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O arado, de Zila Mamede

by Lucas Gomes

O arado

, de Zila Mamede, publicado em 1959, é o terceiro livro da autora.
É também prefaciado por Luís da Câmara Cascudo que dele diz: Todos os
poemas nasceram no chão sagrado, com chuva do Céu e suor dos rostos vigilantes,
surgidos na inspiração provocadora de uma inegável vivência emocional
.

O estilo mamedino é marcado pela poesia de presentificação das memórias da infância. Sua linguagem é
marcada por vocábulos típicos da realidade do Nordeste, ligando o homem ao campo. Zila Mamede compõe uma
representação do Nordeste a partir da recriação de imagens de sua infância, através de uma rígida
engenharia da palavra, buscando prazerosamente a exata palavra para compor o poema, numa espécie de
ritual de aragem (pelo arado-poesia) da cultura nordestina.

Dos vinte poemas que compõem o livro, sete são escritos na forma de soneto, cinco são tercetos, um é
quarteto e os demais são elaborados em estrofes irregulares, com predominância de versos livres.

Nesse livro, através do processo da rememoração, Zila Mamede traz para seus textos poéticos as
lembranças de menina sertaneja entrelaçadas pela sua vida de “moça da cidade”.

O poema “Açude”, por exemplo, vai se construir a partir de uma velha parede ponte imitando os dois
barrancos entre chão e chão. A parede implica limites e divide chão e chão. Os dois chãos podem
representar as experiências vivenciadas pela poeta: um, sua terra natal; o outro, a vida urbana. No meio
das duas experiências, a parede, que divide e controla, e que bem poderia ser lida como signo de um
coração dividido entre os dois espaços: o rural e o urbano. Vejamos o soneto:

O açude

Velha parede ponte limitando
os dois barrancos entre chão e chão.
Ao passadiço (em que montavam luas,
xexéus milipousavam no mourão)

a represança vinha da montante
em balde concha. Sobre a levação
do sangradouro retesou-se tempo
de quando as águas, nos rasgando a mão.

Desciam na revência, verdivida
amarelando cheiro de melão:
eram celeiros, peixes nos maretas

e em nós era ternura, era canção.
Sobras do antigo na menina extinta:
redorme na vazante a solidão.

O passadiço pode significar a passagem de um tipo de vida a outro, já que na praticidade da vida, o
mesmo permite que as pessoas possam fazer uma travessia por cima de uma cerca, ou seja: possam vencer
barreiras, metaforicamente falando.

A represança é a represa que segura as águas e balde concha, o medidor da profundidade. Trocando em
miúdos: por mais que o passadiço permita a passagem da narradora de um lugar a outro (do sertão à
cidade), ela sente-se presa ao lugar de origem. Todos esses fatos são enunciados como sobras de um
passado distante.

É a poeta no presente, sentindo-se presa às origens, revelando que as lembranças da infância permanecem
vivas na mulher adulta, ainda cheia de saudades e sentindo-se só, como mostram os dois últimos versos do
poema:

Velha parede ponte limitando
os dois barrancos entre chão e chão.

A linguagem é cristalina e se estrutura a partir dos signos açude, sangradouro e balde, apontando para a
possibilidade de resgate de vivências no sertão. A poeta bebeu das águas também cristalinas de Nova
Palmeira, e delas não pôde mais esquecer.

Percebe-se que as imagens do sertão utilizadas nos poemas de O Arado passam por um processo tão
intenso de elaboração, que a terra, em alguns momentos, deixa de ser tema e passa a personagem, como nos
exemplos que seguem:

… Sofrida pelo arado
a terra inova-se…
(“Moenda”)


nervuras duma terra que desperta
alucinadamente a fecundar-se…
(“A Apanha”)

A terra agora não será mais a da infância, mas a da mocidade, presente no soneto “Rua (Trairi)”. Este
poema, aparentemente deslocado em relação aos outros do livro, cumpre seu papel de chamar atenção para
os dois tempos da vida/poesia de Zila Mamede: a terra (o passado da poeta vivenciado no sertão) e a
cidade representada pelo sal (o presente/momento da elaboração de sua poesia).

Nos cubos desse sal que me encarcera
(pedra, silêncios, picaretas, luas,
anoitecidos braços na paisagem)
a duna antiga faz-se pavimento.

Meu chão se muda em novos alicerces,
sob as pedreiras rasgam-se meus passos;
e a velha grama (pasto de lirismo)
afoga-se nos sulcos das enxadas,
nas ânsias do caminho vertical.
Ao sono das areias abandonam-se
nesta rua vividos fantasmas

de seus rios-meninos que descalços
apascentavam lamas e enxurradas.
Meu chão de agora: a rua está calçada.

Este poema faz parte das recordações do tempo juvenil, pois a referida rua era o local onde Zila morou
quando mocinha, recém-chegada do sertão de Currais Novos/RN, até a época em que escreveu O Arado.
Não é, portanto, em vão que ela constrói o poema com essa temática. São sentimentos da jovem/poeta
presentificando-se no texto, através da voz memorialística.

A cidade (Natal) é apresentada pela palavra sal, por se tratar de litoral, e é esse sal que encarcera a
poeta. A cidade, lugar almejado anteriormente, não vai significar a liberdade tão desejada. O sal
remete à penitência, misticamente falando, e é usado no batismo do cristão. Na imagem construída no
poema, ele encarcera a narradora e a penitencia na medida em que a afasta da paisagem de origem, fonte
de suas lembranças.

No decorrer da leitura dos poemas de O Arado, observa-se que a fertilização da terra e do texto
são uma constante nos mesmos. Em “Rua (Trairi)” ocorre o oposto, pois o sal pode opor-se à fertilização.
Nesse caso, a terra salgada pode significar, também, terra árida, endurecida. Um costume antigo e por
demais conhecido em tempo de guerra, era jogar sal nas terras das cidades destruídas para tornar o solo
sempre estéril.

ARADO

Arado cultivadeira
rompe veios, morde chão
ai uns olhos afiados
rasgando meu coração.

Arado dentes enxadas
lavancando capoeiras
Mil prometimentos, juras
faladas, reverdadeiras?

Arado ara picoteira
sega relha amanhamento,
me desata desse amor
ternura torturamento.

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