Home EstudosSala de AulaHistoria Bolívia – Populismo: 1. Evo Morales – Uma conquista no grito

Bolívia – Populismo: 1. Evo Morales – Uma conquista no grito

by Lucas Gomes

Uma conquista no grito – Com ameaça de renúncia, presidente da Bolívia ganha apoio para governar


Carlos Mesa

Carlos Mesa foi um presidente encurralado até novembro de 2004. A Bolívia viveu
paralisada por barricadas erguidas nas ruas e estradas por grupos esquerdistas, em protesto generalizado contra as
mazelas do país mais pobre da América do Sul. No Legislativo, seu programa de reformas também foi bloqueado. Pressionado
por todos os lados, ele decidiu dar um basta e anunciou que, se o Congresso e os bolivianos não o deixassem governar,
iria renunciar. Jânio Quadros tentou sem sucesso a mesma manobra no Brasil, em 1961. Com o presidente boliviano
a tática funcionou melhor. Milhares de bolivianos saíram às ruas para apoiar Mesa e o Congresso rejeitou seu pedido de
renúncia, em março de 2005. Os deputados aceitaram também um pacto cujo objetivo era dar condições a Mesa para governar
até o fim de seu mandato, em 2007. Se ia conseguir era uma questão em aberto, pois a oposição mais extremada, aquela que
bloqueiava estradas, não queria ouvir falar em trégua.

As instituições da Bolívia eram frágeis, os políticos não se entendiam e a desigualdade social era gritante – pelo
menos 65% dos seus 8,7 milhões de habitantes viviam na miséria. O país detinha a segunda maior reserva de gás
natural da América Latina – mas os bolivianos não se puseram em acordo sobre a melhor forma de explorar o produto
que representava a única chance de inserir a Bolívia no mundo globalizado. Sem esse entendimento, não havia como
aproveitar a galinha dos ovos de ouro para ganhar divisas e atrair investimentos externos. Em 2003 uma revolta popular
contra a exportação do gás natural por um porto do Chile, inimigo histórico devido a uma guerra do século XIX, deixou
sessenta mortos e acabou provocando a renúncia do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada.


Manifestação na Praça São Francisco, La Paz,
outubro de 2003.

Os protestos de rua prosseguiram na Presidência de Carlos Mesa, o sucessor de Lozada. Além de bloquearem estradas
exigindo a nacionalização da produção do gás, os bolivianos fizeram greve por melhores salários, para reverter a
privatização (e a tarifa) do serviço de água, contra o aumento do preço da gasolina e a favor de eleição direta
para governador nas províncias, entre outros temas. O pacto do presidente com o Congresso previa uma nova lei
energética, que tentaria conciliar a demanda popular por melhor distribuição de renda com a necessidade de
acumular divisas. Propunha também um referendo para saber se as províncias deveriam ou não eleger seus governadores
e, por fim, trataria da necessidade de formar uma assembléia constituinte. Em tese, a nova Constituição trataria
melhor os índios, que são maioria mas se sentiam cidadãos de segunda classe.

Se essas providências iriam prosperar dependia muito do deputado Evo Morales, cujo modelo político era o populista
Hugo Chávez, da Venezuela. Ex-presidente do sindicato de produtores de coca, Morales teve ascensão meteórica na
política boliviana. De origem pobre e rural, ele pertence à etnia indígena aimará, a segunda em número. Morales,
o segundo colocado nas eleições presidenciais de 2002, liderou os protestos de rua que derrubaram Lozada. É dele
o projeto de lei para aumentar para 50% os royalties pagos pelas empresas estrangeiras que exploram o gás natural,
produto responsável por um terço das exportações bolivianas. Duas vezes superior ao cobrado no mercado internacional,
o imposto poderia inviabilizar o negócio para as companhias estrangeiras que operavam no setor, entre elas a Petrobras.
“A disputa mostra a incrível capacidade da Bolívia de desperdiçar as oportunidades de modernizar sua economia”, disse
o economista boliviano Roberto Laserna, da Universidade de San Simón, em Cochabamba.

