Home EstudosLivros Nome, de Arnaldo Antunes

Nome, de Arnaldo Antunes

by Lucas Gomes

Lançado em 1993, Nome foi o primeiro trabalho solo de Arnaldo
Antunes após sua saída dos Titãs. O repertório é
composto de clipes elaborados a partir de poemas e canções, através
dos quais Arnaldo se utiliza de diversos recursos – como colagem, caligrafia,
vídeo, fotografia e desenho, entre outros – para inserir movimento às
palavras lidas e ouvidas. Alguns clipes contaram com a participação
de Marisa Monte, Edgard Scandurra, Arthur Fontes e Walter Silveira.

O mundo é matéria. O mundo é um cavalo”.
É assim que começa o notável capítulo de Iuri Lotman
e Boris Uspenskij (1975): o nome, o mito. Aí eles dizem que, no caso
de uma formulação como o mundo é matéria, trata-se
de metalinguagem. No caso de o mundo é um cavalo – língua
objeto – inicia-se, de fato, uma operação mitológica.
Esse pode ser um ponto de partida para se viajar nesse projeto de Arnaldo Antunes,
chamado Nome. Aliás, qualquer que seja a aproximação
que se faça ao conjunto, em livro, em CD, em vídeo, percebe-se
que a diversidade de meios procura dar conta de uma unidade surpreendente, busca,
em todos os seus alcances, da operação de nominar e de discutir:
“algo, nome, isso, homem, osso, fóssil”.

Em causa, o objeto e suas transposições referenciais, rumo a
assegurar outro ou muitos sentidos, a remessa a operações míticas
ou à sua consequente desmitificação. Algo se confirma
e se renova, enquanto permanece a unidade plena da proposta e se realiza uma
poética – sonoridade-visualidade – calcada na experiência.
Reunião de várias linguagens (ver, ouvir, tocar), dar nome significa
recriar e inaugurar o que parece vir acompanhando e até “roteirizando”
a obra de Arnaldo Antunes, até chegar a mais esse vôo decisivo.

Nome não é apenas uma experiência lúdica
de grande efeito, embora o seja o tempo inteiro. Brincar com letras, formas,
cores, nomes é criação lógica, metalinguística
e também démarche mitológica.

Projeta-se um futuro mais aberto como conquista de linguagem, resgatam-se
razões mito-poéticas arqueológicas. Situando-se nesse eixo,
gira desfuncionalizando as funções e restituindo aos objetos sua
condição primeira, sua relação mais contígua
ou mais díspar. Lembro, a propósito, alguns trabalhos de Joseph
Beuys que, em viagens intersígnicas, procura descascar a nominação
mais corrente das associações mais habituais. Em seu vídeo
performático, a noção de mel é conseguida, a partir
de sucessivas cascas retiradas de uma parede, depositadas numa bandeja, para
culminar com uma imagem que evoca um enxame de abelhas. Também ele se
liga, com intensidade, à definição e à nominação:
“Democracia é alegre”, nos diz, por meio de um cartão
postal, oferecendo, enquanto isso, sua imagem de cidadão que passa entre
guardas ferozes e cães amestrados. Seguindo a trajetória poética
de Antunes, sentimos que sua preocupação pelo objeto não
conduz à “coisificação”, como em alguns procedimentos
do noveau roman, mas à junção reveladora: Tudos (note-se
o plural) e Coisas já apontam para Nome.

