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Tropas e boiadas, de Hugo de Carvalho Ramos

by Lucas Gomes

Tropas e boiadas

, de Hugo de Carvalho Ramos, foi publicado pela primeira
vez em 1917. A obra apresenta o universo sertanejo a partir da narrativa regionalista
descrevendo de maneira poética a realidade do homem goiano, suas tradições,
seus costumes, seu imaginário popular, ao mesmo tempo questionando as
condições de vida dos personagens. A construção
dos textos de Hugo de Carvalho Ramos privilegia a temática do mundo rural,
sendo a ruralidade constitutiva de seus personagens. Pela boca dos tropeiros
e dos tangerinos desfila o linguajar da região central do Brasil, carregado
das nuances formatórias daquela população. Os termos são
arcaicos para o início de século passado tendo em vista que o
livro foi escrito no início do século XX, já resgatando
termos prestes a saírem do uso cotidiano da época.

A obra é tida como a primeira formadora de uma tradição
literária goiana, ainda no período do Pré-Modernismo. O
livro, que mistura contos e crônicas, contribuiu para os fundamentos do
regionalismo literário. O professor Heleno de Godoy, da Faculdade de
Letras da Universidade Federal de Goiás, ressalta que Tropas e Boiadas
é a única obra goiana que é referência em todos os
livros de literatura brasileira. Sem esse livro, não existiria a tradição
literária capaz de insuflar o surgimento da obra de Bernardo Elis e do
mineiro Guimarães Rosa.

Os contos de Tropas e Boiadas retratam de forma intrínseca
a vida social goiana e a natureza, recriando uma realidade verossímil,
perfeita, reconhecível, mas estilizada. Com uma linguagem voltada para
o conteúdo, arraigada de ideologia e crítica social. Há
um trabalho com as palavras, o que faz com que a crueldade dos acontecimentos
fira, choque e, às vezes, estarreça, o que acarreta um desvelamento
da realidade. Desta forma, as narrativas curtas de Hugo de Carvalho Ramos centram-se
no Regionalismo.

Os antigos bandeirantes e entradistas são agora tropeiros e tangerinos
que no seu vai-e-vem pontilham as ribeiras de cidades, vilas, povoados, aldeias
e arruados. Em cada parada para descanso de tropas e boiadas fica a semente
da presença humana.

A obra procura colocar no mapa do Brasil uma região ainda inóspita,
pouco povoada e marcada por distâncias e melancolias. Essa inscrição
do espaço em nosso contexto se faz pela linguagem. O linguajar regional
não é apenas a matéria-prima, ela é trabalhada com
sonorizações locais que instauram no texto, a musicalidade e o
ritmo das tropas nos caminhos. É como se o autor tivesse escrito seus
contos montado numa “mula ruana estradeira”, acompanhando uma tropa
pelos perdidos caminhos do Planalto Central. São cavalos, pungas, pingos,
sendeiros e pilecas. São pangarés, poldros picaços, pampas-campeadores,
mulas rosilhas, mulas ruanas, baios, rosilhos, piquiras cabanos etc. Todos são
personagens tão importantes que há momentos em que homem e animal
se nivelam em importância no contexto. É por isso que uma mula
“madrinha” que corresponde ao nosso nordestino burro da guia ou
ao boi da guia, chega a ser mais destacada como personagem do que certos tropeiros,
criaturas que passam pelas narrativas quase que despercebidas.

Tropas e boiadas é documental para estudos antropológicos
de uma região do Brasil que começou a florescer para a modernidade,
apenas com a transferência para a região, do poder político
nacional, nos anos sessenta do século XX. Hugo de Carvalho Ramos retorna
às suas raízes e faz do texto seu teto de melancolia, onde a lua
e a noite cinza estão sempre presentes. É também um saudosista.

Com relação às intertextualidades que se apresentam, podemos
destacar a tradição oral da região, a presença do
folclore, com o moleque Saci aparecendo vez por outra, e o aparecimento de Genoveva
de Brabant, que tanto influenciou Proust, a História de Carlos Magno
e os Doze Pares de França, comparecendo também José
de Alencar. Há ainda a influência que a leitura de Os Sertões
provocou em Hugo de Carvalho Ramos. Todas essas influências no entanto
não descoram o estilo próprio do autor nem modificam o poder evocativo
de uma realidade para o qual até então só ele despertou.

