Chamam-se de POPULISMO uma série de movimentos políticos que propõem-se a colocar, no centro de toda ação política, o povo enquanto massa, em oposição – ou ao lado – dos mecanismos de representação próprios da democracia representativa. |
A Bolívia que dá certo
A Província de Santa Cruz é uma ilha de prosperidade no mar de pobreza boliviano. Com um clima propício à agricultura, |
Uma instalação brasileira foi tomada manu militari por um governo estrangeiro,
pela penúltima vez, no distante 12 de novembro de 1864, quando o governo paraguaio
apreendeu o navio brasileiro Marquês de Olinda. Deu em guerra. A última vez
ocorreu 1º de maio de 2006, quando o governo de Evo Morales despachou tropas
para ocupar os campos de gás da Petrobras na Bolívia. Deu numa nota em que o
governo brasileiro afirma reconhecer a decisão boliviana como “ato inerente
à sua soberania”.
A evocação daquele outro momento histórico serviu para enfatizar a enormidade
que é recorrer à ocupação militar, ainda que simbólica, ainda que sem disparar
um tiro, numa disputa com outro país. Se não é ato de guerra, é um gesto de
hostilidade profunda. Em resposta, o governo brasileiro apresentou uma das reações
mais tímidas já produzidas pela diplomacia brasileira.
O panorama da América do Sul, hoje, é de luta de todos contra todos. O Pacto
Andino se desfez nas brigas entre a Venezuela, de um lado, e o Peru e a Colômbia,
de outro. O Mercosul, que já vinha cambaleante em razão das eternas querelas
entre Brasil e Argentina, sofreu então a ameaça de retirada do Uruguai, para
assinar tratado de livre-comércio com os Estados Unidos.
O secretário-geral do Itamaraty, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, esteve
na Bolívia nas vésperas da investida de Evo Morales. O que não resultou em nada.
Seguiram-se a ocupação militar.
Evo Morales tem um traço em comum com Solano López, o caudilho que arrastou
seu país àquela conflagração. López julgou que podia estender seus domínios
aos vizinhos Brasil e Argentina. Levou seu país à ruína e acabou morto. Evo
Morales escolheu hostilizar o único comprador possível de sua maior riqueza
natural. O que vai provocar de mais duradouro no Brasil é a corrida pelas alternativas
a seu gás.
Depois de se apossar do patrimônio brasileiro, Morales passou a tratar
o Brasil como inimigo
O presidente boliviano em Viena, na Áustria
Como primeiro ato de hostilidade, Evo Morales roubou o patrimônio dos brasileiros
investido na Bolívia e colocou em risco o abastecimento nacional de gás natural.
Depois, encorajado pela docilidade com que o governo brasileiro tratou a questão,
ele se pôs a dar lição de moral ao Brasil. Em maio de 2006, aproveitando as
atenções internacionais na Cúpula União Européia-América Latina, na Áustria,
o presidente boliviano dedicou-se a hostilizar o Brasil. A concepção de Morales
das relações bilaterais, expressa de viva voz, é um fascinante exemplo da irresponsabilidade
populista, do poder da fantasia ideológica. O que disse Evo Morales foi o seguinte:
o Brasil saqueou os recursos de seu país. A Petrobras, que investiu 1,5 bilhão
de dólares e viabilizou a extração do gás natural boliviano, operava ilegalmente,
sonegava impostos e fazia contrabando. Vários países ajudaram a Bolívia (Cuba
e Venezuela, por exemplo), mas o Brasil não estava entre eles. O presidente
boliviano, que já expulsara uma siderúrgica brasileira, agora anunciava que
ia tomar as terras dos agricultores brasileiros instalados na Bolívia, alguns
deles há trinta anos. Sua reforma agrária ia começar precisamente pelas terras
dos fazendeiros brasileiros, responsáveis pela produção de um terço da produção
de soja boliviana.
Morales também resgatou a venda pelos bolivianos do território do atual estado
do Acre. O negócio ocorreu há mais de um século, e o Brasil pagou 2 milhões
de libras esterlinas e ainda deu à Bolívia terras tiradas do Mato Grosso. Na
versão propagandista de Morales, tudo o que os bolivianos levaram no negócio
foi “um cavalo”. “Nunca, desde que definiu suas fronteiras com os países vizinhos,
o Brasil foi tão desmoralizado no exterior”, disse o diplomata José Botafogo
Gonçalves, presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, no Rio
de Janeiro. Morales ia invadir o Acre como fez com as refinarias da Petrobras?
Era improvável, visto que as forças armadas bolivianas não dariam conta da empreitada.