Denominar é algo análogo a pregar uma etiqueta numa coisa, diz
Wittgenstein das Investigações filosóficas, enquanto procura
encontrar um nome para algo é sempre um jogo. Definir de forma diferente,
eu acho que é um dos maiores desafios a que podemos nos submeter. Para
deixar a “linguagem entrar em férias”, para alcançar
a plenitude do jogo, Nome lança mão dos procedimentos
mais variados, e em cada um dos veículos em que se constrói, há
uma perfeita integração de séries, de suportes e de linguagens.
Em todas ocorre a realização compatível com o próprio
suporte e uma sensibilidade integradora. Uma vez nominando ou definindo, desinstala-se
o habitual, para que se encontre uma nova “linguagem”. Denominar
pode parecer também uma ligação estranha de uma palavra
com um objeto, tanto que, nesse jogo aberto de possibilidades, algumas opções
se firmam mais claramente: isso é aquilo ou isso pode se chamar aquilo.
Em operação lógica e mitológica, associando-se nome
a cor, faz-se com que os objetos sejam vistos sob várias transferências:
“árvore pode ser chamada de”. Também quanto ao lugar,
o espaço requer a construção e passagem de um logos a outro,
sendo que o tempo pode ser contraído e dilatado, e o objeto pode perder,
por exemplo, as ligações com sua condição precedente
e tornar-se um outro objeto. Pode relacionar-se com partes de sua significação,
já assentada anteriormente. No caso do cavalo, um dos ícones principais
de Nome, será pintada a inscrição cavalo, para que se confirme
sua condição, e há muita sutileza no fato de ser a tinta
lavável, alívio para o animal e para nós, o que faz também
com que não se eternize essa condição. Na vaca, couro escrito
num painel nos leva a muitas relações, da parte para o todo, seus
fins e usos, patética confirmação!

Há muito mais alcance do que se pode pensar na relação
do som com o sentido e a visualidade, e ainda uma predisposição
grafemática. A escrita completa, e, ao mesmo tempo, desfaz condições
trazidas pelo nome, a memória, aqui, como em outras partes, vai buscando
os seus suportes adequados: caligrafias em russo, por exemplo e motivos rupestres.
Em cada uma das sequências de Nome a metonímia enquanto contiguidade
se insinua; em se tratando de bichos, pelúcia, ferro, madeira e com os
elementos da natureza fundamentalmente presentes, a água molhando a água
nos leva à definição de ponte: “A ponte é
onde chove o rio embaixo dela”.

Tem-se, enquanto isso, e no desenrolar, uma construção triunfal,
que é própria fabricação das letras metálicas.
Explora-se a consistência do metal, a dimensão e o volume, a própria
condição letrada da letra – articulação e
materialização concreta do nome – que nos oferece a possibilidade
de contemplar a tarefa física do trabalho. Nominação é,
então, um árduo empenho, como o deslizar dos sons, das cores e
das tintas. Essa sequência nos faz pensar em Nome como um experimento
notável, pela densidade de linguagens com que opera, pelo alto investimento
técnico e o alcance do próprio conceito da Poética transígnica.
Tive a ocasião de observar o alcance e comunicação do vídeo,
quando o exibi na entrada das salas de conferência, na Universidade de
Lund – Suécia, e diante do interesse hipnótico das pessoas.
Ainda mais porque, não entendendo português, o desafio das construções
de som-imagem terminavam por criar outras associações. Lembro
do fascínio e da perplexidade das pessoas, ao ritmo das garatujas que,
em som e batuque vão delineando a palavra carnaval, em sugestão
muito plena.

Dialogando com Décio Pignatari, com Augusto e Haroldo de Campos, passa
por Camões e pelo barroco, e aprende de Pessoa aquilo que é inconfundível.
O zen de Alberto Caieiro, a nominação que leva Antunes a dizer:
“Os nomes dos bichos não são os bichos”, “só
os sons são sons”, e quase vamos completando maquinalmente com
Alberto Caieiro: “a cor é que tem cor nas asas da borboleta…”.

Nome apresenta, de fato, uma síntese com que só as
grandes poéticas atinam, a dicotomia em processo em que se assentam algumas
questões da antropologia. Campo e cidade são dois pólos
bem situados, os impasses dessa relação são deixados entrever
e até postos em ironia. Joga com a visualidade urbana, vampirizante e
intensificada por toda a máquina de interdições e de cortes
que nos acometem. É performatizada, com grandeza, a máquina do
confinamento e da loucura, cela ou hospício em que a escrita se transforma
em garatujas. O próprio título de uma sequência Não
tem que é a predisposição mais completa ao caos que se
aproxima.

O campo que, por sua vez, aparece em imagem serena e definidora, mas nem tanto,
pois abre para o jogo de significação em abismo: “O campo
tem terras e as coisas plantadas nela / a terra pode ser chamada de chão
/ é tudo que se vê se o campo for de visão”.

