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O colocador de pronomes (Conto), de Monteiro Lobato

by Lucas Gomes

No conto intitulado O colocador de pronomes, publicado em 1924, Monteiro
Lobato ridiculariza a personagem central, Aldrovando, exatamente pelo uso de
uma linguagem empolada e descabida, cheia de preciosismos e de palavras incompreensíveis
para a maioria das pessoas.

A certa altura da narrativa, o narrador fala de uma campanha que Aldrovando
empreende para evitar erros contra o idioma, propondo a elaboração
de leis repressivas. Observe-se em que termos o colocador de pronomes expressa-se
para solicitar ao Congresso leis contra os que erram:

Leis, Senhores, leis de Dracão, que diques sejam, e fossados, e
alcáceres de granito propostos à defensão do idioma. Mister
sendo, a forca restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro
patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao semelhante a vida tira.
Vede, Senhores, os pronomes, em que lazeira jazem…
(Monteiro Lobato,
textos escolhidos. Por José Carlos Barbosa Moreira. 3. ed. Rio de Janeiro,
Agir, 1972. p. 100 (Nossos Clássicos,65).)

Como se vê, trata-se de uma linguagem rebuscada, quase ininteligível,
cheia de palavras raras e de termos em ordem inversa. O resultado dessa campanha
foi catastrófico: segundo o que diz o próprio conto, Aldrovando
caiu no ridículo, já que os congressistas riram-se dele, os jornais
fecharam-lhe as portas, e o público, os ouvidos.

Conto na íntegra

Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática.

Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da
gramática.

E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática.

Martir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra
angular para uma futura e bem merecida canonização,

Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo
de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto
palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados
à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.

Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta
de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual
tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do
Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da
perna esquerda e um tanto aluada.

Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista
em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou
no tutú da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que
é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados
nem tufos de cabelos no nariz.

Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica
que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que
nesse tempo não existia a gostorura dos cinemas. Encontros na igreja,
à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de
inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se
no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos
dia de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o

Acorda, donzela…

Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho
perfumado.

Aqui se estrepou…

Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos
exclamativos e reticências:

Anjo adorado!

Amo-lhe!

Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu
que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias
de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença,
com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.

Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás
da orelha.

Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém,
o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:

– A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada
desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu?
– que contra ela se cometa o menor deslize.

Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o

– É sua esta peça de flagrante delito?

O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.

– Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então,
minha filha e tem a audácia de o declarar… Pois agora…

O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça
e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.

– … é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.

O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando
a si, comoveu-se e com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:

– Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade
em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…

Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.

– Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente
noivo de minha filha!

E voltando-se para dentro, gritou:

– Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!

O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.

– Laurinha, quer o coronel dizer…

O velho fechou de novo a carranca.

– Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete
à Laurinha dizendo que ama-”lhe”. Se amasse a ela deveria
dezer amo-”te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a
uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo.
Salvo se declara amor à minha mulher…

– Oh, coronel…

– …ou a preta Luzia, cozinheira. Escolha!

O escrevente, vencido, derrubou a cabeça com uma lágrima
a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia.
Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição
da gramática matrimonial.

– Os pronomes, como sabe, são três: da primeira pessoa – quem
fala, e neste caso vassuncê; da Segunda pessoa – a quem fala, e neste
caso Laurinha; da terceira pessoa – de quem se fala, e neste caso do Carmo,
minha mulher ou a preta. Escolha!

Não havia fuga possível.

O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira
da vida, torcendo acanhada a ponta do avental. Viu também sobre a secretária
uma garrucha com espoleta nova ao alcance do maquiavélico pai, submeteu-se
e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia
teatralmente:

– Deus vos abençoe, meus filhos!

No mês seguinte, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira
o futuro professor Aldrovando, o conspícuo sabedor de língua que
durante cinqüenta anos a fio coçaria na gramática a sua incurável
sarna filológica.

