em seguida todos esses referenciais começam a ser desmantelados: “Imediatamente
percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver um ovo nunca se mantém no presente:
mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios?”

O assunto inicial, o ovo, vai desdobrando-se e multiplicando-se com o desenrolar
do texto. Definido como “tratado poético sobre o olhar”, pelo crítico José Miguel
Wisnik, ou como “meditação”, por Benedito Nunes, “O ovo e a galinha” é um texto
que alarga os limites da obra literária e, embora apresente os elementos básicos
de uma narrativa, faz pensar sobre o que é preciso exatamente para contar uma
história, coisa que de fato não ocorre em seu caso.

O ovo, tema do conto, parece também um subterfúgio. Às vezes parece ser a representação
da vida, outras da liberdade, ou a verdade, ou a opressão, ou algo para desviar
a atenção da essência, ou a própria essência. Após muitas considerações, algumas
lógicas outras alucinantes e subjetivas, sobre o ovo, a narradora passa a dizer
de um “eles” indeterminado, que manipula, que permite, que sugere, que instrui,
que obriga, mas que não consegue eliminar totalmente a vontade e a consciência.

A palavra, no conto, funciona como disfarce da realidade. Muitas e controvertidas
palavras geram contradições que escondem a verdade.

Este texto reforça uma das características nas obras de Clarice Lispector que é a
analise introspectiva, ou seja, é uma narrativa baseada na memória, na emoção, isto
é, no fluxo da consciência do narrador. Como já citado, esta narrativa rompe com a
linearidade, não fica clara a estrutura de início, meio, fim.

Com a frase inicial da narrativa, “de manhã, na cozinha, sobre a mesa vejo um ovo”,
Clarice faz uma relação com o início do dia e o início da vida. O ovo representa o
narrador, o presente, o passado e o futuro. Isto é o tempo percorrido, isto é o
ciclo da vida.

“Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo”. Nesta análise
o narrador compara o ovo com o infinito, sem começo, nem fim.

No próximo parágrafo veremos que Clarice diz que ver o ovo é impossível, somente
a máquina vê o ovo. O cão não vê o ovo. O amor pelo ovo também não se sente. Mas
é super sensível. A gente não sabe que ama o ovo, mas já fui depositária do ovo;
quando morri tiraram o ovo de mim e só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo
o ovo é obvio. No próximo parágrafo Clarice fala em entendimento.

Diz: “ao ovo dedico a nação chinesa (fazendo uma referência à superpopulação)”.
Depois diz que “o ovo é uma coisa suspensa (como o mundo); olho o ovo para não
quebrá-lo. Tomo cuidado de não entendê-lo. Entendê-lo não é modo de vê-lo. O que
não sei do ovo é que é realmente imortal. A lua é habitada por ovos. O que é ovo?
É uma exteriorização. É dar-se; quem vê mais do que a superfície esta com fome. O
ovo é a alma da galinha. Ovo um projétil parado. Ovo é ovo no espaço. O ovo me vê.
Eu te amo. Ovo. A aura dos meus dedos é que vê o ovo. Mas dedicar-me à visão do
ovo seria morrer para a vida mundana. Eu preciso da clara e da gema (referência feita
ao senhor Deus – “clara a gema” referência feita à ciência e a religião). O ovo é
um dom. O ovo é invisível a olho nu. O ovo terá sido talvez um triângulo que tanto
rolou no espaço que foi se ovulando (triângulo = trindade, ovulando = eterno, infinito).
O ovo é originário na Macedônia (Jesus Cristo andou pela Macedônia), o homem o desenhou
na areia e depois o apagou com pé nu.

Clarice continua dizendo que o ovo é coisa de se tomar cuidado. O ovo vive sempre
foragido. Por estar sempre adiantado demais para a sua época. O ovo é branco, mas
não pode se chamado Dr. Branco. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era.
E foi chamado de “aquele homem” (referência feita a Jesus).

O ovo ganha um sobrenome: ovo de galinha. Nesse parágrafo Clarice nos apresenta o
perigo que o ovo representa.

