Home EstudosLivros O Cobrador (Livro), de Rubem Fonseca

O Cobrador (Livro), de Rubem Fonseca

by Lucas Gomes

O O Cobrador é um livro de contos publicado em 1979,
que reúne contos de Rubem Fonseca. Constituída por dez contos, a coletânea está
centrada no tema da violência: a pedofilia e o aborto em “Pierrô da Caverna”;
assassinato por encomenda em “Encontro no Amazonas”; as lutas armadas em “Caminho
de Assunção”; tráfico de drogas, extorsão e assassinato em “Mandrake”; violência
familiar e no trânsito, além de suicídio em “Livro de Ocorrências”; estupro
em “Almoço na Serra no Domingo de Carnaval”; doenças infecto-contagiosas e escravismo
em “H. M. S. Cormorant em Paranaguá”; grupos de extermínio em “O Jogo do Morto”.
Além da discriminação social em “Onze de Maio” e a violência generalizada em
“O Cobrador”.

O escritor usa uma narrativa agressiva, com forte realismo, para retratar o
submundo do crime e da violência urbana no Rio de Janeiro da década de 70.

Nos contos o autor passa pela Guerra do Paraguai, pelo Amazonas, passando pelo
Rio de Janeiro, sempre focando figuras banais mas, que olhadas com um pouco
mais de atenção, de banais não tem nada.

O Cobrador é um livro de contos bem distintos entre si, mas que têm em
comum o fato de manterem sempre o seu foco no homem sofrido. Sofrido não pela
guerra ou pelas doenças, mas pelo dia a dia, que às vezes exige muito dele próprio,
se alimenta de seu sangue e de sua energia psíquica sem que se dê conta, a não
ser quando entra em colapso. E para representar isso, escolher as palavras certas
dentro do mundo coloquial é uma arte, uma grande arte, que Rubem Fonseca exerce
com maestria.

No livro Rubem Fonseca continua a dar preferência ao espaço conflitante da cidade
grande, retratando aí o universo da clandestinidade social. A linguagem do escritor,
como nas obras anteriores, articula-se equilibradamente entre uma arte de texto
e de contexto, valendo tanto pelo seu conteúdo semântico quanto pela sua elaboração
estético-formal.

Passagens de obras de Machado de Assis, Haroldo de Campos, Maiakovski, Velimir
Khlébnikov e Isaak Babel percorrem o tecido narrativo dos contos, fazendo parte
da urdidura do texto que as engloba para com e sobre elas dialogar, valorizando-as,
parodiando-as ou distorcendo-as.

O trabalho com citações eruditas provenientes de obras da literatura nacional
e ocidental se constitui como uma as principais marcas da ficção de Rubem Fonseca.
Vejamos alguns contos da obra.

O COBRADOR

O primeiro conto, que dá nome ao livro, é sobre um homem que sai pelas ruas
cobrando o que lhe devem. O que lhe devem? Dignidade. Quem lhe deve? A sociedade.
Na primeira cena, ele está em um consultório de dentista e se recusa a pagar
a conta. Por que ele pagaria alguma coisa se ninguém lhe pagava a dignidade
que ele merecia? E naquele momento ele declara que não faz mais parte daqueles
que são cobrados, mas dos cobradores. Mesmo que se precise de uma arma para
isso porque esse preço custa muita violência e radicalismo. Leia
mais

PIERRÔ DA CAVERNA

No conto “Pierrô na caverna”, um escritor monologa com a “maquineta”, isto é,
um gravador. Ele busca assim uma liberdade de expressão que a palavra escrita
não lhe permitia. Quando escrevia, precisava buscar o estilo requintado que
os críticos tanto elogiavam e que era apenas um trabalho paciente de ourivesaria.
Por exemplo, ele jamais escreveria inconciliabilidade. Sua vida corriqueira
era o oposto da alegoria sobre a ambição, a soberba e a impiedade que seu prestígio
de escritor impelia a incluir numa novela. Apesar da correspondência entre o
registro oral e o verbal que percebe, o uso do gravador era para ele uma libertação.
Mas uma libertação com uso imoderado do literário que acumulara na memória.
Surgiu então uma sarabanda de alusões a textos, a tal ponto que ele chega a
usar uma frase em grego. Tem-se aí uma inversão curiosa: a oralidade é que permite
uma explosão mais livre do literário verdadeiro, freado no cotidiano pelas convenções
mesquinhas da “vida literária”.

“Pierrô na caverna” ironiza a metáfora platônica a fim de enredar o tema da
paixão numa corrente de sarcasmos.