Até aos dez anos não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino
vulgar, tossiu a coqueluche em tempo próprio, teve o sarampo da praxe,
mas a cachumba e a catapora. Mais tarde, no colégio, enquanto os outros
enchiam as horas de estudo com invenções de matar o tempo – empalamento
de moscas e moidelas das respectivas cabecinhas entre duas folhas de papel,
coisa de ver o desenho que saía – Aldrovando apalpava com erótica
emoção a gramática de Augusto Freire da Silva. Era o latejar
do furúnculo filológico que o determinaria na vida, para matá-lo,
afinal…

Deixê-mo-lo, porém, evoluir e tomêmo-lo quando nos serve,
aos 40 anos, já a descer o morro, arcado ao peso da ciência e combalido
de rins. Lá está ele em seu gabinete de trabalho, fossando à
luza dum lampião os pronomes de Filinto Elísio. Corcovado, magro,
seco, óculos de latão no nariz, careca, celibatário impenitente,
dez horas de aulas por dia, duzentos mil réis por mês e o rim volta
e meia a fazer-se lembrado.

Já leu tudo. Sua vida foi sempre o mesmo poento idílio com
as veneráveis costaneiras onde cabeceiam os clássicos lusitanos.
Versou-os um por um com mão diurna e noturna. Sabe-os de cór,
conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro uma séca de Lucena duma
esfalfa de Rodrigues Lobo. Digeriu todas as patranhas de Fernão Mendes
Pinto. Obstruiu-se da broa encruada de Fr. Pantaleão do Aveiro. Na idade
em que os rapazes correm atrás das raparigas, Aldrovando escabichava
belchiores na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de maçar.
Nunca dormiu entre braços de mulher. A mulher e o amor – mundo, diabo
e carne eram para ele os alfarrábios freiráticos do quinhentismo,
em cuja soporosa verborréia espapaçava os instintos lerdos, como
porco em lameiro.

Em certa época viveu três anos acampado em Vieria. Depois
vagabundeou, como um Robinson, pelas florestas de Bernardes.

Aldrovando nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava o presente.
Passarinho conhecia um só: o rouxinol de Bernadim Ribeiro. E se acaso
o sabiá de Gonçalves Dias vinha citar “pomos de Hesperides”
na laranjeira do seu quintal, Aldrovando esfogueteava-o com apostrofes:

– Salta fora, regionalismo de má sonância!

A língua lusa era-lhe um tabu sagrado que atingira a perfeição
com Fr. Luiz de Sousa, e daí para cá, salvo lucilações
esporádicas, vinha chafurdando no ingranzéu barbaresco.

– A ingresia d’hoje, declamava ele, está para a Língua,
como o cadáver em putrefação está para o corpo vivo.

E suspirava, condoído dos nossos destinos:

– Povo sem língua!… Não me sorri o futuro de Vera-Cruz…

E não lhe objetassem que a língua é organismo vivo
e que a temos a evoluir na boca do povo.

– Língua? Chama você língua à garabulha bordalenga
que estampam periódicos? Cá está um desses galicígrafos.
Deletreemo-lo ao acaso.

E, baixando as cangalhas, lia:

– Teve lugar ontem… É língua esta espurcícia negral?
Ó meu seráfico Frei Luiz, como te conspurcam o divino idioma estes
sarrafaçais da moxinifada!

– …no Trianon… Por que, Trianon? Por que este perene barbarizar com
alienígenos arrevesos? Tão bem ficava – a Benfica, ou, se querem
neologismo de bom cunho o Logratório…Tarelos é que são,
tarelos!

E suspirava deveras compungido.