O Acre provavelmente se converteria em outra bandeira populista de seu governo,
ao lado da rivalidade com o Chile devida à derrota boliviana numa guerra do
século XIX. O roubo de propriedade brasileira e o discurso populista foram passos
decisivos que Morales deu para empobrecer o povo boliviano. Como a experiência
ensina, a riqueza confiscada pelo Estado não seria distribuída entre os bolivianos,
mas alimentaria o empreguismo e premiaria apenas os amigos do regime. Interessava
ao Brasil que a Bolívia reduzisse a pavorosa cifra de 67% de miseráveis. Havia
para isso razões humanitárias e a preocupação para com a estabilidade sul-americana.
Mas existia também a vontade honesta de ampliar o mercado para as exportações
brasileiras. Ao desapropriar empresas que colaboravam no desenvolvimento e isolar
seu país da economia global, Morales só aprofundou a miséria de seu povo. Se
a China é hoje um parceiro comercial de nível internacional, isso se deve às
reformas econômicas, à abertura de mercado e à atração de investimentos estrangeiros
que conseguiram resgatar da miséria mais de 300 milhões de chineses. Morales
planejava fazer o oposto do que fez a China.
Soldados patrulham instalações da
Petrobras Bolivia
É difícil para um país soberano como o Brasil aceitar pacificamente tal intensidade
de desaforos nem o chanceler Celso Amorim agüentou. Primeiro declarou-se “desconfortável”
com as indelicadezas dos vizinhos e reclamou da ingerência venezuelana na Bolívia
(Chávez respondeu, por escrito, que o comentário se devia “à ignorância dos
nossos amigos brasileiros”). O chanceler então subiu o tom e passou a “indignado”.
Por fim, Amorim ameaçou retirar o apoio do Brasil ao projeto de um gasoduto
ligando a Venezuela à Argentina, uma idéia de Chávez. Uma reação tardia, pois
o ministro de Hidrocarbonetos da Bolívia, Andrés Soliz Rada, o “Boca de Poço”,
já tinha avisado que a Petrobras não poderia participar do gasoduto. Na visão
dele, porque não seriam aceitas empresas de propriedade de multinacionais. No
governo de Morales, o ministro de Hidrocarbonetos não sabia que a Petrobras,
empresa que acabou de roubar, é uma estatal, com participação minoritária de
capital privado.
Morales e seus ministros demonstravam estar convencidos de que não havia riscos
em tripudiar sobre o Brasil. “A Petrobras tem mais medo de sair da Bolívia do
que nós de perdê-la”, disse o ministro Boca de Poço. Morales estava elevando
a temperatura da crise como parte de uma estratégia de se tornar um novo Chávez.
“A maneira como o presidente da Bolívia está seguindo o modelo de seu colega
venezuelano é uma prova contundente da influência de Chávez sobre Morales”,
disse o venezuelano Alfredo Ramos Jiménez, da Universidade de Los Andes, em
Caracas. Fiel à cartilha de Chávez, o primeiro passo de Morales foi se apresentar
como vingador das injustiças históricas da Bolívia. Em seguida, ele escolheu
um inimigo externo o Brasil e, em um gesto espalhafatoso, com mobilização
de tropas, tomou as propriedades da Petrobras. O terceiro passo do governante
boliviano seria usar a popularidade conquistada com a nacionalização para, na
eleição de 2 de julho de 2006, formar uma Assembléia Constituinte monocromática
e sem oposição. O objetivo era “refundar” a Bolívia com uma nova Constituição
que lhe permitiria concentrar poder, da forma como Chávez fez na Venezuela.
Celso Amorim “incomodado”
O governo boliviano parecia confiar na promessa feita por Chávez de que a Venezuela
poderia compensar os investimentos brasileiros que deixassem o país. O problema
dessa estratégia era que, ao se aliar com Chávez, Morales chutou os principais
parceiros comerciais de seu país. Metade das exportações bolivianas vai para
o Mercosul, principalmente para o Brasil e para a Argentina. Outros 30% vão
para os Estados Unidos e países do Pacto Andino, como a Colômbia e o Peru
exatamente os dois países com os quais Chávez estava rompido. As exportações
bolivianas para os Estados Unidos, que alcançaram 380 milhões de dólares anuais,
deveriam cair a partir de 2006, depois que terminasse um acordo comercial que
nenhum dos dois países estava interessado em renovar. “Como seu projeto de liderança
continental fracassou, Chávez está usando a influência sobre países como a Bolívia
para espezinhar e fazer pressão sobre os grandes da região, como o Brasil, o
Chile e a Argentina”, disse Jorge Quiroga, presidente da Bolívia entre 2001
e 2002. Morales estava demonstrando empenho em seguir seu mestre.
