Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,
alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,
em que todos se debruçavam
na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.
Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes
e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.
Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava
que rebentava daquelas páginas.
Neste poema Drummond enaltece o soluço de vida que destila um simples
retrato.
O passado configurado no álbum de fotografias dos antepassados. Embora,
inicialmente, as pessoas do presente zombem dos mortos, nos últimos versos
a ironia dá lugar ao intenso sentimento. Esse poema é uma antecipação da
poesia que vai falar da família e da memória. Não há como se desfazer do
passado, da memória, mesmo que as fotos se acabem um dia. As lembranças boas
e belas que nos acontecem ficam.
O poema “Os mortos de sobrecasaca” estabelece uma tensão entre o estado de fixidez
inerente à natureza do objeto fotografado e o movimento sugestivo e peculiar fornecido
pela figura do verme que desliza sua concretude formal sobre a imagem química
desbotada pelo tempo. O tom de sépia descrito pelo espectador no poema, metáfora
recorrente para representar os estragos do tempo no papel “perecível” que registra
a “eternidade” do estado de fixidez, sublinha a idéia de que a fotografia, neste
caso conseqüência do rito familiar, fornece a possibilidade de realização de experiências
óticas. Ou seja, o envelhecimento progressivo do papel de registro (primeira sugestão
de movimento através do tempo) se rebela contra o estado já envelhecido e estático
dos personagens da fotografia (natural e já registrado / congelado no momento
do ato).