– Inútil prosseguir. A folha inteira cacografa-se por este teor.
Aí! Onde param os boas letras d’antanho? Fez-se peru o níveo
cisne. Ninguém atende à lei suma – Horácio! Impera o desprimor,
e o mau gosto vige como suprema regra. A gálica intrujice é maré
sem vazante. Quando penetro num livreiro o coração se me confrange
ante o pélago de óperas barbarescas que nos vertem cá mercadores
de má morte. E é de notar, outrossim, que a elas se vão
as preferências do vulgacho. Muito não faz que vi com estes olhos
um gentil mancebo preferir uma sordície de Oitavo Mirbelo, Canhenho duma
dama de servir, (1) creio, à… advinhe ao que, amigo? A Carta de Guia
do meu divino Francisco Manoel!…

– Mas a evolução…

– Basta. Conheço às sobejas a escolástica da época,
a “evolução” darwinica, os vocábulos macacos
– pitecofonemas que “evolveram”, perderam o pelo e se vestem hoje
à moda de França, com vidro no olho. Por amor a Frei Luiz, que
ali daquela costaneira escandalizado nos ouve, não remanche o amigo na
esquipática sesquipedalice.

Um biógrafo ao molde clássico separaria a vida de Aldrovando
em duas fases distingas: a estática, em que apenas acumulou ciência,
e a dinâmica, em que, transfeito em apóstolo, veio a campo com
todas as armas para contrabater o monstro da corrupção.

Abriu campanha com memorável ofício ao congresso, pedindo
leis repressivas contra os ácaros do idioma.

– “Leis, senhores, leis de Dracão, que diques sejam, e fossados,
e alcaçares de granito prepostos à defensão do idioma.
Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço merece quem conspurca
o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao semelhante
a vida tira. Vêde, senhores, os pronomes, em que lazeira jazem…

Os pronomes, aí! Eram a tortura permanente do professor Aldrovando.
Doía-lhe como punhalada vê-los por aí pré ou pospostos
contra-regras elementares do dizer castiço. E sua representação
alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da pátria à
criação dum Santo Ofício gramatical.

Os ignaros congressistas, porém, riram-se da memória, e grandemente
piaram sobre Aldrovando as mais cruéis chalaças.

– Quer que instituamos patíbulo para os maus colocadores de pronomes!
Isto seria auto-condenar-nos à morte! Tinha graça!

Também lhe foi à pele a imprensa, com pilhérias soezes.
E depois, o público. Ninguém alcançara a nobreza do seu
gesto, e Aldrovando, com a mortificação n’alma, teve que
mudar de rumo. Planeou recorrer ao púlpito dos jornais. Para isso mister
foi, antes de nada, vencer o seu velho engulho pelos “galicígrafos
de papel e graxa”. Transigiu e, breve, desses “pulmões da
pública opinião” apostrofou o país com o verbo tonante
de Ezequiel. Encheu colunas e colunas de objurgatórias ultra violentas,
escritas no mais estreme vernáculo.

Mas não foi entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles intermináveis
períodos engrenados à moda de Lucena; e ao cabo da aspérrima
campanha viu que pregara em pleno deserto. Leram-no apenas a meia dúzia
de Aldrovandos que vegetam sempre em toda parte, como notas rezinguentas da
sinfonia universal.

A massa dos leitores, entretanto, essa permaneceu alheia aos flamívomos
pelouros da sua colubrina sem raia. E por fim os “periódicos”
fecharam-lhe a porta no nariz, alegando falta de espaço e coisas.

– Espaço não há para as sãs idéias,
objurgou o enxotado, mas sobeja, e pressuroso, para quanto recende à
podriqueira!… Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um dia alimpar-vos
a gafa!… exclamou, profético, sacudindo à soleira da redação
o pó das cambaias botinas de elástico.

Tentou em seguida ação mais direta, abrindo consultório
gramatical.

– Têm-nos os físicos (queria dizer médicos), os doutores
em leis, os charlatãs de toda espécie. Abra-se um para a medicação
da grande enferma, a língua. Gratuito, já se vê, que me
não move amor de bens terrenos.

Falhou a nova tentativa. Apenas moscas vagabundas vinham esvoejar na salinha
modesta do apóstolo. Criatura humana nem uma só lá apareceu
afim de remendar-se filologicamente.

Ele, todavia, não esmoreceu.

– Experimentemos processo outro, mais suasório.

E anunciou a montagem da “Agência de Colocação
de Pronômes e Reparos Estilísticos”.