Para compor essa evocação, o autor traz para o texto inúmeros
componentes antropológicos da região onde se formou. A fauna surge
nos guinchos das cauãs, no martinho-pescador, no ouriço-cocheiro,
capivaras, antas, veados, queixadas, cascavéis, cavalos, guaxos, joões-conguinhos,
bois, borrachudos, miruins, pombas-rola, pássaros-pretos, caburés,
noitibós, garças-reais, urutus, galinhas, gaviões, tiús,
porcos, piaus, curimatãs, perdizes, cachorros, papagaios, abelhas, preás,
cigarras, muriçocas, pernilongos, mutucas, tatus e pebas. Compondo a
flora aparecem: limeiras-de-umbigo, assa-peixe, juá-bravo, gravatá,
tiririca, mangueira, embaúba, goivos, miosótis, jacintos, manjericões,
boninas, jequitibás, fedegoso, sucupira, ingazeira, samambaias, matapasto,
catingueiro, fruteiras-de-lobo, pequizeiros, goiabeiras, araticum, macaubeiras,
aroeiras e murici.

Há além disso há uma preocupação ecológica
do autor, que já por aquele tempo se voltou contra as queimadas, maiores
responsáveis pela devastação daquele eco-sistema. Primeiro
ele afirma: “Pelos dias de agosto, todo o horizonte goiano é
um vasto mar de chamas: fogo, queimadas que ardem, alastrando-se pelas gerais
dos tabuleiros e chapadões a afugentar a fauna alada daqueles campos
”.
Em seguida, o autor cita o cinzeiro em que se tornam os ninhos do sabiá
nativo, das colméias da mandaçaia, das guaribas, dos caxinguelês,
dos jatobás, das aroeiras e das barrigudas. Nessa mistura entre animais
e árvores ele mostra a completa devastação do meio ambiente,
e aponta quem é o responsável por tudo isso. “A miséria
do solo resulta antes da incúria do homem, que atira fogo às derrubadas
para a fertilidade da lavoura e destas, quase sempre, transpõe as divisas
da roça e vai floresta adentro avançando a sua obra de assolação
”.

A construção dos contos em Tropas e Boiadas delineia
o universo rural apresentando riqueza de detalhes, sem descurar dos elementos
materiais e simbólicos componentes dos enredos narrados. E nesse alinhave
de aspectos físicos e culturais, o autor traça a tipificação
do sertanejo goiano, em contraposição a um perfil estereotipado
acerca do camponês. Mais do que mera descrição de paisagens
e tipos, o autor ajuda a formar uma representação dos habitantes
e trabalhadores do sertão goiano que expressa seus valores, sua cultura,
seus dramas e seu modo de viver.

Resumo do conto “Ninho de periquitos”

O conto fala de Domingos, um homem da terra, que dela tira tudo o que precisa.
No dia do aniversário de seu filho Janjão, vai lhe buscar como
presente, filhotes de periquitos, que estão em um ninho localizado dentro
de um cupim abandonado. Ao enfiar a mão no buraco que dá acesso
ao ninho, é picado por uma cobra que possui veneno letal. Domingos, antes
que o veneno se espalhe pelo seu corpo, decepa a própria mão com
um golpe de foice.

É um conto regionalista, onde estão presentes os costumes de
uma época e lugar. Os indícios do tema “natureza”
já são percebidos no título: “Ninho de Periquitos”.
Periquito é uma ave típica do cerrado, que faz seus ninhos em
buracos de árvores, e em outras cavidades abandonadas encontradas no
cerrado. Faz ainda parte da cultura de alguns grupos sertanejos capturar seus
filhotes utilizá-los como animais de estimação.

A narrativa segue do começo ao fim enumerando e descrevendo aspectos
da vida de um sertanejo. Os fatos se iniciam já no virar da tarde de
um domingo quente de verão, no qual Domingos após se alimentar
de uma “cuia de jacuba de farinha de milho e rapadura” e se entreter
dando “uns respondos na viola” em sua “rede de embira”
se levanta e vai afiar sua foice em uma pedra. Podemos perceber que nesta série
de elementos que compõem a cena descrita, apenas dois não são
extraídos diretamente da natureza: a viola e a foice. Ele retira dela
seu alimento: a farinha de mandioca e a rapadura, sua rede de embira (uma fibra
retirada de folhas de plantas como a bananeira e a palma) , e ainda a pedra
que afia a foice. Isso nos mostra a relação de dependência
que tem Domingos com relação à natureza. Dependência
esta, que é reforçada no decorrer da narrativa: “[…] véspera da colheita. O milharal estendia-se além, na baixada das
velhas terras devolutas, amarelecido já pela quebra, que realizara dias
antes.
” ; “Enquanto amolava o ferro, no propósito
de ir picar uns galhos de coivara no fundo do plantio para o fogo da cozinha.
”;
andou lá pelos fundos da roça, a colher uns pepinos
temporões.
”; “as alpercatas de couro crú”.
Observe nos trechos selecionados que Domingos retira da natureza praticamente
tudo o que precisa para sobreviver.

