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O Chalaça, de José Roberto Torero

by Lucas Gomes

Livro de estréia de José Roberto Torero, publicado
em 1995, esta obra constitui-se supostamente de memórias contidas em
um caderno de anotações de Francisco Gomes da Silva, conselheiro
do Império, que, durante um bom tempo, foi um dos mais importantes auxiliares
e o mais próximo de Dom Pedro I.

O Brasil do Primeiro Império se estampa nas suas páginas,
concentrando verdades e realidades que subsistem na boa linhagem ficcional edificada
por José Roberto Torero. O autor recriou brilhantemente – e com humor
implacável – a vida deste que teria sido um dos mais importantes auxiliares
de Pedro I, não só na política, como em seu dia-a-dia –
era sua atribuição, por exemplo, intermediar os encontros do Imperador
com as filhas de Eva.

A obra é narrada em 1ª pessoa, e a palavra “chalaça”
quer dizer zombeteiro, gracejador, caçoador.

A intertextualidade é uma característica da ficção
pós-moderna. O romance de José Roberto Torero nos faz perceber
este princípio no processo comparativo ou aproximativo. É neste
contexto que se faz a intertextualidade num diálogo promovido por textos
bíblicos e machadianos, orientando-nos a estudos de literatura comparada.

É impossível falar do livro O Chalaça
sem nos reportarmos às Memórias Póstumas de Brás
Cubas
, por ser comum às duas obras a intertextualidade e a mesma
realidade memorialista. Reitera-se aqui as possibilidades de estudos comparativos
e intertextuais que nos permitem exemplificar:

“(…) Seis jantares, duas óperas e três diamantes depois,
conquistei seu coração
.” (Torero, 1995, pgs. 16-17)

“Gastei trinta dias para ir do Rossio Grande ao coração
de Marcela (…)
” (Assis, 1990, p. 33). Prosseguindo com as comparações
isentas de intertextualidades nos livros supracitados, percebe-se a existência
de máximas com tonalidades filosóficas dotadas de ensinamentos
e reflexões, versando as mais variadas temáticas:

“(…) Não venci o dragão, mas pisei um
rato. Não seria menos vencedor por isso.
”

“As mulheres pobres amam os abastados;

As feias amam os belos;

As parvas, os professores;

As tímidas, os patuscos;

Às adúlteras, os fiéis;

As dissipadoras, os econômicos;As suarentas, os
perfumados;

As coxas, os atléticos;

As irascíveis, os calmos;

As plebéias, os nobres;

As velhas, os jovens;

As de buço, os imberbes,

e por aí segue

“(…) Três sons é tudo o que busca o homem
no decurso de sua experiência. Não são dois, nunca poderiam
ser quatro. Pois tudo bem, e tais são eles: o sussurro das mulheres,
o tilintar das moedas e o alarido das palmas. Nenhum homem poderá se
considerar plenamente satisfeito – muito embora possa fingir que deles não
sente falta, como alguns devotos – se, ao menos uma vez na vida, não
tiver tido contado com eles

“(…) A vida não é mais que um cerco (..)
(Torero, Op. Cit. pgs. 73, 75, 91, 118)

“(…) Não há amor possível sem a oportunidade dos
sujeitos. (…)
”

“Deve ser um vinho enérgico a política, (…)

“(…) o vício é muitas vezes o estrume da virtude. (…)

“(…) A velhice ridícula é, porventura,
a mais triste e derradeira surpresa da natureza humana
”.

“Quem escapa a um perigo ama a vida com outra intensidade. (…)

“Suporta-se com paciência a cólica do próximo.Matamos
o tempo; o tempo nos enterra.(…)

Crê em ti; mas nem sempre duvides dos outros.(…)

Não te irrites se te pagarem mal um benefício:
antes cair das nuvens, que de um terceiro andar
.” (Assis, Op. Cit., pgs.
72-73, 89, 94, 96, 120-121)

Quando Francisco Gomes da Silva expõe sua intimidade,
faz conhecer também a intimidade do imperador. Essa Chalaça é
um delator. Ele não é “um autor defunto” nem “um defunto autor”,
mas é tão volúvel e persuasivo quanto Brás Cubas,
personagem de Machado de Assis.O que distingue o Chalaça de Brás
Cubas é que as suas memórias são contadas por um escritor,
pois ele não intencionava contá-las nem vivo, nem depois de morto,
como é o caso do já mencionado personagem do autor de “Dom Casmurro”.