Quem tivesse um autógrafo a rever, um memorial a expungir de cincas,
um calhamaço a compor-se com os “afeites” do lídimo
vernáculo, fosse lá que, sem remuneração nenhuma,
nele se faria obra limpa e escorreita.

Era boa a idéia, e logo vieram os primeiros originais necessitados
de ortopedia, sonetos a consertar pés de verso, ofícios ao governo
pedindo concessões, cartas de amor.

Tais, porém, eram as reformas que nos doentes operava Aldrovando,
que os autores não mais reconheciam suas próprias obras. Um dos
clientes chegou a reclamar.

– Professor, v.s. enganou-se. Pedi limpa de enxada nos pronomes, mas não
que me traduzisse a memória em latim…

Aldrovando empertigou-se.

– Pois, amigo, errou de porta. Seu caso é alí com o alveitar
da esquina.

Pouco durou a Agência, morta à míngua de clientes.
Teimava o povo em permanecer empapado no chafurdeiro da corrupção…

O rosário de insucessos, entretanto, em vez de desalentar exasperava
o apóstolo.

– Hei-de influir na minha época. Aos tarelos hei de vencer. Fogem-me
à férula os maráus de pau e corda? Ir-lhes-ei empós,
fila-los-eis pela gorja… Salta rumor!

E foi-lhes “empós”, Andou pelas ruas examinando dísticos
e tabuletas com vícios de língua. Descoberta a “asnidade”,
ia ter com o proprietário, contra ele desfechando os melhores argumentos
catequistas.

Foi assim com o ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda uma
tabuleta – “Ferra-se cavalos” – escoicinhava a santa gramática.

– Amigo, disse-lhe pachorrentamente Aldrovando, natural a mim me parece
que erre, alarve que és. Se erram paredros, nesta época de ouro
da corrupção…

O ferreiro pôs de lado o malho e entreabriu a boca.

– Mas da boa sombra do teu focinho espero, continuou o apóstolo,
que ouvidos me darás. Naquela tábua um dislate existe que seriamente
à língua lusa ofende. Venho pedir-te, em nome do asseio gramatical,
que o expunjas.

– ???

– Que reformes a tabuleta, digo.

– Reformar a tabuleta? Uma tabuleta nova, com a licença paga? Estará
acaso rachada?

– Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. Fogem ali os dizeres
à sã gramaticalidade.

O honesto ferreiro não entendia nada de nada.

– Macacos me lambam se estou entendendo o que v. s. diz…

– Digo que está a forma verbal com eiva grave. O “ferra-se”
tem que cair no plural, pois que a forma é passiva e o sujeito é
“cavalos”.

O ferreiro abriu o resto da boca.

– O sujeito sendo “cavalos”, continuou o mestre, a forma verbal
é “ferram-se” – “ferram-se cavalos!”

– Ahn! Respondeu o ferreiro, começo agora a compreender. Diz v.
s. que …

– … que “ferra-se cavalos” é um solecismo horrendo
e o certo é “ferram-se cavalos”.

– V. S. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não
sou plural. Aquele “se” da tabuleta refere-se cá a este seu
criado. É como quem diz: Serafim ferra cavalos – Ferra Serafim cavalos.
Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e ficou como está:
Ferra Se (rafim) cavalos. Isto me explicou o pintor, e entendi-o muito bem.

Aldrovando ergueu os olhos para o céu e suspirou.

– Ferras cavalos e bem merecias que te fizessem eles o mesmo!… Mas não
discutamos. Ofereço-te dez mil réis pela admissão dum “m”
ali…

– Se V. S. paga…

Bem empregado dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte dessolecismada,
perfeitamente de acordo com as boas regras da gramática. Era a primeira
vitória obtida e todas as tardes Aldrovando passava por lá para
gozar-se dela

Por mal seu, porém, não durou muito o regalo. Coincidindo
a entronização do “m” com maus negócios na
oficina, o supersticioso ferreiro atribuiu a macaca à alteração
dos dizeres e lá raspou o “m” do professor.