Os fatores climáticos também estão em comunhão
com as necessidades do sertanejo: “o veranico que andava duro na quinzena”.
Os sertanejos denominam de “veranico” período de sol em tempo
de chuva, em Goiás especificamente há o que chamam de veranico
de janeiro. Quinze dias de sol em pleno verão ajuda em tempos de colheita.

No conto há uma referência às queimadas, que em terras
de cerrado, tinha (ainda têm) época certa: ”[…] galgou
a barroca fronteira e endireitou rumo a maria-preta,[…] toda tostada desde
à época da queima pelas lufadas de fogo que subiam da malhada.

(pág. 66). O autor descreve a natureza goiana tão bem que fica
difícil não imaginarmos as labaredas lambendo a árvore,
e a deixando “tostada”. As queimadas usadas pelo sertanejo para
“limpar” o solo do capim seco e das pragas, queimavam tudo o que
tinham à frente, inclusive árvores e animais.

Podemos dividir o conto em duas partes. Na primeira, a narrativa descreve
aspectos da vida sertaneja, a segunda, a narrativa caminha para seu clímax:
o filho pede que o pai lhe busque os filhotes, este reluta em acatar o pedido
do filho: “Ora, deixassem lá em paz os passarinhos.”
Mas como é dia do aniversário do menino, “não
valia por tão pouco amuá-lo.
” (pág 65). Domingos
acaba indo buscar os periquitos. Até o presente de aniversário
do filho é retirado da natureza.
A cobra aparece como obstáculo entre os periquitos e Domingos. Ele o
fere, e lhe transmite seu veneno letal. O réptil estava dormindo, poderia
estar também aproveitando a “canícula” do virar da
tarde, tal como Domingos no início da narrativa, acordado, age por instinto
e o pica, e já “preparava-se para novo ataque ao inoportuno
que viera arrancá-lo da sesta; e pó caboclo, voltando a si do
estupor, num gesto instintivo, sacou da bainha o largo jacaré inseparável,
amputando-lhe a cabeça dum golpe certeiro.
” (pág. 66).
O sertanejo, por instinto decepa-lhe a cabeça e depois a própria
mão. O bicho era uma cobra denominada Urutu, e contra seu veneno, nem
a “mesinha doméstica, nem a dos campos, possuíam salvação.
O homem do sertão também retirava da natureza antídotos
para algumas peçonhas. Só que a natureza também tem seus
percalços. Para esta não havia remédio, nem salvação.
A única solução possível seria retirar o veneno,
amputando a parte afetada, antes que este se espalhasse.

O sertanejo mantém uma relação de dependência e
de exploração com a natureza. Ele só existe porque a natureza
lhe dá tudo o que ele necessita. Desde a alpercata de couro crú
até os remédios tirados das plantas. Porém a natureza é
apresentada de forma traiçoeira, como se fosse um antagonista, que passa
a narrativa inteira em uma condição de serva do homem, servindo-o
em todas as suas necessidades, e após ganhar a confiança do personagem
o ataca pelas costas. A cobra ganha status de personagem, pois tem importância
fundamental na narrativa.

O fato de a cobra o picar impiedosamente pode ser uma espécie de vingança.
Ele não estava ali por acaso, estava se protegendo também, e os
filhotes de periquitos que não aparecem na narrativa, podem ter sido
devorados pela serpente, que após o “almoço”, acorda
incomodada pelas mãos invasoras do sertanejo, e se defende, mordendo-o.
A natureza sempre é “acordada”, incomodada pelo homem, que
a explora, que a modifica. Primeiro ele decepa a cabeça da cobra, depois
o próprio braço. Ele revida a vingança, o ataque. Isso
demonstra a prepotência do homem perante a natureza. Se sente senhor,
dono. Porém os dois saem decepados. Uma analogia pode ser feita entre
os ataques da natureza ao homem, e os ataques do homem à natureza. Ambos
saem mutilados. Ambos saem perdendo. No conto, a cobra perdeu mais, perdeu a
vida. A natureza se vinga, mas na maioria das vezes sai perdendo.

Créditos: Batista de Lima, para o”Diário do Nordeste”,
edição de 29/07/2006 | Blog donnameirinha.blogspot.com

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