Alta noite é o desafio da instalação que aponta para
a nossa incomunicabilidade urbana, e nos fica o eco da participação
de João Donato e da voz de Marisa Monte, tudo perfeito… como um
túnel passamos pelo branco e viajamos, sem ponto de chegada, mas com
a certeza de que foi essa uma das mais importantes realizações
dessa década.

A lógica-mitológica que nos traz Antunes em seu projeto de criação
nos remete a Bestiários, compilações medievais que transmitem
os estatutos dos bichos, seu modo de ser e de agir, as razões morais
de suas práticas. Há neles dois tipos de aproximação:
o tom moralizador e a obsessão em definir e dar nome. Num muito famoso,
o de Brunetto Latino, encontra-se: “A avestruz é uma besta de grande
porte que tem asas e penas como um pássaro e os pés semelhantes
aos do camelo”. E aí, quando vamos em busca do camelo, encontramos:
“Há duas espécies de camelo… Os maiores vem da Arábia
e possuem duas corcovas sobre as costas… os camelos menores são
chamados dromedários”; topamos com a definição de
hipopótamo nos termos seguinte: “É um peixe chamado de cavalo
do rio” ou de abelhas, como sendo moscas que fazem mel.

No roteiro de Nome, rumo a livrar-se de todas as cascas impostas pelos sentidos
petrificados e em direção à linguagem infantil, alcança-se,
de fato, o modo de denominar dos Bestiários que, em certa medida, passou
para as cartilhas tradicionais de aprendizagem: “o gerino é o peixinho
do sapo”, o “camelo é cavalo sem sede”, definições
por contiguidade ou exclusão, marcas de uma poética que vai
elaborar sentidos substantivos e fundantes, como aqueles que encontramos quando
opomos alguém a ninguém, isso a aquilo, em demandas de entendimento.

Na sequência desse texto, vem o espetáculo Nome,
em que Antunes se apresenta com sua banda, canta e dança. Na cena, projetada
em imensas camisas brancas iguais às que usa, estão visíveis
as imagens dos seus sons, cantos, trechos daquilo que o vídeo traz, o
que o CD alude.

O interessante é que aqui se forma numa complementaridade, como se
antes faltasse o corpo, em presença, quando também dá conta
de todo esse processo mito-poético de nominação. Então,
podemos falar das ligações com os ritos, polifonia da informação,
no dizer de Roland Barthes; da escritura do corpo, como queria Zumthor, que
vê nisso o modelo absoluto de toda poesia oral.

Integra-se a voz que traz a linguagem a um grafismo traçado pela presença
do artista. Arnaldo Antunes, o trovador contemporâneo – recuperando
nessa integração performatizada muito do que perdemos quando estilhaçamos
as percepções: sons, imagens, tato, nome.

O vídeo inicia-se com o poema “Nome”, operando colagens que
evoluem para uma fusão de palavras. Diz o poema:

algo é o nome do homem
coisa é o nome do homem
homem é o nome do cara
isso é o nome da coisa
cara é o nome do rosto
fome é o nome do moço
homem é o nome do troço
osso é o nome do fóssil
corpo é o nome do morto
homem é o nome do outro

O homem definha para o estágio de coisa, depois de ser reduzido pela
fome, à morte e à fossilização. Entre versos substantivos
conectados pelo verbo ser, o poema mergulha na essência do homem e conclui
que “homem é o nome do outro”. Quer seja: este (isto) não
é homem, é resíduo, é escória, é lixo.

Por isto mesmo a sequência de imagens que funde palavras culmina
num monte de lixo. Lixo colorido, é verdade. Lixo que, à primeira
vista, parece uma tela abstrata, com suas formas e cores superpostas e interpenetráveis.
Mas este parangolé multicor vai aos poucos definindo contornos. Então
o lixo emerge do luxo. Referência ao nominalismo do primeiro Drummond
e do eterno Cabral. Citação plástica da visualidade gráfico-poética
do poema luxo/lixo de Augusto de Campos. Enfim: poesia engagée
antipanfletária, profundamente social na socialização interativa
de linguagens e códigos, ideias e formas.