A cara que Aldrovando fez quando no passeio desse dia deu com a vitória
borrada! Entrou furioso pela oficina a dentro, e mascava uma apóstrofe
de fulminar quando o ferreiro, às brutas, lhe barrou o passo.

– Chega de caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço
e na língua, sou eu. E é ir andando antes que eu o ferre com bom
par de ferros ingleses!

O mártir da língua meteu a gramática entre as pernas
e moscou-se.

– “Sancta simplicitas!” ouviram-no murmurar na rua, de rumo
à casa, em busca das consolações seráficas de Fr.
Heitor Pinto. Chegado que foi ao gabinete de trabalho, caiu de borco sobre as
costaneiras venerandas e não mais conteve as lágrimas, chorou…

O mundo estava perdido e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não
havia desviá-los do ruim caminho, e ele, já velho, com o rim a
rezingar, não se sentia com forças para a continuação
da guerra.

– Não hei-de acabar, porém, antes de dar a prelo um grande
livro onde compendie a muita ciência que hei acumulado.

E Aldrovando empreendeu a realização de um vastíssimo
programa de estudos filológicos. Encabeçaria a série um
tratado sobre a colocação dos pronomes, ponto onde mais claudicava
a gente de Gomorra.

Fê-lo, e foi feliz nesse período de vida em que, alheio ao
mundo, todo se entregou, dia e noite, à obra magnífica. Saiu trabuco
volumoso, que daria três tomos de 500 páginas cada um, corpo miúdo.
Que proventos não adviriam dali para a lusitanidade. Todos os casos resolvidos
para sempre, todos os homens de boa vontade salvos da gafaria! O ponto fraco
do brasileiro falar resolvido de vez! Maravilhosa coisa…

Pronto o primeiro tomo – Do pronome Se – anunciou a obra pelos jornais,
ficando à espera das chusmas de editores que viriam disputá-la
à sua porta. E por uns dias o apóstolo sonhou as delícias
da estrondosa vitória literária, acrescida de gordos proventos
pecuniários.

Calculava em oitenta contos o valor dos direitos autorais, que, generoso
que era, cederia por cinqüenta. E cinqüenta contos para um velho celibatário
como ele, sem família nem vícios, tinha a significação
duma grande fortuna. Empatados em empréstimos hipotecários sempre
eram seus quinhentos mil réis por mês de renda, a pingarem pelo
resto da vida na gavetinha onde, até então, nunca entrara pelega
maior de duzentos. Servia, servia!… E Aldrovando, contente, esfregava as mãos
de ouvido alerta, preparando frases para receber o editor que vinha vindo…

Que vinha vindo mas não veio, aí!… As semanas se passaram
sem que nenhum representante dessa miserável fauna de judeus surgisse
a chatinar o maravilhoso livro.

– Não me vêm a mim? Salta rumor! Pois me vou a eles!

E saiu em via sacra, a correr todos os editores da cidade.

Má gente! Nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas.
Torciam o nariz, dizendo “Não é vendável”;
ou: “Porque não faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo governo?

Aldrovando, com a morte n’alma e o rim dia a dia mais derrancado,
retesou-se nas últimas resistências.

– Fá-la-ei imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o cartel.
Sei pelejar com todas as armas e irei até ao fim. Bofé!

Para lugar era mister dinheiro e bem pouco do vilíssimo metal possuía
na arca o alquebrado Aldrovando. Não importa! Faria dinheiro, venderia
móveis, imitaria Bernardo de Pallissy, não morreria sem ter o
gosto de acaçapar Gomorra sob o peso da sua ciência impressa. Editaria
ele mesmo um por um todos os volumes da obra salvadora.

Disse e fez.

Passou esse período de vida alternando revisão de provas
com padecimentos renais. Venceu. O livro compôs-se, magnificamente revisto,
primoroso na linguagem como não existia igual.

Dedicou-o a Fr. Luz de Souza:

À memória daquele que me sabe as dores,

O Autor.