Tudo isso está mesclado com uma história do dia-a-dia, mas, também aí, o literário
penetra soberano. A menininha de doze anos que ele, um cinqüentão, acaba possuindo,
chama-se Sofia como a heroína de Quincas Borba. Em meio do monólogo aloucado
do cinqüentão repontam ecos machadianos. “Após contemplarmos certas coisas,
ou uma determinada coisa, há que mudar de vida”. Parece que ele insiste em usar,
ao lado de formas bem coloquiais, outras que só o acervo de elementos literários
de sua memória poderia sugerir.

Toda a história lembra algo da Grécia, freqüentemente da Grécia contaminada
pela luxúria oriental, a Grécia da decadência. O próprio nome do pai da menina
reboa a princípio com a grandiosidade clássica: Milcíades. Mas, ameaçador inicialmente
em relação ao “sedutor” de sua filha (parece mais certo: seduzido por ela),
amolece e acaba tomando um uísque no apartamento deste (“com voz mais suave
e conciliadora: com gelo”). Evidentemente, Grécia e mundo moderno se misturam,
os planos do literário e do real acabam embaralhados.

Mas, apesar de toda essa liberdade que o escritor assume diante do gravador,
acaba aparecendo a dificuldade de comunicar: “Não sei, estou muito confuso,
sinto que estou escondendo coisas de mim, eu sempre faço isso quando escrevo
mas nunca pensei que o fizesse falando em segredo com esta fria maquineta”.
E, ao mesmo tempo, toda esta dificuldade de comunicação, tão angustiosa, não
o impede de contar de modo excelente uma história construída, com início, meio
e fim, entre os episódios soltos e a literatura de seu monólogo oral.

Em outros contos, igualmente, percebe-se a repercussão de textos dos escritores
mais diversos.

ENCONTRO NO AMAZONAS

Em “Encontro no Amazonas” há uma descrição minuciosa de uma exótica viagem de
balsa pelos rios amazônicos.

Neste conto o narrador e seu sócio, Carlos Alberto, perseguem uma pessoa durante
anos. “Soubemos que ele havia se deslocado de Corumbá a Belém, via Brasília,
de ônibus”, começa o conto. O perseguido vinha do Sul, da fronteira com a Argentina,
e de repente desaparece não se sabe em que direção: talvez rumo a Macapá ou
Manaus, ou quem sabe mais a oeste, para Porto Velho e depois Rio Branco. Nem
sequer as feições do homem (deduz-se que é um homem) são claras para os perseguidores.
“Sonhei com ele”, diz o narrador. “Não era a primeira vez. Eu nunca o tinha
visto mas sonhava com ele. Com a descrição que me haviam feito dele.” É sempre
assim. Nunca se sabe quando se pisa em terreno seguro, nunca se sabe por que
acontece o que está acontecendo, nem para quê.

A arte dos contos de Fonseca é retesar a corda das palavras para que expressem
o vazio do mundo, a antipatia dos indivíduos pela espécie: neles se mata e se
destrói por inércia, se trepa por inércia. O amor pode destruir tudo.

CAMINHO DE ASSUNÇÃO

O conto “Caminho de Assunção” parece retomar, como parte de um sistema literário
pessoal, certos procedimentos caros a Isaac Bábel (a frase curta e fustigante;
os pormenores de cor e de cheiro que se destacam; a guerra em seu horror, dada
incisivamente em primeiros planos eisensteinianos, pode-se dizer – uma sucessão
de metonímias que se gravam na memória; tudo isso numa verdadeira “montagem”
de episódio, em quatro páginas escassas, mas altamente significativas) teríamos
assim histórias da Guerra Russo-Polonesa de 1920 repercutindo numa narrativa
sobre a Guerra do Paraguai!

Neste conto um soldado experimenta o sangue durante a Guerra do Paraguai.

LIVRO DE OCORRÊNCIAS

Fazendo jus a seu título, “Livro de ocorrências” conta, em detalhes, três ocorrências
policiais.

Narrado em primeira pessoa por um delegado, “Livro de ocorrências” consegue
posicionar-se num interessante ínterim entre o frio e seco registro criminal
e a narrativa literária. Leia
mais

ALMOÇO NA SERRA NO DOMINGO DE CARNAVAL

Neste conto de Rubem Fonseca, o narrador brinca com o diálogo e se angustia
com um estupro amoroso.

Zeca odeia sua ex-namorada e a família dela. Quando ele os vê numa festa em
sua antiga casa, adquirida pela família da moça depois da pressuposta ruína
econômica da família do rapaz, ele executa um plano de vingança contra a moça.

O JOGO MORTO

Neste conto temos a impressão de que o escritor está apresentando um tipo de
história com que já nos acostumou e na qual adquiriu um domínio invejável: o
conto de violência e banditismo, descritos freqüentemente com simplicidade,
num tom cotidiano e isento de patético, como se a morte nestas circunstâncias
fosse algo normal e aceitável.

