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O Segredo do Bonzo (Conto de Papéis avulsos), de Machado de Assis

by Lucas Gomes

Narrado em 1ª pessoa, tendo como subtítulo “Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto”, o conto O
segredo do Bonzo
surge da narração de um fato absurdo, mas que possui um profundo sentido: a virtude
e o saber tem duas existências paralelas: uma no sujeito possuidor; outra, no espírito de quem ouve ou
contempla, pois “não há espetáculo sem espectador”. A moral do conto é: “a essência é a aparência”.

Fernão Mendes Pinto (1510-1583) viajante e escritor português de vida bastante acidentada. No livro
póstumo, Peregrinações, deixou registradas as aventuras e as observações das viagens que fez pelo
Extremo Oriente. Suas narrativas foram consideradas, durante muito tempo, puras invencionices,
inspirando o trocadilho: Fernão, mentes? – Minto.

Segundo o narrador, “uma coisa pode existir na opinião sem existir na realidade” e vice-versa. Por isso,
“não nos cabe inculcar aos outros uma opinião que não temos, e sim a opinião de uma qualidade que não
possuímos”. O conto analisa a capacidade que alguns homens têm de persuadir o próximo.

Com O Segredo do Bonzo (publicado em Papéis Avulsos, de 1882), Machado de Assis retoma uma
disputa teológica narrada por Mendes Pinto: no exótico Japão, um padre português é invejado por
sacerdotes budistas devido aos favores que o rei lhe dispensava. Percebendo as discretas indicações de
Mendes Pinto, que, propositadamente, omite a resposta do padre aos Bonzos, o escritor brasileiro escapa
ao óbvio, pois percebe que toda a disputa, aparentemente religiosa, na verdade consistia numa luta pelo
prestígio social e favores reais
, transformando, assim, os Bonzos em charlatões que enriquecem às
custas da crendice do povo e desmascarando a predominância da opinião sobre a realidade das coisas.

O narrador do conto O segredo do Bonzo fala do que viu na cidade de Funchéu, onde andava com um
amigo, Diogo Meireles. Em um ajuntamento de pessoas, alguém que se dizia matemático, físico e filósofo,
afirmava ter descoberto a origem dos grilos: eles surgem da agitação do ar e das folhas de coqueiros. Em
outra multidão, um homem dizia ter descoberto o princípio da vida futura, que estava em “uma certa gota
de vaca”. O narrador então fica sabendo que nos dois casos estava sendo aplicada uma doutrina criada por
um homem de muito saber, um bonzo de nome Pomada.

Os dois personagens fazem uma visita ao sábio Pomada, que assim resume sua doutrina: “A virtude e o saber
tem duas existências paralelas: uma, no sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem ou
contemplam.” Assim, segue o sábio, uma coisa pode existir na opinião sem existir na realidade. De outro
lado, uma coisa pode existir na realidade sem existir na opinião. Disso ele conclui que “das duas
realidades paralelas, a única necessária é a da opinião”. Eis aí a essência do pomadismo. O bonzo
pomadista, como se vê, monta sua doutrina a partir de uma afirmação trivialmente verdadeira: uma coisa
pode existir na opinião sem existir na realidade, e existir na realidade sem existir na opinião. A seguir
o bonzo conclui: a única existência necessária é a da opinião. Isso, diz ele, é um “achado especulativo”.
O jogo do bonzo, diz o narrador, consiste em “meter idéias e convicções nos outros”. Um de seus
seguidores, Titané, o alparqueiro, usa o jornal para propagandear suas alparcas comuns, fazendo crer que
elas são maravilhosas. O narrador do conto, por sua vez, ao praticar a doutrina, faz de conta que toca a
charamela (um antepassado da clarineta) para uma audiência que se maravilha ouvindo … nada! Diogo
Meireles, por sua vez, encontra pessoas portadoras de uma doença que torna os narizes horrendos, e
convence-as a deixarem que ele arranque os narizes. Eles serão substituídos por um “nariz são, mas de
pura natureza metafísica, isto é, inacessível aos sentidos humanos”. Os viventes, desnarigados, ficam
muito felizes com o novo nariz inexistente.