O trauma do combate à hiperinflação era apontado como uma das causas da resistência à modernização da economia. Para
debelar a inflação de 25.000% nos anos 80, o governo abriu a economia, privatizou estatais e atraiu investimentos
externos para explorar o gás e outras riquezas naturais, como o estanho. A inflação foi controlada, mas as reformas
agravaram o desemprego e a pobreza. Para piorar, o governo cedeu às pressões americanas e deu início a um programa de
combate às plantações de coca. O objetivo era coibir a venda da planta aos produtores de cocaína da Colômbia. Acontece
que só uma parte da produção ia para o narcotráfico. Desde os tempos dos incas, os bolivianos mascam folhas de coca
para enganar a fome ou as usam como infusão para chás. A campanha tirou o sustento de 200.000 pequenos agricultores,
sem criar uma alternativa viável para os moradores do campo. São esses cocaleiros desempregados que formam hoje a
massa de desesperados que Evo Morales usa para bloquear as estradas da Bolívia.

Chamam-se de POPULISMO
uma série de movimentos políticos que propõem-se a colocar, no centro de
toda ação política, o povo enquanto massa, em oposição – ou ao lado – dos
mecanismos de representação próprios da democracia representativa.
A Bolívia que dá certo

A Província de Santa Cruz é uma ilha de prosperidade no mar de pobreza boliviano. Com um clima propício à agricultura,
um solo fértil e repleto de riquezas minerais, a província desenvolveu um setor agrícola dinâmico e boa infra-estrutura
para a extração de gás e petróleo. Graças a uma pauta de exportações diversificada – que inclui soja, algodão, frutas,
petróleo e gás –, Santa Cruz é responsável por mais da metade das vendas externas da Bolívia e por cerca de 30% do PIB
boliviano. Com 25% da população total do país, a região tem a sensação de estar levando a Bolívia nas costas. Sem
direito de eleger os próprios governantes ou de tomar decisões sobre impostos, as províncias bolivianas têm de engolir
governadores nomeados por La Paz. Nessas circunstâncias, como seria de esperar, projetos de autonomia e até de
separatismo começam a ganhar força. No início do ano uma manifestação por autonomia reuniu 200.000 pessoas em Santa
Cruz de la Sierra, a capital da província. Dali saiu uma Assembléia Provisória Autônoma, eleita por voto popular e
encabeçada pelo empresário Rubén Costas. Ele também representa o movimento Nação Camba, cuja principal bandeira, até
pouco tempo atrás, era a separação da parte oriental da Bolívia.

Uma instalação brasileira foi tomada manu militari por um governo estrangeiro,
pela penúltima vez, no distante 12 de novembro de 1864, quando o governo paraguaio
apreendeu o navio brasileiro Marquês de Olinda. Deu em guerra. A última vez
ocorreu 1º de maio de 2006, quando o governo de Evo Morales despachou tropas
para ocupar os campos de gás da Petrobras na Bolívia. Deu numa nota em que o
governo brasileiro afirma reconhecer a decisão boliviana como “ato inerente
à sua soberania”.

A evocação daquele outro momento histórico serviu para enfatizar a enormidade
que é recorrer à ocupação militar, ainda que simbólica, ainda que sem disparar
um tiro, numa disputa com outro país. Se não é ato de guerra, é um gesto de
hostilidade profunda. Em resposta, o governo brasileiro apresentou uma das reações
mais tímidas já produzidas pela diplomacia brasileira.

O panorama da América do Sul, hoje, é de luta de todos contra todos. O Pacto
Andino se desfez nas brigas entre a Venezuela, de um lado, e o Peru e a Colômbia,
de outro. O Mercosul, que já vinha cambaleante em razão das eternas querelas
entre Brasil e Argentina, sofreu então a ameaça de retirada do Uruguai, para
assinar tratado de livre-comércio com os Estados Unidos.

