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O conto da mulher brasileira, de Org. Edla van Steen

by Lucas Gomes

Obra publicada em 1978, O conto da mulher brasileira é uma
antologia organizada por Edla van Steen e reúne 19 textos de autoras
importantes da literatura brasileira como Hilda Hilst, Nélida Piñon,
Lygia Fagundes Telles e Zulmira Ribeiro Tavares. Apesar de Clarice Lispector
não fazer parte desta coletânea, a temática e a dicção
da obra lembram a autora.

Nos textos predomina um tom intimista, que se faz notar por narrativas em primeira
pessoa articuladas por protagonistas do sexo feminino, como se vê em “O
piano”, “Curriculum Vitae” e “Lucas, Naim”.

O relacionamento homem-mulher está presente em treze dos dezenove contos.
Nestes predomina um tom desencantado, desiludido, que tem origem na desilusão
amorosa.

Na maioria dos contos, a linguagem se articula na tentativa de expressar o
desencanto existencial em que se encontra a narradora-protagonista.

Alguns contos, entretanto, não apresentam um referente claramente delimitado
e se estruturam a partir de uma vivência altamente subjetiva, o que acaba
gerando textos pouco legíveis como “Lucas, Naim” e “K
de know how”. Mas há também textos altamente elaborados,
como “As
formigas
”, de Lygia Fagundes Telles, em que, através do “realismo
fantástico” se aborda uma situação de opressão
crescente, e o poético e experimental “Os mortos não têm
desejos”, de Edla van Steen, em que o narrador-protagonista, tal qual
em Morangos silvestres, de Ingmar Bergman, e Memórias
póstumas de Brás Cubas
, de Machado de Assis, articula
a narrativa através de tomadas cinematográficas entremeadas com
flash-backs que desvelam aos olhos do leitor detalhes da vida do locutor e das
personagens presentes no velório do narrador-protagonista.

Leia na íntegra o conto “A porca”, de Tânia
Jamardo Faillace, contido na obra

Era uma vez um meninozinho, que tinha muito medo. Era só soprar
um vento forte, desses de levantar poeira no fundo do quintal e bater com os
postigos da janela; era só haver uma nuvem escura, uma única,
que tampasse o sol; era só esbarrar com a pipa d’água e ouvir
o rico e pesado sacolejar da água dentro, para que o menino se encolhesse
bem no centro de seu ventre, orelhas retesas, olhos muito abertos ou obstinadamente
fechados. Depois, o menino levantava, limpava o pó do fundilho das calças
e ia para o quintal.

Conhecia as galinhas, os porcos, mas nenhum lhe pertencia. Achava mesmo
engraçado quando via os irmãos abraçarem um leitãozinho,
a irmã mais nova tentando, por força, enfiar uma de suas saias
no bicho. Bicho é bicho, sabia ele. Bicho tem vida sua, diferente da
de gente. Os irmãos não sabiam. Fingiam que eram bonecas, criancinhas
pequenas e, nos dias de matança, todos já eram petiscos, brinquedo
esquecido.

O menino preferia olhá-los de longe. Tremia, quando a velha porca
gorda fuçava por entre as tábuas do chiqueiro; corria, se ela
estava solta, com sua gorda barriga pendente, seu gordo cachaço lanhado.

A mãe também era gorda. Rachando lenha, carregando água,
enorme e pesada bolota de carne. Tinha um rosto comprido, sulcado de rugas,
boca sempre aberta, gritando com alguém. A porca não gritava,
só roncava, mesmo quando o pai passava e lhe dava um pontapé.
Um dia botou sangue — disseram que ia abortar. Ele teve medo de ver. Escondeu-se
em casa, na cama, sob a colcha de fustão.

E de repente, foi o grande choque. Cama sacudiu. Lastro despencou, e ele
caiu, sufocado pelos travesseiros. Era o pai. A mãe lhe batia com um
resto de vassoura… pela loucura… quatorze leitões… quatorze…
e todos perdidos… o pai grunhia e protegia a cabeça. Ao redor, tudo
era escuro.

Sabia agora o que era um nenê de bicho. Havia sangue. Sempre havia
sangue.

Era um dia escuro. E em dias escuros, o menino tinha medo. O escuro era
espesso, profundo, pegajoso, e sombras mais escuras eram manchas coaguladas.