O jurista paulista Luiz Olavo Baptista tem uma função estratégica nas disputas econômicas internacionais. Desde 2002, A BOLÍVIA DESRESPEITOU REGRAS DO DIREITO INTERNACIONAL AO TOMAR COMO O GOVERNO DEVERIA TER DEFENDIDO OS INTERESSES BRASILEIROS? O QUE O BRASIL GANHARIA COM UM PEDIDO DESSES? E O QUE PODERIA SER FEITO PARA COMPENSAR O PREJUÍZO DAS EMPRESAS QUE PERDERAM SEUS ATIVOS? COMO FUNCIONA A PROTEÇÃO DIPLOMÁTICA? ENTÃO NÃO FOI UMA BOA ESTRATÉGIA ABRIR NEGOCIAÇÕES IMEDIATAMENTE? O CHANCELER CELSO AMORIM GARANTE QUE A LIDERANÇA DE LULA NA AMÉRICA LATINA SEGUE FIRME. ALÉM DA HUMILHAÇÃO, QUE OUTROS REFLEXOS A CRISE COM A BOLÍVIA PODE TRAZER? A FRANÇA E A ESPANHA TAMBÉM FORAM ATINGIDAS PELAS MEDIDAS DE MORALES. REAGIRAM COMO O BRASIL? O BRASIL PODERIA, ENTÃO, TER-SE RECUSADO A NEGOCIAR O REAJUSTE DO PREÇO DO GÁS BOLIVIANO? O BRASIL E A BOLÍVIA INTEGRAM A COMUNIDADE SUL-AMERICANA DE NAÇÕES. OS ATOS DE MORALES NÃO PODERIAM SER QUESTIONADOS NO ÂMBITO A POLÍTICA EXTERNA DO GOVERNO BRASILEIRO NAUFRAGOU? |
Morales ri do Brasil
Quando anunciou a nacionalização da indústria de hidrocarbonetos, no Dia do
Trabalho, o presidente Evo Morales deu à Petrobras seis meses para aceitar um
novo contrato, que parecia relegar a empresa brasileira ao simples papel de
prestadora de serviços como o texto do documento não foi divulgado, ninguém
sabe ao certo. Várias vezes a direção da estatal brasileira anunciou a disposição
de adotar uma atitude firme em defesa dos interesses da companhia, de seus acionistas
e do Brasil, mesmo que para isso fosse necessário encerrar suas operações na
Bolívia. No dia em que vencia o prazo, a Petrobras assinou a capitulação nos
termos impostos pelos bolivianos. Empolgado com a vitória fácil, Morales sentiu-se
à vontade para rir publicamente do Brasil. Em entrevista a jornalistas estrangeiros,
em La Paz, o presidente disse, em tom de deboche, que Lula deveria dar de presente
à Bolívia as duas refinarias da Petrobras no país. “Elas não são nada para o
Brasil”, disse o presidente boliviano.
Morales provavelmente não entendia que a Petrobras não pertencia a Lula, mas
a seus milhares de acionistas e ao Brasil. As refinarias em questão as únicas
da Bolívia foram compradas por 100 milhões de dólares do próprio governo boliviano.
A Petrobras investiu 1,5 bilhão de dólares para desenvolver os campos de extração
de gás natural na Bolívia. Visto que ao assinar o novo contrato o presidente
da estatal, José Sergio Gabrielli, abriu mão do direito de recorrer à Justiça
internacional, é bem provável que a empresa brasileira fosse ficar com o prejuízo.
Morales também confirmou que havia colocado o Exército de prontidão para invadir
as instalações da Petrobras, caso a empresa brasileira se negasse a aceitar
o contrato com as novas regras para a exploração de gás e petróleo.
Policial boliviano em frente à sede da
Petrobras em Santa Cruz de la Sierra, em
maio: planos para nova ocupação
O novo contrato aceito pela Petrobras foi o resultado de uma das três frentes
de negociação com o governo boliviano, iniciadas desde que o setor de gás e
petróleo foi nacionalizado por Morales, no “decreto supremo” de 1º de maio de
2006. As outras duas questões em discussão eram o reajuste exigido pela Bolívia
no preço do gás pago pelo Brasil e a indenização das refinarias tomadas da Petrobras.
Até então, o governo boliviano conseguira o que queria. Os contratos aceitos
pela Petrobras e outras nove petrolíferas estrangeiras não eram exatamente
o que Morales prometeu aos seus eleitores nacionalistas. Eram ainda melhores.
Se fossem mantidas as normas do decreto de nacionalização, as empresas estrangeiras
se veriam obrigadas a retirar-se do país. A estatal boliviana, a YPFB, não tinha
dinheiro nem pessoal capacitado para tocar a produção de petróleo e gás por
conta própria, e o setor entraria em colapso. “O discurso de Morales serviu
para mostrar como ele pretende pressionar as empresas estrangeiras a permanecer
na Bolívia, pagando um preço alto”, disse Ricardo Sennes, diretor da Prospectiva,
consultoria especializada em assuntos internacionais, de São Paulo.