O secretário-geral do Itamaraty, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, esteve
na Bolívia nas vésperas da investida de Evo Morales. O que não resultou em nada.
Seguiram-se a ocupação militar.

Evo Morales tem um traço em comum com Solano López, o caudilho que arrastou
seu país àquela conflagração. López julgou que podia estender seus domínios
aos vizinhos Brasil e Argentina. Levou seu país à ruína e acabou morto. Evo
Morales escolheu hostilizar o único comprador possível de sua maior riqueza
natural. O que vai provocar de mais duradouro no Brasil é a corrida pelas alternativas
a seu gás.

Depois de se apossar do patrimônio brasileiro, Morales passou a tratar
o Brasil como inimigo


O presidente boliviano em Viena, na Áustria

Como primeiro ato de hostilidade, Evo Morales roubou o patrimônio dos brasileiros
investido na Bolívia e colocou em risco o abastecimento nacional de gás natural.
Depois, encorajado pela docilidade com que o governo brasileiro tratou a questão,
ele se pôs a dar lição de moral ao Brasil. Em maio de 2006, aproveitando as
atenções internacionais na Cúpula União Européia-América Latina, na Áustria,
o presidente boliviano dedicou-se a hostilizar o Brasil. A concepção de Morales
das relações bilaterais, expressa de viva voz, é um fascinante exemplo da irresponsabilidade
populista, do poder da fantasia ideológica. O que disse Evo Morales foi o seguinte:
o Brasil saqueou os recursos de seu país. A Petrobras, que investiu 1,5 bilhão
de dólares e viabilizou a extração do gás natural boliviano, operava ilegalmente,
sonegava impostos e fazia contrabando. Vários países ajudaram a Bolívia (Cuba
e Venezuela, por exemplo), mas o Brasil não estava entre eles. O presidente
boliviano, que já expulsara uma siderúrgica brasileira, agora anunciava que
ia tomar as terras dos agricultores brasileiros instalados na Bolívia, alguns
deles há trinta anos. Sua reforma agrária ia começar precisamente pelas terras
dos fazendeiros brasileiros, responsáveis pela produção de um terço da produção
de soja boliviana.

Morales também resgatou a venda pelos bolivianos do território do atual estado
do Acre. O negócio ocorreu há mais de um século, e o Brasil pagou 2 milhões
de libras esterlinas e ainda deu à Bolívia terras tiradas do Mato Grosso. Na
versão propagandista de Morales, tudo o que os bolivianos levaram no negócio
foi “um cavalo”. “Nunca, desde que definiu suas fronteiras com os países vizinhos,
o Brasil foi tão desmoralizado no exterior”, disse o diplomata José Botafogo
Gonçalves, presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, no Rio
de Janeiro. Morales ia invadir o Acre como fez com as refinarias da Petrobras?
Era improvável, visto que as forças armadas bolivianas não dariam conta da empreitada.
O Acre provavelmente se converteria em outra bandeira populista de seu governo,
ao lado da rivalidade com o Chile devida à derrota boliviana numa guerra do
século XIX. O roubo de propriedade brasileira e o discurso populista foram passos
decisivos que Morales deu para empobrecer o povo boliviano. Como a experiência
ensina, a riqueza confiscada pelo Estado não seria distribuída entre os bolivianos,
mas alimentaria o empreguismo e premiaria apenas os amigos do regime. Interessava
ao Brasil que a Bolívia reduzisse a pavorosa cifra de 67% de miseráveis. Havia
para isso razões humanitárias e a preocupação para com a estabilidade sul-americana.
Mas existia também a vontade honesta de ampliar o mercado para as exportações
brasileiras. Ao desapropriar empresas que colaboravam no desenvolvimento e isolar
seu país da economia global, Morales só aprofundou a miséria de seu povo. Se
a China é hoje um parceiro comercial de nível internacional, isso se deve às
reformas econômicas, à abertura de mercado e à atração de investimentos estrangeiros
que conseguiram resgatar da miséria mais de 300 milhões de chineses. Morales
planejava fazer o oposto do que fez a China.