“Perigo que ele se descubra, se descobrirem poderiam obrigá-lo a se tornar
retangular. Mas não pode. Sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se
erradia como um não querer. O ovo nos põem em perigo. Nossa vantagem é que ele é
invisível.
O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz da galinha. O ovo é a cruz
que a Galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da Galinha. A galinha
ama ovo (galinha = humanidade = ovo = Deus). Ela não sabe que existe o ovo se
soubesse que existia em si mesma ela se salvaria (humanidade e Deus)? O
desarvoramento da galinha vem disso; gostar não fazia parte de nascer. Gostar de
estar vivo dói. Quanto veio antes. Foi o ovo que achou a galinha, a galinha não
foi sequer chamada. A galinha é diretamente escolhida. A galinha vive como um sonho.
Não tem senso de realidade. O mal desconhecido da galinha é o ovo. A galinha tem
muita vida interior. A galinha olha o horizonte. Como se da linha do horizonte viesse
vindo um ovo. Como a galinha poderia se entender se ela é o oposto do ovo. A
contradição do ovo?
Dentro de si a galinha não reconhece o ovo. Fora de si também não. De repente olho
o ovo na cozinha e penso em comida. Está se fazendo a metamorfose em mim. Fora do
ovo que se come, o ovo não existe.”

Neste parágrafo Clarice volta a falar da galinha: sua felicidade, suas perdas e
seus ganhos. Suas penas para amenizar, suavizar a travessia ao carregar o ovo.
Seu prazer. Mas continua não entendendo o ovo. E Clarice muda o discurso. Deixa
de falar do ovo e da galinha para começar a falar de agentes.

Nos agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, mas às
vezes nos reconhecemos e a isso chamamos amor. Então não é necessário o disfarce:
embora não se fale. Também não se mente, embora não se diga a verdade, também não
e necessário dissimular. E o texto continua, nesse parágrafo falando do amor, da
vaidade, desilusão. Do amor que enriquece, faz referência à inveja, ao prazer como
uma doação recebida sem orgulho.

O parágrafo termina dizendo que nos foi imposta uma natureza toda adequada ao
prazer que facilita, torna menos penoso o prazer.

No parágrafo que segue o texto fala dos agentes que se frustrados se suicidam, de
outros que deixam de viver por motivos diversos. Até o fim o parágrafo faz menção
à existência, à vida em si. Traz o problema da galinha para a existência humana
que o texto chama de agentes. Fala em morte, ingenuidade, tolice, lealdade, são
agentes presentes na natureza humana, que o agente não vê, não conhece assim como
a galinha não vê, e não conhece o ovo, mas que carrega dentro dela com dificuldades.
O parágrafo se completa da seguinte forma. Para os que sucumbem e se tornam
individuais é que existem as instituições, a caridade, a compreensão que não
discrimina motivos a nossa vida enfim.

Nos últimos parágrafos o narrador volta à realidade. Como começou a narrativa ele
a termina. O ovo que estava sobre a mesa e que provocou toda essa reflexão, estava
agora na frigideira pronto para ser comido pelas crianças que saiam de todos os
lados. “Viver é eternamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir. Viver é
fazer, é fazer rir dos mistérios, o meu mistério é de eu ser apenas um meio, e não
um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades.”

O texto continua dissertando sobre a vida cotidiana, dos trabalhos, das liberdades,
da corrupção. E também o tempo que me deram e que nos dão apenas para que no ócio
honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores
ilícitas, inteiramente esquecidas do ovo (ovo-vida).

Neste parágrafo estão registradas as reclamações de alguém que representa toda a
humanidade, e diz: “ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça. Exatamente
para que o ovo se cumpra? Liberdade ou estou sendo mandada? Minha revolta é que
para eles eu não sou nada, sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dão ando
ultimamente bebendo. Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu. Ou sou
agente ou traição mesmo.”

O texto termina com a resignação do narrador. Aceita tudo que lhe é cobrado. Dorme
o sono dos justos por saber que sua vida fútil não atrapalha a marcha dos tempos
ela sabe que a querem ocupada e distraída. Lamentação continua: “eles me querem
como instrumentos do trabalho deles, de qualquer modo era só instrumento que eu
poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu.”
O texto termina como
começou, com o ovo:

“por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu interesseiro esquecimento. Pois o
ovo é um equívoco.

Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar.
Mas se ele for esquecido. Mas se eu fizer apenas o sacrifício de viver apenas a
minha vida e de esquecê-lo. Se o ovo for impossível.
Então, livre, delicado, sem mensagem alguma para mim talvez uma vez ainda ele se
locomova do espaço até essa janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada
baixe do nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminado-a de minha palidez.”

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