Havia um fio de luz, cinza-claro, sobre a pipa d’água. O menino
se atreveu a ir bem junto dela. Puxou um banquinho e foi olhar. Como lhe doía
a barriga, só de espichar, só de ver… a boca preta da pipa,
a água grossa, molhada… E o menino caiu dentro da pipa… Não
de verdade, de mentira… E encontrou uma porção de leitõezinhos
lá no fundo, mas estavam pretos e encarquilhados.

E ao pular de volta sobre seu banquinho, ao sentir toda a pipa sacudindo,
o menino teve a idéia. Balançou forte, cada vez mais forte, a
pipa veio pelo chão, despedaçando uma aranha, molhando a lenha,
assustando a galinha choca que dormia debaixo do fogão. O pé do
menino ficou preso, uma unha esmagada. Mas ele não chorou, fugiu. E fugiu
para a rua… Porém o terreiro estava iluminado com uma luz muito pálida,
a areia lisa, fina, as bananeiras imóveis e densas… Sentou-se no chão,
sobre uma pedra pontuda, um pé em cima do outro, as mãos cruzadas
no joelho.

De noite, eram os corpos dos irmãos que se apertavam contra o dele.
Mesmo de olhos fechados, sabia quem estava junto de si. A irmã tinha
o costume de dar-lhe beliscões, e um dos irmãos sempre esperava
que ele se distraísse para puxar-lhe aquilo. Depois ria, dizendo: “Por
mais que se puxe, é uma coisinha de nada”, e mostrava o seu, orgulhoso.

Às vezes, o menino ia dormir no chão. Esperava que os grandes
passassem para trás da cortina, ameaçava os irmãos e ia
deitar na cozinha ou contra o cabide. Era pequeno, mas também sabia fazer
coisas malvadas.

Escutava o pai e a mãe. Suas vozes eram grossas, por vezes estridentes,
e palavras feias estremeciam o ar, penduravam-se nas teias de aranha, nos arremates
das mata-juntas. O lastro estalava, e havia risadas, de gengivas descobertas,
de profundos ocos de garganta.

Ir embora, era o que o menino desejava. Ir para um lugar onde a água
fosse grande e livre, um mar infinito, como ouvira contar certa vez. Não
haveria aves, nem porcos nem cachorros, apenas peixes, dourados e lisos…

O menino habituou-se a correr. Corria ao ouvir as xingações
da mãe, corria ao ouvir os tamancos do pai, corria ao ouvir as risadas
dos irmãos. Corria ainda quando ouviu a voz da porca velha.

Gritava. Não grunhidos, não roncos, mas gritos. O menino
sentiu sua barriguinha encolher, aquilo se levantar em franco protesto.

Na esquina da casa, lá estava o grupo: o pai, o empregado, a mãe,
um vizinho, e qualquer coisa que rebolava feito doida na areia. As crianças
se conservavam longe, as mãos nos ouvidos, as caras estúpidas.
A mãe se afobava, a saia descosida arrastando no chão, dando ordens,
xingando, gritando mais alto que a porca. O pai se remexia, o chapéu
sobre a nuca, o nariz pingando de suor.

E foi a mãe que arrancou a faca das mãos do vizinho num gesto
brusco. E como gritava a porca… o menino só lhe via o rabinho e as
patas trêmulas.

E num instante, tudo ficou imóvel. Os homens forcejando, a mulher
adquirindo impulso, gorda, redonda, enorme, sua saia de grandes flores desbotadas
roçando o ventre da porca, os irmãos sumindo ao longe, a barriguinha
do menino se retesando.

E foi água que jorrou da porca. Água de fonte, vermelha,
impetuosa, que fugiu de dentro do corpo, que saltou ao sol, que cabriolou, que
explodiu na cara de todos… que sujou de sangue (agora era sangue) o braço
da mãe, o rosto da mãe, o peito da mãe… que se esparramou
no chapéu velho do pai, que respingou em seus bigodes… que cegou o
vizinho, sufocou o empregado… foi aspirado por bocas, nariz, escorreu por
pescoços e ombros. Agora era o pai quem batia na mãe, descompunha-a…
“a camisa… a roupa do empregado, do vizinho… velha porcalhona…”

O menino se agachou atrás da bananeira, com muita dor em sua barriguinha.
E nunca mais beijou a mãe.

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