Nota: Bonzo = monge, servidor de um templo, estudioso de teologia e outras ciências humanas. No
oriente antigo (século V a XV), a tradução da palavra Bonzo se refere ao homem religioso, sacerdote ou
não, que por sua cultura geral, serve de conselheiro, psicólogo, curandeiro de males físicos e
espirituais, além de mediador de discussões e desentendimentos em sua comunidade.

Leia o conto na íntegra:

O SEGREDO DO BONZO

CAPÍTULO INÉDITO DE FERNÃO MENDES PINTO

Atrás deixei narrado o que se passou nesta cidade Fuchéu, capital do reino de Bungo, com o Padre-mestre
Francisco, e de como el-rei se houve com o Fucarandono e outros bonzos, que tiveram por acertado disputar
ao padre as primazias da nossa santa religião. Agora direi de uma doutrina não menos curiosa que saudável
ao espírito, e digna de ser divulgada a todas as repúblicas da cristandade.

Um dia, andando a passeio com Diogo Meireles, nesta mesma cidade Fuchéu, naquele ano de 1552, sucedeu
deparar-se-nos um ajuntamento de povo, à esquina de uma rua, em torno a um homem da terra, que discorria
com grande abundância de gestos e vozes. O povo, segundo o esmo mais baixo, seria passante de cem
pessoas, varões somente, e todos embasbacados. Diogo Meireles, que melhor conhecia a língua da terra,
pois ali estivera muitos meses, quando andou com bandeira de veniaga (agora ocupava-se no exercício da
medicina, que estudara convenientemente, e em que era exímio) ia-me repetindo pelo nosso idioma o que
ouvia ao orador, e que em resumo, era o seguinte: – Que ele não queria outra cousa mais do que afirmar a
origem dos grilos, os quais procediam do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova; que este
descobrimento, impossível a quem não fosse, como ele, matemático, físico e filósofo, era fruto de
dilatados anos de aplicação, experiência e estudo, trabalhos e até perigos de vida; mas enfim, estava
feito, e todo redundava em glória do reino de Bungo, e especialmente da cidade Fuchéu, cujo filho era; e,
se por ter aventado tão sublime verdade, fosse necessário aceitar a morte, ele a aceitaria ali mesmo,
tão certo era que a ciência valia mais do que a vida e seus deleites.

A multidão, tanto que ele acabou, levantou um tumulto de aclamações, que esteve
a ponto de ensurdecer-nos, e alçou nos braços o homem bradando: Patimau, Patimau,
viva Patimau, que descobriu a origem dos grilos. E todos se foram com ele ao alpendre
de um mercador, onde lhe deram refrescos e lhe fizeram muitas saudações e reverências,
à maneira deste gentio, que é em extremo obsequioso e cortesão.

Desandando o caminho, vínhamos nós, Diogo Meireles e eu, falando do singular achado da origem dos grilos,
quando, a pouco distância daquele alpendre, obra de seis credos, não mais, achamos outra multidão de
gente, em outra esquina, escutando a outro homem. Ficamos espantados com a semelhança do caso, e Diogo
Meireles, visto que também este falava apressado, repetiu-me da mesma maneira o teor da oração. E dizia
este outro, com grande admiração e aplauso da gente que o cercava, que enfim descobrira o princípio da
vida futura, quando a terra houvesse de ser inteiramente destruída, e era nada, menos que uma certa gota
de sangue de vaca; daí provinha a excelência da vaca para habitação das almas humanas, e o ardor com que
esse distinto animal era procurado por muitos homens à hora de morrer; descobrimento que ele podia
afirmar com fé e verdade, por ser obra de experiências repetidas e profunda cogitação, não desejando nem
pedindo outro galardão mais que dar glória ao reino de Bungo e receber dele a estimação que os bons
filhos merecem. O povo, que escutara esta fala com muita veneração, fez o mesmo alarido e levou o homem
ao dito alpendre, com a diferença que o trepou a uma charola; ali chegando, foi regalado com obséquios
iguais aos que faziam a Patimau. Não havendo nenhuma distinção entre eles, nem outra competência nos
banqueteadores, que não fosse a de dar graças a ambos os banqueteados.