Houve quem o chamasse de alcoviteiro e safardana, mais tais
acusações não passam de calúnias. Se o chalaça
– este era seu apelido – conseguiu ascender de simples serviçal a um
dos mais influentes homens do Império brasileiro, isto aconteceu principalmente
graças à sua privilegiada inteligência. Além de habilidoso
conselheiro, este companheiro de D. Pedro I foi também um brilhante filósofo,
conforme demonstram algumas de suas teorias que aqui estão. Como pôr
exemplo aquela na qual ele estabelece a profunda relação entre
o fluxo sangüíneo e o funcionamento do cérebro no momento
da cópula, o que explica tantas e tantas atitudes masculinas.

O personagem esteve em todos os grandes acontecimentos da jovem
nação brasileira: gritou, junto com o imperador, às margens
do Ipiranga, escreveu a primeira Constituição e dissolveu com
bravura a primeira Assembléia Constituinte.

O chalaça foi, enfim, um exemplo acabado de homem e
estadista, e constituiu-se num modelo muito imitado pelos brasileiros, desde
aqueles tempos até os dias de hoje.

Mas Francisco Gomes também sabia fazer rir. Não
é à toa que seu apelido significa gracejo, caçoada, zombaria.
Seu humor fino e inteligente, seu talento musical (tirava inspirados lundus
de sua viola) e sua habilidade ao intermediar os encontros de D. Pedro I com
as filhas de Eva fizeram com que ele fosse a companhia favorita do imperador
enquanto não admirava as flores pelo lado da raiz.

Pode ser que o Chalaça, em seu diário, falte
com a verdade em alguns trechos, mas não o julguemos mal.

Se há exageros e omissões em sua narrativa, é
porque assim funciona a memória, prolongando vitórias e dissimulando
derrotas. Talvez por conta disso ele seja acusado de imprecisão histórica.
Chalaça, um píncaro por excelência, teria escrito algumas
das páginas mais elegantes e divertidas de que se tem notícia
sobre os termos do Primeiro Império.

O Chalaça é uma obra que consegue harmonizar
memórias, história e literatura. Confirmando os ditames da ficção
contemporânea: analogia e intertextualidade que nos faz crer que “a literatura
sai da literatura”, como tão bem concepcionou Jorge Luís Borges.
Não podemos ignorar a necessidade das interdisciplinaridades que dão
à linguagem e à produção ficcional feições
universais.

Trecho escolhido

Estávamos lá eu, o Caldeira Brant, que recentemente
recebera o título de Marquês de Barbacena, o gentil-homem do paço
João da Rocha Pinto e o criador de cavalos João Carlota. Estes
dois eram figuras assíduas nos saraus e eu até já fizera
com eles alguns negócios. O marquês eu conhecia de vista e era
uma das principais vozes do Império.

Até então havíamos trocado apenas alguns
comprimentos de cabeça. O fidalgo usava coletes engomados ao exagero
e ostentava medalhas muito lustradas mesmo nas mais simples recepções.

Entramos numa sala um tanto pequena em que havia apenas uma
mesa redonda com cinco cadeiras. Eu. como secretário particular de Sua
Majestade, obviamente, deveria ficar ã sua direita, mas o marquês
se antecipou e tomou a cadeira na qual eu costumava sentar-me.

“Este era o seu lugar? Perdão, não tive
intenção, queria sentar-me. Pensei que os nobres sempre tivessem
a preferência de se assentar à direita do soberano.” Ele já
ia se levantando quando pus a mão em seu ombro. Não podia deixar
que ele se mostrasse tão superior aos olhos do Imperador.

“Por favor, Marquês, não queira se incomodar;
o Imperador é canhoto mesmo.”

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