No caso, esta impressão se reforça pelo fato de a ação se passar na Baixada
Fluminense, numa das zonas de domínio do Esquadrão da Morte. Eventualmente,
alguém pode especular sobre a figura misteriosa de Falso Perpétua atribuir a
tudo um tom metafísico. Tem-se, pelo menos, esta possibilidade em suspenso.

“O jogo do morto”, é narrado em terceira pessoa e os protagonistas quase sempre
são homens perturbados que se relacionam sexualmente com pelo menos uma mulher,
mas dentro dessas aparentes restricões, Fonseca experimenta vários estilos e
temáticas.

H. M. S. CORMORANT EM PARANAGUÁ

Neste conto, através de um episódio da vida de Álvares de Azevedo, o autor trata
de questões como dependência econômica e cultural, escravidão, posição incômoda
do intelectual etc.

“H.M.S. Cormorant em Paranaguá” trata do período, no nosso Segundo Império,
em que a hostilidade aos ingleses explodiu violentamente, culminando na Questão
Christie. Aparecem aí, em profusão, clichês do romantismo, episódios que repetem
a biografia de Byron, o próprio Byron também surge no texto, alusões shakespeareanas
transmudam-se no kitsch romântico tão comum nos nossos poetas da época, e o
personagem, em meio do seu delírio, chega a falar em versos tão pífios que se
tornam tocantes.

ONZE DE MAIO

“Onze de Maio” é o título de um dos contos de O cobrador. Passa-se numa
espécie de casa de repouso para velhos e todos vivem em cubículos. O autor põe
em ação um personagem-narrador que, internado num asilo, relata os sofrimentos
e humilhações dentro daquele estabelecimento. Asilo este, que mais parece uma
das prisões descritas por Foucault.

Narrado em primeira pessoa, este conto está fortemente ligados com a realidade
social da época.

Em “Onze de Maio”, o jogo de apoderação é, em princípio, apenas intelectual.
O narrador, José, um professor de história aposentado, está internado em um
asilo e passa a relatar o seu dia-a-dia.

Ele sente imperar naquele lugar o abandono, a degradação, o desrespeito , a
humilhação e a privação. José, num primeiro momento, parece conformado com a
situação em que se encontra: “um velho inerte, preguiçoso e entediado só
pode abrir a boca para bocejar”
(FONSECA, 1997, p. 118); entretanto, ele
percebe as coisas à sua volta, vê que estão completamente isolados da sociedade,
presos em um ambiente que mais parece presídio do que lar de idosos.

Acrescentando-se que nem mesmo entre os idosos é permitido o diálogo, devem
ficar o tempo todo em seus cubículos esperando pela morte. Os idosos são condicionados
a aceitar o tratamento humilhante que lhes é dado, ficam cada vez mais débeis
e assim, não oferecem resistência.

José, vítima do sistema: “Aquele ser velho me foi imposto por uma sociedade
corrupta e feroz, por um sistema iníquo que força milhões de seres humanos a
uma vida parasitária, marginal e miserável”
(FONSECA, 1997, p. 134), percebe
que seus pensamentos não podem ser vigiados e que continua sendo o mesmo homem
inteligente e astuto que sempre fora. Une-se, então, aos seus companheiros,
Pharoux e Cortines, para realizar um motim em busca da liberdade. A luta passa
a ser não só intelectual mas também física, pois invadem a casa do diretor do
asilo e tomam o poder pela força: “A idéia me agrada. A história ensina que
todos os direitos foram conquistados pela força. A fraqueza gera opressão”

(FONSECA, 1997, p. 135); ou seja, a afirmação é de que os oprimidos devem fortalecer-se
e usar a força contra os opressores. Para o narrador, a única forma de ganhar
o complexo jogo da sobrevivência.

Neste conto, a perda da liberdade individual está em cada idoso internado, pois
são vigiados diuturnamente pelos funcionários. Não parecendo um cerceamento
da liberdade, mas sim um excesso de cuidados. O narrador, todavia, revela que
não está sendo bem cuidado, ao contrário, a alimentação é péssima, não tem atendimento
médico, não tem boas condições de higiene, os internos não podem conversar entre
si e devem apenas assistir televisão e dormir. Esses acontecimentos levam o
homem a um sentimento de desencanto da vida e a uma sensação de vazio existencial
que José busca suprir com a tentativa de incitar uma revolução, uma luta para
que o ser humano venha a ter um pouco mais de dignidade ou, pelo menos, seja
respeitado em sua diferença.

Em “Onze de Maio”, a narrativa passa-se em ambiente restrito e fechado, um asilo
de idosos. Porém, a distinção social se dá em três níveis. A classe média-alta,
com seus privilégios, está na figura do diretor do Lar Onze de Maio, que tem
o escritório e a casa em uma torre, símbolo da altivez e superioridade, vista
também em sua postura. O Proletariado são os funcionários do asilo, chamados
de “Irmãos”, lembram uma instituição religiosa; são apresentados como pessoas
que se deixam manipular pelo sistema e obedecem às ordens como máquinas programadas.
O marginalizado é representado pelos internos, que, ao se rebelarem, desencadeiam
a luta entre os estratos sociais. Nesse conto, a pressão exercida de cima para
baixo, eclode com a reação violenta do narrador e seus amigos, que invadem a
casa do diretor na tentativa de se sobrepor àquele que os dominava.