A seguir vem “Carnaval”, poema escrito, inscrito manualmente, com
caneta hidrográfica. Poema que se revela e desaparece ao risco dos riscos
das letras e rabiscos. Comentário ao poesia é risco de Augusto
de Campos? Quem sabe. O certo é que Arnaldo comenta, poeticamente, o
postulado saussureano de que os signos são arbitrários. Confirmando
a afirmação do linguista, o poema diz

“árvore pode ser chamada de pássaro
pode ser chamado
de máquina
pode ser chamada de carnaval
carnaval carnaval…
“.

Atenção para o uso de trocadilho chamada/chamado que quebra de
imediato a vinculação do signo ao seu significado ao instituir
o ícone do significado e do significante em permutação
a partir da troca de uma vogal e da mudança de categoria gramatical dos
termos: ambos admitem a permuta entre verbo e substantivo. árvore pode
ser chamada de pássaro: árvore pode encerrar o ato de chamar,
de chamamento; ou toque de reunião. Este percurso do significado para
o significante aparece no vídeo através do recurso machadiano
de afirmar e negar (ou mesmo apagar) o dito, como, por ex. em Dom Casmurro,
um romance todo escrito para ser apagado ou mesmo negado.

Valendo-se do preceito saussureano Arnaldo afirma e nega, carnavalizando o
conceito ao final com a palavra carnaval, também ela apagada – e coberta
de negro, o inverso do carnaval. Se o carnaval, como nos lembra Bakhtin, é
o dia a dia às avessas, Arnaldo Antunes inverte o carnaval – um comentário
à expressão de Décio Pignatari “avesso do avesso”,
já apropriada por Caetano Veloso em Sampa? Pássaro pode ser chamado
de máquina: máquina voadora: o avião. O próprio
Super-Homem: um pássaro ou avião?

A causticidade de Arnaldo Antunes soma árvore a pássaro e a máquina
para acabar em carnaval – ou no quadro negro, literalmente. Mais uma vez o quadro
branco (white board) é substituído pelo seu avesso, num processo
que vai do atual (quadro branco e hidrográfica) ao antigo (quadro negro
e giz). Assim como vai da natureza (árvore) à civilização
(máquina). Enfim, nada é apenas o que aparenta ser: é também
outro um ser e um outro ente. Ideia que já estava contida no poema
que abre o vídeo:

algo é o nome do homem
homem é o nome do outro
“.

O vídeo se fecha com a poemúsica “Alta noite”, sucesso
nas paradas musicais na voz de Marisa Monte. Mas se no clip feito para a TV
as imagens são plácidas, aqui elas se embrenham no espaço
claustrofóbico de um túnel, deixando ouvir o ruído de estranhos
objetos que chocam-se com o carro. O percurso, enfim, é grave (voz do
Arnaldo) e agudo (voz da Marisa); é musical e tem ruído; é
poesia e música; é claro e escuro; é branco e preto; é
de movimento e espaço fechado. Ou seja, o túnel é um canal
que leva deste para outro lugar.

Enfim: o homem que era coisa (e luxo no lixo) agora é um ser em transição,
no meio da noite, dentro de um túnel. Inevitavelmente o espectador relaciona
tais imagens e sons ao sol negro da melancolia benjaminiana. Tudo ao movimento
de dois enigmas: o carro (que nunca aparece) e o homem dirigindo (sem rosto,
sem corpo).

Ao final tudo pára: foi a vida ou o automóvel? Mais uma dúvida
drummondiana permeia a poesia de Arnaldo Antunes. O jovem poeta concreto é
mais concreto (ainda) do que se pensa num primeiro relance. Sorte de seu público,
que abandonou a sonífera ilha e hoje pode curtir o silêncio, um
som, ninguém, nome. Nomes.

Enfim, Arnaldo Antunes é um artista multimídia aprontando em
poesia em várias frentes. Um poeta que trabalha a palavra (sempre a palavra)
com habilidade, garra, razão e emoção. Enfim, um poeta-criador-semioticista
esclarecido e esclarecedor das coisas e artes do nosso tempo.

Créditos: Jerusa Pires Ferreira, De sons e signos: música,
mídia e contemporaneidade”, organização, Lia Tomás
– São Paulo – EDUC – 1998 | Amador Ribeiro Neto,
Professor da Universidade Federal da Paraíba – UFPB

Posts Relacionados