Soldados patrulham instalações da
Petrobras Bolivia

É difícil para um país soberano como o Brasil aceitar pacificamente tal intensidade
de desaforos – nem o chanceler Celso Amorim agüentou. Primeiro declarou-se “desconfortável”
com as indelicadezas dos vizinhos e reclamou da ingerência venezuelana na Bolívia
(Chávez respondeu, por escrito, que o comentário se devia “à ignorância dos
nossos amigos brasileiros”). O chanceler então subiu o tom e passou a “indignado”.
Por fim, Amorim ameaçou retirar o apoio do Brasil ao projeto de um gasoduto
ligando a Venezuela à Argentina, uma idéia de Chávez. Uma reação tardia, pois
o ministro de Hidrocarbonetos da Bolívia, Andrés Soliz Rada, o “Boca de Poço”,
já tinha avisado que a Petrobras não poderia participar do gasoduto. Na visão
dele, porque não seriam aceitas empresas de propriedade de multinacionais. No
governo de Morales, o ministro de Hidrocarbonetos não sabia que a Petrobras,
empresa que acabou de roubar, é uma estatal, com participação minoritária de
capital privado.

Morales e seus ministros demonstravam estar convencidos de que não havia riscos
em tripudiar sobre o Brasil. “A Petrobras tem mais medo de sair da Bolívia do
que nós de perdê-la”, disse o ministro Boca de Poço. Morales estava elevando
a temperatura da crise como parte de uma estratégia de se tornar um novo Chávez.
“A maneira como o presidente da Bolívia está seguindo o modelo de seu colega
venezuelano é uma prova contundente da influência de Chávez sobre Morales”,
disse o venezuelano Alfredo Ramos Jiménez, da Universidade de Los Andes, em
Caracas. Fiel à cartilha de Chávez, o primeiro passo de Morales foi se apresentar
como vingador das injustiças históricas da Bolívia. Em seguida, ele escolheu
um inimigo externo – o Brasil – e, em um gesto espalhafatoso, com mobilização
de tropas, tomou as propriedades da Petrobras. O terceiro passo do governante
boliviano seria usar a popularidade conquistada com a nacionalização para, na
eleição de 2 de julho de 2006, formar uma Assembléia Constituinte monocromática
e sem oposição. O objetivo era “refundar” a Bolívia com uma nova Constituição
que lhe permitiria concentrar poder, da forma como Chávez fez na Venezuela.


Celso Amorim “incomodado”

O governo boliviano parecia confiar na promessa feita por Chávez de que a Venezuela
poderia compensar os investimentos brasileiros que deixassem o país. O problema
dessa estratégia era que, ao se aliar com Chávez, Morales chutou os principais
parceiros comerciais de seu país. Metade das exportações bolivianas vai para
o Mercosul, principalmente para o Brasil e para a Argentina. Outros 30% vão
para os Estados Unidos e países do Pacto Andino, como a Colômbia e o Peru –
exatamente os dois países com os quais Chávez estava rompido. As exportações
bolivianas para os Estados Unidos, que alcançaram 380 milhões de dólares anuais,
deveriam cair a partir de 2006, depois que terminasse um acordo comercial que
nenhum dos dois países estava interessado em renovar. “Como seu projeto de liderança
continental fracassou, Chávez está usando a influência sobre países como a Bolívia
para espezinhar e fazer pressão sobre os grandes da região, como o Brasil, o
Chile e a Argentina”, disse Jorge Quiroga, presidente da Bolívia entre 2001
e 2002. Morales estava demonstrando empenho em seguir seu mestre.