O que ocorre com maior freqüência na narrativa de “Onze de Maio”, é o “descentramento”.
Segundo ele, Foucault fala em “poder disciplinar”, Em “Onze de Maio” o asilo
é uma instituição de controle criada pelo governo da espécie humana. A vigilância
e o controle são exercidos no sentido de transformar os internos em seres apáticos
e de fácil manipulação. Os funcionários são controlados pela disciplina que
aprenderam a ter para manutenção de seus empregos. O diretor é o representante,
junto com os funcionários, desse controle das massas no sentido de evitar uma
reação ao poder constituído. O narrador e seus amigos, ao reagirem, formam um
grupo com o mesmo interesse, buscar a liberdade ou melhores condições, para
assim, viver com mais dignidade o resto de suas vidas. Contudo, ao conquistarem
a primeira etapa: fazer de reféns o diretor e sua mulher, os interesses se diversificam
quando o narrador pensa na seqüência da ação, os outros dois vão satisfazer
a fome com alimentos que há muito não comiam. Enquanto no narrador afloram instintos
sexuais, quando deseja passar a mão no corpo nu da mulher, em Pharoux são os
instintos destrutivos que afloram, quando faz pequenas perfurações no pescoço
do diretor.

Este conto, na realidade, também é baseado na diferença e na exclusão de pessoas
da convivência social. Os excluídos então desafiam e questionam a autoridade
constituída e as instituições em geral e, mesmo não apresentando soluções para
os problemas, são valores positivos pelo simples fato de exporem o conhecimento
de tal exclusão. Por estarem calcados na diferença, onde o narrador sente-se
vítima do sistema social elitista e preconceituoso, o conto apresenta as “alteridades
da violência”, que estão em torno de um “eu” que se sente totalmente atacado,
vitimado.

Esse “eu” de estrutura violenta está em José, narrador de “Onze de Maio”, que
o possui com força permanente no ser. Ele se sente humilhado e excluído da vida
social por ser velho, mas consegue transpor obstáculos aparentemente intransponíveis
para um homem de sua idade. O narrador justifica sua violência, pela sofrida
diante da sociedade que o excluiu e pelo tratamento recebido do diretor e funcionários
do asilo, que supostamente, estariam tentando matá-lo.

Em “Onze de Maio”, a instituição é representante do poder constituído enquanto
os internos são a força que enfrenta este poder, ambos com um fim superior.
A primeira, justifica a violência contra os velhos pela crise financeira do
país e por eles não estarem mais produzindo; os internos justificam a sua reação
violenta pela busca da liberdade e da dignidade humana. Neste conto o veículo
de comunicação de massa que aparece com mais evidência é a televisão. Ela está
presente em toda a narrativa, é utilizada como meio de alienação dos internos
do asilo: “Vamos, vamos, veja a televisão, divirta-se, não fique aí imaginando
coisas tristes, preocupando-se à toa”
(FONSECA, 1997, p. 125); mas esta
alienação se dá, preponderantemente, pelo fato de ser um circuito interno de
televisão, que passa a mesma programação o tempo todo: “A TV fica ligada
o dia inteiro. Deve haver, também, alguma razão para isso. Os programas são
transmitidos em circuito fechado de algum lugar do Lar. Velhas novelas, transmitidas
sem interrupção.”
(FONSECA, 1997, p. 117); o narrador abre a possibilidade
da televisão ser algo bom, porém, ela deve ser assistida sempre com um olhar
crítico:

Os Irmãos […] também têm televisão no quarto e assistem a outros programas
que não são transmitidos para nós. Sei, por perguntas que faço inocentemente,
que eles também dormem em frente ao vídeo. Televisão é muito interessante, descontando
o sono e o esquecimento.
(FONSECA, 1997, p. 126)

Este conto, bem como o conto “O Cobrador”, levanta várias questões sobre a sociedade
pós-moderna, mas neste trabalho o objetivo foi buscar um entendimento da crise
existencial vivida pelas personagens e o porquê de suas ações violentas.

“Onze de Maio” começa com a questão da crise de identidade coletiva e termina
com a crise de identidade individual; as três personagens descobrem que estão
sendo dopados e têm em comum o objetivo de libertar-se da situação humilhante,
mas quando vencida a primeira etapa, perdem completamente o sentido da revolução
e cada um passa a resolver o seu desejo imediato.

Texto parcial da E-revista, UNIOESTE.

Posts Relacionados