Ficamos sem saber nada daquilo, porque nem nos parecia casual semelhança exata
dos dous encontros, nem racional ou crível a origem dos grilos, dada por Patimau,
ou o princípio da vida futura, descoberto por Languru, que assim se chamava o
outro. Sucedeu, porém, costearmos a casa de um certo Titané, alparqueiro, o qual
correu a falar a Diogo Meireles, de quem era amigo. E, feitos os cumprimentos,
em que o alparqueiro chamou as mais galantes cousas a Diogo Meireles, tais como
– ouro da verdade e sol do pensamento, – contou-lhe este o que víramos e ouvíramos
pouco antes. Ao que Titané acudiu com grande alvoroço: – Pode ser que eles andem
cumprindo uma nova doutrina, dizem que inventada por um bonzo de muito saber,
morador em umas casas pegadas ao monte Coral. E porque ficássemos cobiçosos de
ter alguma notícia da doutrina, consentiu Titané em ir conosco no dia seguinte
às casas do bonzo, e acrescentou: – Dizem que ele não a confia a nenhuma pessoa,
se não às que de coração se quiserem filiar a ela; e, sendo assim, podemos simular
que o queremos unicamente com o fim de a ouvir; e se for boa, chegaremos a praticá-la
à nossa vontade.

No dia seguinte, ao modo concertado, fomos às casas do dito bonzo, por nome Pomada, um ancião de cento e
oito anos, muito lido e sabido nas letras divinas e humanas, e grandemente aceito a toda aquela
gentilidade, e por isso mesmo mal visto de outros bonzos, que se finavam de puro ciúme. E tendo ouvido o
dito bonzo a Titané quem éramos e o que queríamos, iniciou-nos primeiro com várias cerimônias e bugiarias necessárias à recepção da doutrina, e só depois dela é que alçou a voz para confiá-la e explicá-la.

– Haveis de entender, começou ele, que a virtude e o saber têm duas existências
paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem ou
contemplam. Se puserdes as mais sublimes virtudes e os mais profundos conhecimentos
em um sujeito solitário, remoto de todo contato com outros homens, é como se eles
não existissem. Os frutos de uma laranjeira, se ninguém os gostar, valem tanto
como as urzes e plantas bravias, e, se ninguém os vir, não valem nada; ou, por
outras palavras mais enérgicas, não há espetáculo sem espectador. Um dia, estando
a cuidar nestas cousas, considerei que, para o fim de alumiar um pouco o entendimento,
tinha consumido os meus longos anos, e, aliás, nada chegaria a valer sem a existência
de outros homens que me vissem e honrassem; então cogitei se não haveria um modo
de obter o mesmo efeito, poupando tais trabalhos, e esse dia posso agora dizer
que foi o da regeneração dos homens, pois me deu a doutrina salvadora.

Neste ponto, afiamos os ouvidos e ficamos pendurados da boca do bonzo, o qual, como lhe dissesse Diogo Meireles que a língua da terra me não era familiar, ia falando com grande pausa, por que o que me deu idéia da nova doutrina; foi nada menos que a pedra da lua, essa insigne pedra tão luminosa que, posta no cabeço de uma montanha ou no píncaro de uma torre, dá claridade a uma campina inteira, ainda a mais dilatada. Uma tal pedra, com tais quilates de luz, não existiu nunca, e ninguém jamais a viu; mas muita gente crê que existe e mais de um dirá que a viu com os seus próprios olhos. Considerei o caso, e entendi que, se uma cousa pode existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas conveniente. Tão depressa fiz este achado especulativo, como dei graças a Deus do favor especial, e determinei-me a verificá-lo por experiências; o que alcancei, em mais de um caso, que não relato, por vos não tomar o tempo. Para compreender a eficácia do meu sistema basta advertir que os grilos não podem nascer do ar e das folhas de coqueiro, na conjunção da lua nova, e por outro lado, o princípio da vida futura não está em uma certa gota de sangue de vaca; mas Patimau e Languru, varões astutos, com tal arte souberam meter estas duas idéias no ânimo da multidão, que hoje desfrutam a nomeada de grandes físicos e maiores filósofos, e têm consigo pessoas capazes de dar a vida por eles.

Não sabíamos em que maneira déssemos ao bonzo as mostras do nosso vivo contentamento
e admiração. Ele interrogou-nos ainda algum tempo, compridamente, acerca da doutrina
e dos fundamentos dela, e depois de reconhecer que a entendíamos, incitou-nos
a praticá-la, a divulgá-la cautelosamente, não porque houvesse nada contrário
às leis divinas ou humanas, mas porque a má compreensão dela podia daná-la e perdê-la
em seus primeiros passos; enfim, despediu-se de nós com a certeza (são palavras
suas) de que abalávamos dali com a verdadeira alma de pomadistas; denominação
esta que, por se derivar do nome dele, lhe era em extremo agradável.