O BRASIL FOI HUMILHADO
O jurista Olavo Baptista: Morales fez o jogo de
Davi contra Golias

O jurista paulista Luiz Olavo Baptista tem uma função estratégica nas disputas econômicas internacionais. Desde 2002,
ele ocupa uma das sete cadeiras do órgão de apelação da Organização Mundial do Comércio, uma espécie de suprema corte
global dos negócios. Baptista ficou indignado com a reação do governo brasileiro à invasão das refinarias da Petrobras
promovida pelo governo boliviano. Nesta entrevista ao repórter Fábio Portela, da revista VEJA ele disse que o
governo submeteu o Brasil a um vexame histórico. Confira a entrevista:

A BOLÍVIA DESRESPEITOU REGRAS DO DIREITO INTERNACIONAL AO TOMAR
AS REFINARIAS DA PETROBRAS?

A principal regra do direito internacional é que os Estados devem se tratar com respeito. A Bolívia, ao contrário, humilhou o
Brasil. O que o presidente Evo Morales fez é inaceitável sob qualquer ponto de vista. Estou inconformado com o episódio e tenho
a impressão de que o Brasil inteiro também está. O pior é receber o desaforo, a humilhação, e ver que quem deveria falar por você
não só deixa de reagir como diz que o outro está certo. É um vexame histórico.

COMO O GOVERNO DEVERIA TER DEFENDIDO OS INTERESSES BRASILEIROS?
Em primeiro lugar, era preciso deixar claro que o Brasil não aceita a forma como foi feita a tomada das refinarias, com tropas,
invasões e aquela encenação toda. Morales poderia ter alcançado o mesmo resultado sem humilhar o Brasil. Por que agiu assim?
Por uma razão política. Ele usou o Brasil para dizer ao povo boliviano: olha, eu sou o Davi e derrubo o Golias com uma pedrada
só. Fez uma humilhação calculada. Portanto, a primeira coisa que deveria ter sido feita era exigir um pedido formal de desculpas,
o que, aliás, também faz parte das negociações internacionais.

O QUE O BRASIL GANHARIA COM UM PEDIDO DESSES?
A posição brasileira nas negociações sairia fortalecida. Do jeito que a coisa vai, os bolivianos continuam falando grosso
e fazendo ameaças mesmo depois de terem tomado os ativos da Petrobras. O Brasil ficou do jeito que está – de joelhos – porque
não reclamou. Quem vai respeitar o Brasil depois disso?

E O QUE PODERIA SER FEITO PARA COMPENSAR O PREJUÍZO DAS EMPRESAS QUE PERDERAM SEUS ATIVOS?
Esse seria o segundo passo. Depois do pedido de desculpas, o governo deveria exigir que a Bolívia ressarcisse imediatamente
os brasileiros. Também seria preciso montar equipes de advogados e levar o caso para a Corte Internacional de Haia. Isso
não ocorreu. Outra opção seria oferecer proteção diplomática às empresas, dando uma garantia oficial aos investimentos
brasileiros.

COMO FUNCIONA A PROTEÇÃO DIPLOMÁTICA?
O mecanismo é assim: o governo entra com ações junto às cortes internacionais para obrigar a Bolívia a indenizar o Brasil
pelos bens expropriados. No caso específico, os ativos da Petrobras. A Bolívia, então, teria de explicar por que se acha no
direito de tomar os bens alheios. Só se poderia discutir o assunto da forma camarada como o Itamaraty está fazendo depois
que essas providências fossem tomadas.

ENTÃO NÃO FOI UMA BOA ESTRATÉGIA ABRIR NEGOCIAÇÕES IMEDIATAMENTE?
Foi péssimo. E pior: as conversas nunca deveriam ter sido abertas pelos presidentes. Nenhuma negociação internacional
deve começar pelos chefes de Estado, porque, em última instância, são eles que vão decidir. Quando os presidentes entram em
campo, acaba a margem de manobra que os diplomatas têm para negociar. Por isso, qualquer amador sabe que assuntos dessa
natureza e complexidade devem primeiro ser tratados em nível ministerial. O Presidente aceitou aquela reunião na Argentina, e o que
aconteceu? Morales apareceu lá com Hugo Chávez a tiracolo, posando de organizador da reunião. Nessa hora, Chávez enterrou Lula
definitivamente e acabou com qualquer pretensão do Brasil de ser uma liderança latino-americana.