Pelo novo contrato, a Petrobras (que operava metade das reservas de gás do país)
não só manteve suas atividades na Bolívia, como teria de pagar um imposto de
50%. O restante, descontados os custos de produção, seria dividido entre a Petrobras
e a estatal boliviana, encarregada do transporte e da comercialização do produto.
Os detalhes de como essa divisão seria feita ainda não estavam decididos. A
estatal brasileira teve de aceitar, também, que qualquer desavença envolvendo
o novo contrato fosse julgada na Bolívia, e não mais por um tribunal internacional.
De quebra, o governo boliviano obteve a promessa de novos investimentos em prospecção
e exploração. “A Petrobras e as outras empresas estrangeiras não tinham opção:
se não aceitassem o contrato, seriam expulsas e perderiam os investimentos já
feitos na Bolívia”, disse o advogado Jean-Paul Prates, da consultoria Expetro,
do Rio, especializada no mercado petrolífero.
Para a Petrobras, havia outra questão estratégica a ser considerada: metade
do gás consumido no Brasil era comprada da Bolívia, e o fornecimento poderia
ficar comprometido se a petrolífera brasileira tivesse de deixar o país vizinho.
Essa dependência em relação ao produto boliviano era o principal trunfo de Morales
na negociação de um novo preço para o gás exportado para o Brasil. O presidente
Néstor Kirchner, da Argentina, fechou um acordo com Morales para quadruplicar
a importação de gás boliviano. Kirchner se comprometeu a pagar 5 dólares por
milhão de BTU de gás, contra os 4,2 dólares pagos atualmente pelo Brasil. Morales
deveria usar esse fato como argumento nas negociações com a Petrobras, que seriam
retomadas. “O governo boliviano quer usar o acordo com a Argentina para mostrar
que, no futuro, não dependerá tanto do mercado consumidor brasileiro”, disse
Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura, do Rio.
A verdade é que o Brasil não precisaria renegociar o preço do gás, pois o contrato
em vigor valia até 2019 e o valor de importação seria atualizado trimestralmente.
Mas o desrespeito do governo de Evo Morales aos contratos já era notório. Adepto
da teoria de que os fins justificam os meios, Morales costumava dizer que a
expropriação do patrimônio brasileiro seria vital para tirar o povo boliviano
da miséria. Com o novo contrato de exploração de gás e petróleo, a Bolívia teria
uma renda adicional de 1 bilhão de dólares naquele ano. Como o presidente boliviano
usou esse dinheiro para reduzir a pobreza ainda é uma incógnita.
• Entenda a tensão entre oposição e governo na Bolívia
RESUMO
LÍDER
Ex-pastor de ovelhas da tribo dos aymarás, Evo Morales entrou na política como
líder dos plantadores de coca. Primeiro indígena a alcançar a Presidência do
país, no poder ele se tornou o principal pupilo de Chávez.
RETÓRICA
Nos comícios e entrevistas, Morales se aproveita da origem indígena para encarnar
o papel de líder autêntico do povo andino. Sempre sem terno – a jaqueta de couro
é inseparável -, gosta de ser visto discursando em meio a famílias de lavradores
e criancinhas com ponchos.
AMEAÇA ÀS INSTITUIÇÕES NACIONAIS
A exemplo de Chávez, o grande objetivo de Morales é reformar a Constituição
ainda que contra a vontade do Congresso eleito pelo povo. Para isso, mobilizou
indígenas para forçar a renúncia de governadores de oposição e tentou alterar
as regras para emendas à Carta, mas teve que obedecer as normas vigentes.
AMEAÇA À REGIÃO E À COMUNIDADE INTERNACIONAL
A nacionalização dos setores de gás e petróleo foi o primeiro passo, contando
com uma espalhafatosa ocupação de refinarias estrangeiras pelo Exército. A segunda
medida foi aumento do preço do gás fornecido ao Brasil. No futuro, Morales quer
tomar terras de brasileiros instalados no país, responsáveis pela produção de
um terço da soja boliviana.
PERSPECTIVAS
O radicalismo de Morales deverá ser contido pela realidade o fato de que seu
governo depende dos investimentos estrangeiros em geral e dos brasileiros em
particular. Sem a Petrobras, responsável pelo pagamento de 20% dos impostos,
o Estado boliviano ficaria sem dinheiro.
RELAÇÃO COM O BRASIL
Usando Chávez como escudo, Morales mantém uma relação ambígua com o Brasil:
diz-se amigo de Lula, mas, na prática, usa táticas hostis, como a ocupação das
refinarias da Petrobras. Além disso, faz declarações absurdas, como reivindicar
direitos sobre o Estado do Acre comprado pelo Brasil junto aos bolivianos
no século XIX.