Mas não quis o destino que o já trêmulo Aldrovando
colhesse os frutos de sua obra. Filho dum pronome impróprio, a má
colocação doutro pronome lhe cortaria o fio da vida.

Muito corretamente havia ele escrito na dedicatória: …daquele
que me sabe… e nem poderia escrever doutro modo um tão conspícuo
colocador de pronomes. Maus fados intervieram, porém – até os
fados conspiram contra a língua! – e por artimanha do diabo que os rege
empastelou-se na oficina esta frase. Vai o tipógrafo e recompõe-na
a seu modo …d’aquele que sabe-me as dores… E assim saiu nos milheiros
de cópias da avultada edição.

Mas não antecipemos.

Pronta a obra e paga, ia Aldrovando recebê-la, enfim. Que glória!
Construíra, finalmente, o pedestal da sua própria imortalidade,
ao lado direito dos sumos cultores da língua.

A grande idéia do livro, exposta no capítulo VI – Do método
automático de bem colocar os pronomes – engenhosa aplicação
duma regra mirífica por meio da qual até os burros de carroça
poderiam zurrar com gramática, operaria como o “914? da sintaxe,
limpando-a da avariose produzida pelo espiroqueta da pronominuria.

A excelência dessa regra estava em possuir equivalentes químicos
de uso na farmacopéia alopata, de modo que a um bom laboratório
fácil lhe seria reduzí-la a ampolas para injeções
hipodérmicas, ou a pílulas, pós ou poções
para uso interno.

E quem se injetasse ou engolisse uma pípula do futuro PRONOMINOL
CANTAGALO, curar-se-ia para sempre do vício, colocando os pronomes instintivamente
bem, tanto no falar como no escrever. Para algum caso de pronomorreia agudo,
evidentemente incurável, haveria o recurso do PRONOMINOL Nº 2, onde
entrava a estriquinina em dose suficiente para libertas o mundo do infame sujeito.

Que glória! Aldrovando prelibava essas delícias todas quando
lhe entrou casa a dentro a primeira carroçada de livros. Dois brutamontes
de mangas arregaçadas empilharam-nos pelos cantos, em rumas que lá
se iam; e concluso o serviço um deles pediu:

– Me dá um mata-bicho, patrão!

Aldrovando severizou o semblante ao ouvir aquele “Me” tão
fora dos mancais, e tomando um exemplo da obra ofertou-a ao “doente”.

– Toma lá. O mau bicho que tens no sangue morrerá asinha
às mãos deste vermífugo. Recomendo-te a leitura do capítulo
sexto.

O carroceiro não se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro:

– Isto no “sebo” sempre renderá cinco tostões.
Já serve!

Mal se sumiram, Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho
e deu começo à tarefa de lançar dedicatórias num
certo número de exemplares destinados à crítica. Abriu
o primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa quando seus
olhos deram com a horrenda cinca:

“daquele QUE SABE-ME as dores”.

– Deus do céu! Será possível?

Era possível. Era fato. Naquele, como em todos os exemplares da
edição, lá estava, no hediondo relevo da dedicatória
a Fr. Luiz de Souza, o horripilantíssimo

– “que sabe-me”…

Aldrovando não murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto
uma estranha marca de dor – dor gramatical inda não descrita nos livros
de patologia – permaneceu imóvel uns momentos.

Depois empalideceu. Levou as mãos ao abdômen e estorceu-se
nas garras de repentina e violentíssima ânsia.

Ergueu os olhos para Frei Luiz de Souza e murmurou:

– Luiz! Luiz! Lamma Sabachtani?!

E morreu.

De que não sabemos – nem importa ao caso. O que importa é
proclamarmos aos quatro ventos que com Aldrovando morreu o primeiro santo da
gramática, o mártir número um da Colocação
dos Pronomes.

Paz à sua alma.

(Ao todo, a obra de Aldrovando, incluindo tratados sobre circunflexo, vírgula,
e psicologia do til, crase, pesava cerca de 4 arrobas, que renderam no sebo,
18 mil réis, vendidas a peso, a três tostões o quilo).

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