O CHANCELER CELSO AMORIM GARANTE QUE A LIDERANÇA DE LULA NA AMÉRICA LATINA SEGUE FIRME.
O ministro Amorim sabe o tamanho do estrago e tenta remediá-lo. Ele declarou que Lula deu um pito em Chávez e em Morales
nos bastidores. Se isso tivesse de fato ocorrido, não deveria se tornar público. Um diplomata experiente como Amorim não
divulgaria essa informação. O que ele quer é preservar a imagem do presidente. Com essa intenção, acaba atuando como uma
espécie de marqueteiro internacional de Lula. Dessa forma, ele está destruindo sua reputação e sua carreira.

ALÉM DA HUMILHAÇÃO, QUE OUTROS REFLEXOS A CRISE COM A BOLÍVIA PODE TRAZER?
Para os empresários nacionais, é uma tragédia. O governo sinalizou o seguinte: não invistam no exterior, porque eu não vou
protegê-los. Para o resto do mundo, o recado é ainda pior: se o investimento é de brasileiro, pode passar a mão grande,
porque o país não reage. Se o governo não faz nada pela Petrobras, da qual ele é dono, imagine por outras empresas
brasileiras.

A FRANÇA E A ESPANHA TAMBÉM FORAM ATINGIDAS PELAS MEDIDAS DE MORALES. REAGIRAM COMO O BRASIL?
Não. Tomaram as providências cabíveis. Notificaram à Bolívia que querem ser indenizadas imediatamente, e seus advogados já
trabalham para contestar judicialmente as expropriações.

O BRASIL PODERIA, ENTÃO, TER-SE RECUSADO A NEGOCIAR O REAJUSTE DO PREÇO DO GÁS BOLIVIANO?
Claro. O Brasil deveria exigir o cumprimento dos contratos já firmados. Eles prevêem o reajuste de preço a cada três meses,
seguindo oscilações do petróleo. Também prevêem a possibilidade de alteração de suas cláusulas a cada cinco anos. Por causa
disso, não se pode dizer que os contratos não sejam equilibrados. Não há por que rasgá-los de uma hora para a outra. Querem
discutir o preço do gás? Tudo bem, mas é preciso levar em conta outros elementos. Inclusive o fato de que o Brasil pagou,
durante anos, por um gás que não consumiu. A Petrobras poderia ser compensada por isso. Seria legal, legítimo e civilizado.
Mais: se Morales quer mudar as regras, por que não vai a Brasília negociar? O governo Lula, ao contrário, despacha autoridades
para discutir as regras em campo adversário.

O BRASIL E A BOLÍVIA INTEGRAM A COMUNIDADE SUL-AMERICANA DE NAÇÕES. OS ATOS DE MORALES NÃO PODERIAM SER QUESTIONADOS NO ÂMBITO
DESSA ASSOCIAÇÃO?

Nunca vi, na história recente, uma época em que o Brasil estivesse tão isolado na América Latina como agora. Veja: o país tentou
emplacar o presidente da OMC e ficou sozinho. Tentou o presidente do Banco Mundial e também ficou sozinho. No Conselho de
Segurança da ONU, além de estar sozinho, ainda enfrenta a oposição de países como a Argentina. Nessa crise com a Bolívia, nenhum
outro país fez um gesto sequer de solidariedade.

A POLÍTICA EXTERNA DO GOVERNO BRASILEIRO NAUFRAGOU?
Desde o barão do Rio Branco, a política externa brasileira sempre teve a mesma linha mestra. Neste governo, houve uma guinada
política muito grande. Trocamos o pragmatismo pela ideologia, e a coisa saiu dos trilhos. Desde que o presidente Lula assumiu,
o país perdeu respeito na América Latina.