Com efeito, antes de cair a tarde, tínhamos os três combinado em pôr por obra uma idéia tão judiciosa quão lucrativa, pois não é só lucro o que se pode haver em moeda, senão também o que traz consideração e louvor, que é outra e melhor espécie de moeda, conquanto não dê para comprar damascos ou chaparias de ouro. Combinamos, pois, à guisa de experiência, meter cada um de nós, no ânimo da cidade Fuchéu, uma certa convicção, mediante a qual houvéssemos os mesmos benefícios que desfrutavam Patimau e Languru; mas, tão certo é que o homem não olvida o seu interesse, entendeu Titané que lhe cumpria lucrar de duas maneiras, cobrando da experiência ambas as moedas, isto é, vendendo também as suas alparcas, ao que nos não opusemos, por nos parecer que nada tinha isso com o essencial da doutrina.

Consistiu a experiência de Titané em uma cousa que não sei como diga para que
a entendam. Usam neste reino de Bungo, e em outros destas remotas partes, um papel
feito de casca de canela moída e goma, obra mui prima, que eles talham depois
em pedaços de dois palmos de comprimento, e meio de largura, nos quais desenham
com vivas e variadas cores, e pela língua do país, as notícias da semana, políticas,
religiosas, mercantis e outras, as novas leis do reino, os nomes das fustas, lancharas,
balões e toda a casta de barcos que navegam estes marés, ou em guerra, que a há
freqüente, ou de veniaga. E digo as notícias da semana, porque as ditas folhas
são feitas de oito em oito dias, em grande cópia, e distribuídas ao gentio para
ter as notícias primeiro que os demais moradores. Ora, o nosso Titané não quis
melhor esquina que este papel, chamado pela nossa língua Vida e claridade das
cousas mundanas e celestes, título expressivo, ainda que um tanto derramado. E,
pois, fez inserir no dito papel que acabavam de chegar notícias frescas de toda
a costa de Malabar e, da China, conforme as quais não havia outro cuidado que
não fossem as famosas alparcas dele Titané; que estas alparcas eram chamadas as
primeiras do mundo, por serem mui sólidas e graciosas; que nada menos de vinte
e dous mandarins iam requerer ao imperador para que, em vista do esplendor das
famosas alparcas de Titané, as primeiras do universo, fosse criado o título honorífico
de “alparca do Estado”, para recompensa dos que se distinguissem em qualquer disciplina
do entendimento; que eram grossíssimas as encomendas feitas de todas às partes,
às quais ele Titané ia acudir, menos por amor ao lucro do que pela glória que
dali provinha à nação; não recuando, todavia, do propósito em que estava e ficava
de dar de graça aos pobres do reino umas cinqüenta corjas das ditas alparcas,
apesar da primazia no fabrico das alparcas assim reconhecida em toda a terra,
ele sabia os deveres da moderação, e nunca se julgaria mais do que um obreiro
diligente e amigo da glória do reino de Bungo.

A leitura desta notícia comoveu naturalmente a toda a cidade Fuchéu, não se falando em outra cousa durante toda aquela semana. As alparcas de Titané, apenas estimadas, começaram de ser buscadas com muita curiosidade e ardor, e ainda mais nas semanas seguintes, pois não deixou ele de entreter a cidade, durante algum tempo, com muitas e extraordinárias anedotas acerca de sua mercadoria. E dizia-nos com muita graça: – Vede que obedeço ao principal da nossa doutrina, pois não estou persuadido da superioridade das tais alparcas, antes as tenho por obra vulgar, mas fi-lo crer ao povo, que as vem comprar agora, pelo preço que lhes taxo. – Não me parece, atalhei, que tenhais cumprido a doutrina em seu rigor e substância, pois não nos cabe inculcar aos outros uma opinião que não temos, e sim a opinião de uma qualidade que não possuímos; este é, ao certo, o essencial dela.

