Home EstudosLivros Uma amizade sincera (Conto das obras Felicidade clandestina e A legião estrangeira), de Clarice Lispector

Uma amizade sincera (Conto das obras Felicidade clandestina e A legião estrangeira), de Clarice Lispector

by Lucas Gomes

Neste conto, a história incomoda porque obriga ver a amizade como um desconforto:
o cotidiano de dois amigos, as confidências, a partilha das coisas banais da
convivência são um fardo que ambos suportam pela amizade. Os momentos mais
tipicamente valorizados na amizade convencional, a confidência e a solidariedade,
são marcados negativamente pelo narrador, que os relata com uma carga latente
de ironia; os momentos ruis, aqueles que normalmente se evitam, como o
esgotamento de ter o que dizer ao outro e a presença incômoda, quase indesejada,
a denunciar a solidão, são, por seu turno, os mais valorizados.

O enredo funciona de modo inverso ao do conto “Os obedientes”: a amizade sincera
é aquela que não pode continuar sendo; a perda, a despedida, não é resultado
de desafeto, mas, ao contrário, conseqüência de um afeto intenso. O sentimento
de doação e cumplicidade de dois amigos é tal que empresta à amizade um ar de
homossexualismo, que o narrador faz questão de negar, contando o episódio em
que fica noivo. Do ponto de vista de senso comum, esta seria a amizade que
“não deu certo”.

Uma leitura tranqüilizadora deste conto tende a negar a afirmação final do
narrador de que eram “amigos sinceros”. Esta “amizade” seria exagerada, muito
exigente e egoísta (“se eles cedessem cada qual um pouquinho, dava pra
continuar amigos”).

Os dois amigos não são nomeados. O tempo é cronológico, não determinado.
A narrativa em primeira pessoa, com onisciência parcial, segue a estrutura
tradicional do enredo (início – meio – fim) e nos é contada depois dos fatos
terem acontecidos. O espeço é urbano, não determinado.

Este conto tem duas características fundamentais: a originalidade do estilo e a
profundidade psicológica no enfoque de temas aparentemente banais. A linha condutora
é a estória de uma amizade que vai se desgastando com o tempo e a convivência acentuada.
Através da consciência do narrador, é revelada ao leitor uma dimensão humana profunda e
poética, de forma simples.

A narrativa, cheia de digressões (que fazem lembrar o estilo machadiano), vai além
da descrição realista de um cotidiano inexpressivo, questiona os valores universais do
ser humano. Seu estilo caracteriza-se pela ausência de retórica (discursos eloqüentes)
e sem melodramas (impactos emocionais), o interior das personagens vai aparecendo e
sensibilizando (é o que chamamos de epifânia).

O narrador conheceu um colega de escola no último ano de estudo. Desde então,
tornaram-se amigos inseparáveis. Quando não estavam conversando pessoalmente,
falavam-se pelo telefone.

A partir de certo momento, os assuntos começaram a faltar. Às vezes, marcavam
encontro e, juntos, não tinham sobre o que conversar. Calados, logo logo se
despediam e, ao chegar cada qual em sua casa, a solidão batia mais forte.

A família do narrador mudou-se para São Paulo e ele, então, ficou no apartamento
dos pais. O amigo morava sozinho, pois seus parentes ficaram no Piauí. A convite
do outro, dividiram o mesmo apartamento. Ficaram alegres, porém instalou-se a
falta de assunto. Só tinham amizade e mais nada. Tentaram organizar umas farras
no apartamento, contudo a vizinhança reclamou.

As férias foram angustiantes. A solidão de um ao lado do outro era incômoda demais.
Quando o amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura, o narrador fez disso
pretexto para uma intensa movimentação, assumiu cuidar de toda a documentação
exigida. No fim do dia os dois tinham assunto, pois exageravam as palavras no
comentário de detalhes de pouca importância. Foi então que o narrador entendeu
por que os namorados se presenteiam, por que marido e mulher cuidam um do outro
e por que as mães multiplicam o zelo pelos filhos. É para terem oportunidade de
ceder a alma um ao outro.

Resolvida a questão com a Prefeitura, os dois arrumaram falsas justificativas de
viajarem sós para estar com as respectivas famílias. Sabiam que nunca mais se
reveriam. “Mais que isso”, conclui o narrador, “que não queríamos nos rever. E
sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.”

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