Morales ri do Brasil

Quando anunciou a nacionalização da indústria de hidrocarbonetos, no Dia do
Trabalho, o presidente Evo Morales deu à Petrobras seis meses para aceitar um
novo contrato, que parecia relegar a empresa brasileira ao simples papel de
prestadora de serviços – como o texto do documento não foi divulgado, ninguém
sabe ao certo. Várias vezes a direção da estatal brasileira anunciou a disposição
de adotar uma atitude firme em defesa dos interesses da companhia, de seus acionistas
e do Brasil, mesmo que para isso fosse necessário encerrar suas operações na
Bolívia. No dia em que vencia o prazo, a Petrobras assinou a capitulação nos
termos impostos pelos bolivianos. Empolgado com a vitória fácil, Morales sentiu-se
à vontade para rir publicamente do Brasil. Em entrevista a jornalistas estrangeiros,
em La Paz, o presidente disse, em tom de deboche, que Lula deveria dar de presente
à Bolívia as duas refinarias da Petrobras no país. “Elas não são nada para o
Brasil”, disse o presidente boliviano.

Morales provavelmente não entendia que a Petrobras não pertencia a Lula, mas
a seus milhares de acionistas e ao Brasil. As refinarias em questão – as únicas
da Bolívia – foram compradas por 100 milhões de dólares do próprio governo boliviano.
A Petrobras investiu 1,5 bilhão de dólares para desenvolver os campos de extração
de gás natural na Bolívia. Visto que ao assinar o novo contrato o presidente
da estatal, José Sergio Gabrielli, abriu mão do direito de recorrer à Justiça
internacional, é bem provável que a empresa brasileira fosse ficar com o prejuízo.
Morales também confirmou que havia colocado o Exército de prontidão para invadir
as instalações da Petrobras, caso a empresa brasileira se negasse a aceitar
o contrato com as novas regras para a exploração de gás e petróleo.


Policial boliviano em frente à sede da
Petrobras em Santa Cruz de la Sierra, em
maio: planos para nova ocupação

O novo contrato aceito pela Petrobras foi o resultado de uma das três frentes
de negociação com o governo boliviano, iniciadas desde que o setor de gás e
petróleo foi nacionalizado por Morales, no “decreto supremo” de 1º de maio de
2006. As outras duas questões em discussão eram o reajuste exigido pela Bolívia
no preço do gás pago pelo Brasil e a indenização das refinarias tomadas da Petrobras.
Até então, o governo boliviano conseguira o que queria. Os contratos aceitos
pela Petrobras – e outras nove petrolíferas estrangeiras – não eram exatamente
o que Morales prometeu aos seus eleitores nacionalistas. Eram ainda melhores.
Se fossem mantidas as normas do decreto de nacionalização, as empresas estrangeiras
se veriam obrigadas a retirar-se do país. A estatal boliviana, a YPFB, não tinha
dinheiro nem pessoal capacitado para tocar a produção de petróleo e gás por
conta própria, e o setor entraria em colapso. “O discurso de Morales serviu
para mostrar como ele pretende pressionar as empresas estrangeiras a permanecer
na Bolívia, pagando um preço alto”, disse Ricardo Sennes, diretor da Prospectiva,
consultoria especializada em assuntos internacionais, de São Paulo.

Pelo novo contrato, a Petrobras (que operava metade das reservas de gás do país)
não só manteve suas atividades na Bolívia, como teria de pagar um imposto de
50%. O restante, descontados os custos de produção, seria dividido entre a Petrobras
e a estatal boliviana, encarregada do transporte e da comercialização do produto.
Os detalhes de como essa divisão seria feita ainda não estavam decididos. A
estatal brasileira teve de aceitar, também, que qualquer desavença envolvendo
o novo contrato fosse julgada na Bolívia, e não mais por um tribunal internacional.
De quebra, o governo boliviano obteve a promessa de novos investimentos em prospecção
e exploração. “A Petrobras e as outras empresas estrangeiras não tinham opção:
se não aceitassem o contrato, seriam expulsas e perderiam os investimentos já
feitos na Bolívia”, disse o advogado Jean-Paul Prates, da consultoria Expetro,
do Rio, especializada no mercado petrolífero.