Dito isto, assentaram os dous que era a minha vez de tentar a experiência, o que
imediatamente fiz; mas deixo de a relatar em todas as suas partes, por não demorar
a narração da experiência de Diogo Meireles, que foi a mais decisiva das três,
e a melhor prova desta deliciosa invenção do bonzo. Direi somente que, por algumas
luzes que tinha de música e charamela, em que aliás era mediano, lembrou-me congregar
os principais de Fuchéu para que me ouvissem tanger o instrumento; os quais vieram,
escutaram e foram-se repetindo que nunca antes tinham ouvido cousa tão extraordinária.
E confesso que alcancei um tal resultado com o só recurso dos ademanes, da graça
em arquear os braços para tomar a charamela, que me foi trazida em uma bandeja
de prata, da rigidez do busto, da unção com que alcei os olhos ao ar, e do desdém
e ufania com que os baixei à mesma assembléia, a qual neste ponto rompeu em um
tal concerto de vozes e exclamações de entusiasmo, que quase me persuadiu do meu
merecimento.

Mas, como digo, a mais engenhosa de todas as nossas experiências, foi a de Diogo
Meireles. Lavrava então na cidade uma singular doença, que consistia em fazer
inchar os narizes, tanto e tanto, que tomavam metade e mais da cara ao paciente,
e não só a punham horrenda, senão que era molesto carregar tamanho peso. Conquanto
os físicos da terra propusessem extrair os narizes inchados, para alívio e melhoria
dos enfermos, nenhum destes consentia em prestar-se ao curativo, preferindo o
excesso à lacuna, e tento por mais aborrecível que nenhuma outra cousa a ausência
daquele órgão. Neste apertado lance mais de um recorria à morte voluntária, como
um remédio, e a tristeza era muita em toda a cidade Fuchéu. Diogo Meireles, que
desde algum tempo praticava a medicina, segundo ficou dito atrás, estudou a moléstia
e reconheceu que não havia perigo em desnarigar os doentes, antes era vantajoso
por lhes levar o mal, sem trazer fealdade, pois tanto valia um nariz disforme
e pesado como nenhum; não alcançou, todavia, persuadir os infelizes ao sacrifício.
Então ocorreu-lhe uma graciosa invenção. Assim foi que, reunindo muito físicos,
filósofos, bonzos, autoridades e povo, comunicou-lhes que tinha um segredo para
eliminar o órgão; e esse segredo era nada menos que substituir o nariz achacado
por um nariz são, mas de pura natureza metafísica, isto é, inacessível aos sentidos
humanos, e contudo tão verdadeiro ou ainda mais do que o cortado: cura esta praticada
por ele em várias partes, e muito aceita aos físicos de Malabar. O assombro da
assembléia foi imenso, e não menor a incredulidade de alguns, não digo de todos,
sendo que a maioria não sabia que acreditasse, pois se lhe repugnava a metafísica
do nariz cedia entretanto à energia das palavras de Diogo Meireles, ao tom alto
e convencido com que ele expôs e definiu o seu remédio. Foi então que alguns filósofos,
ali presentes, um tanto envergonhados do saber de Diogo Meireles, não quiseram
ficar-lhe atrás, e declararam que havia bons fundamentos para uma tal invenção,
visto não ser o homem todo outra cousa mais do que um produto da idealidade transcendental;
donde resultava que podia trazer, com toda a verossimilhança, um nariz metafísico,
e juravam ao povo que o efeito era o mesmo.

A assembléia aclamou a Diogo Meireles; e os doentes começaram de buscá-lo, em tanta cópia, que ele não
tinha mãos a medir. Diogo Meireles desnarigava-os com muitíssima arte; depois estendia delicadamente os
dedos a uma caixa, onde fingia ter os narizes substitutos, colhia um e aplicava-o ao lugar vaio. Os
enfermos, assim curados e supridos, olhavam uns para os outros, e não viam nada no lugar do órgão
cortado; mas, certos e certíssimos de que ali estava órgão substituto, e que este era inacessível aos
sentidos humanos, não se davam por defraudados, e tornavam aos seus ofícios. Nenhuma outra prova quero
da eficácia da doutrina e do fruto dessa experiência, senão o fato de que todos os desnarigados de Diogo
Meireles continuaram a prover-se dos mesmos lenços de assoar. O que tudo deixo relatado para glória do
bonzo e benefício do mundo.

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