Para a Petrobras, havia outra questão estratégica a ser considerada: metade
do gás consumido no Brasil era comprada da Bolívia, e o fornecimento poderia
ficar comprometido se a petrolífera brasileira tivesse de deixar o país vizinho.
Essa dependência em relação ao produto boliviano era o principal trunfo de Morales
na negociação de um novo preço para o gás exportado para o Brasil. O presidente
Néstor Kirchner, da Argentina, fechou um acordo com Morales para quadruplicar
a importação de gás boliviano. Kirchner se comprometeu a pagar 5 dólares por
milhão de BTU de gás, contra os 4,2 dólares pagos atualmente pelo Brasil. Morales
deveria usar esse fato como argumento nas negociações com a Petrobras, que seriam
retomadas. “O governo boliviano quer usar o acordo com a Argentina para mostrar
que, no futuro, não dependerá tanto do mercado consumidor brasileiro”, disse
Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura, do Rio.

A verdade é que o Brasil não precisaria renegociar o preço do gás, pois o contrato
em vigor valia até 2019 e o valor de importação seria atualizado trimestralmente.
Mas o desrespeito do governo de Evo Morales aos contratos já era notório. Adepto
da teoria de que os fins justificam os meios, Morales costumava dizer que a
expropriação do patrimônio brasileiro seria vital para tirar o povo boliviano
da miséria. Com o novo contrato de exploração de gás e petróleo, a Bolívia teria
uma renda adicional de 1 bilhão de dólares naquele ano. Como o presidente boliviano
usou esse dinheiro para reduzir a pobreza ainda é uma incógnita.

• Entenda a tensão entre oposição e governo na Bolívia

RESUMO

LÍDER
Ex-pastor de ovelhas da tribo dos aymarás, Evo Morales entrou na política como
líder dos plantadores de coca. Primeiro indígena a alcançar a Presidência do
país, no poder ele se tornou o principal pupilo de Chávez.

RETÓRICA
Nos comícios e entrevistas, Morales se aproveita da origem indígena para encarnar
o papel de líder autêntico do povo andino. Sempre sem terno – a jaqueta de couro
é inseparável -, gosta de ser visto discursando em meio a famílias de lavradores
e criancinhas com ponchos.

AMEAÇA ÀS INSTITUIÇÕES NACIONAIS
A exemplo de Chávez, o grande objetivo de Morales é reformar a Constituição
– ainda que contra a vontade do Congresso eleito pelo povo. Para isso, mobilizou
indígenas para forçar a renúncia de governadores de oposição e tentou alterar
as regras para emendas à Carta, mas teve que obedecer as normas vigentes.

AMEAÇA À REGIÃO E À COMUNIDADE INTERNACIONAL
A nacionalização dos setores de gás e petróleo foi o primeiro passo, contando
com uma espalhafatosa ocupação de refinarias estrangeiras pelo Exército. A segunda
medida foi aumento do preço do gás fornecido ao Brasil. No futuro, Morales quer
tomar terras de brasileiros instalados no país, responsáveis pela produção de
um terço da soja boliviana.

PERSPECTIVAS
O radicalismo de Morales deverá ser contido pela realidade — o fato de que seu
governo depende dos investimentos estrangeiros em geral e dos brasileiros em
particular. Sem a Petrobras, responsável pelo pagamento de 20% dos impostos,
o Estado boliviano ficaria sem dinheiro.

RELAÇÃO COM O BRASIL
Usando Chávez como escudo, Morales mantém uma relação ambígua com o Brasil:
diz-se amigo de Lula, mas, na prática, usa táticas hostis, como a ocupação das
refinarias da Petrobras. Além disso, faz declarações absurdas, como reivindicar
direitos sobre o Estado do Acre – comprado pelo Brasil junto aos bolivianos
no século XIX.

Posts Relacionados