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O doente imaginário, de Molière

by Lucas Gomes

O doente imaginário

(Le Malade Imaginaire, é o seu título original) foi a última peça
escrita por Molière, em 1673. É também uma de suas obras primas.

A peça, dividida em três atos, tem como personagem principal um hipocondríaco, Argon – carente, rico e
ávaro burguês (tipo que sempre encontramos nas comédias de Molière). Em seu segundo casamento, com uma
mulher mais nova e interesseira, Argon vivia sobre a cama, com a constante visita de médicos. Sua
empregada, a debochada Nieta, e sua filha, a romântica Angélica, completam a família.

Angélica, filha de Argon, apaixona-se por um rapaz, o romântico Cleanto. O pai, no entanto, quer que ela
se case com um médico, pois desta forma teria assegurado consultas gratuitas sem ao menos precisar sair
de casa.

Em sua primeira montagem, o próprio Molière interpretava Argon, o hipocondríaco,
quando teve que ser retirado do palco após um violento acesso de tosse. Poucas
horas depois, morreu de tuberculose.

Molière satiriza a precária ciência do seu tempo, a medicina. Faz uma crítica
acirrada à relação médico-paciente, digna das relações marcadas pela frieza e
pelo descaso. Como citado, esse personagem, rico e avarento, sempre foi recorrente
na obra de Molière. Em O doente imaginário, ele disserta sobre a má fé
dos poderosos – neste caso, a dos médicos. Naquela época, aqueles que se intitulavam
médicos eram todos charlatães.

Molière, tanto em sua obra quanto em sua vida, sempre perseguiu os médicos. Em
O Doente Imaginário eles são apresentados como ignorantes e pretensiosos
por ludibriarem e explorarem o hipocondríaco Argon. Em tom de comédia, nos coloca
frente a manifestações do espírito humano que atravessam os séculos: a cobiça,
a charlatanice, a arrogância, a hipocondria.

Um dos motivos que faz de Molière um dos nomes mais consagrados da dramaturgia moderna é o fato de que
suas obras vão além do seu tempo e apresentam-se, ainda hoje, como retratos de muitas questões sociais.

Abaixo estão dois trechos da peça: a cena de abertura, onde Argon fala de suas
dívidas com o “médico-farmacêutico”; e a cena final onde, depois de passar a peça
inteira, tentando casar a rica e linda filha com algum médico, para assim ter
assistência permanente e gratuita, opta por ele mesmo se formar em Medicina (comprando
um diploma):

CENA I

Argon: (sentado no quarto, revê as contas do farmacêutico e fala consigo mesmo)
Três e dois, cinco, e cinco, dez, e dez, vinte. Mais, do dia vinte e quatro, pelo pequeno clister
insinuativo, preprador e emoliente pra amolecer, umedecer e refrescar os intestinos do meu estimado
cliente, trinta. O que mais me agrada no Sr. Slores, da farmácia, é que suas contas são muito gentis.
Intestinos do meu estimado cliente! Certo, Sr. Flores, mas não basta a gentileza, é preciso, também, ser
razoável e não explorar os doentes. Trinta, por uma lavagem! Isso não se faz com um estimado cliente.
Nas contas anteriores, o senhor cobrava vinte, o que queria dizer dez, pois bem, são dez. E, no mesmo
dia, por um grande clister purificador feito de ruibarbo, mel e outras ervas, de acordo com a receita,
para lavar e limpar as entranhas do estimado cliente, mais trinta”. Com a sua permissão, dez. Mais, no
mesmo dia, à noite, por um xarope hepático, soporífero e sonífero, preparado para fazer o senhor dormir,
trinta e cinco. Disso, não tenho queixa, me fez dormir muito bem. Dez, quinze, dezesseis, dezessete.
Mais do dia vinte e cinco, um bom laxante e fortificante, feito de extrato de vegetais, conforme receita
do Dr. Purgan, para expulsar e evacuar a sua bílis, quarenta. Vamos, Sr. Flores, isso é brincadeira:
convém entender os doentes. Na receita, o Dr. Purgan não mandou cobrar tanto. Ponha, ponha trinta, por
favor. Mais, no mesmo dia, uma poção tranquilizante e adstringente, para o repouso do meu prezado
cliente, trinta. Vejamos, dez. Bem, quinze. Mais, do dia vinte e seis, de uma lavagem contra gases,
trinta. Dez, Sr. Flores, dez. Mais, do dia vinte e sete, remédio para equilibrar as substâncias líquidas
do corpo, dez. Fico muito satisfeito, quando o senhor é razoável. Mais, do dia vinte e oito, uma dose de
soro leitoso e adocicado para tonificar, temperar e refrescar o sangue do senhor, vinte. Bom, dez. Mais,
uma poção cordial e preservativa, composta de doze grãos de benzoato, xarope de limão, romã e outros,
segundo a prescrição, cinquenta. Ah! Calma, Sr. Flores, por favor. Se cobrar dessa maneira ninguém mais
vai querer ficar doente. Fique satisfeito com quarenta. Então, este mês, eu tomei uma, duas, três,
quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze lavagens; mês passado, paguei doze remédios e
vinte lavagens. Não é de espantar que eu não esteja tão bem este mês como no outro. Vou falar com o Dr.
Purgan para que dê um jeito nisso. Vamos, tirem tudo daqui. Tem alguém aí? Ninguém. Eu estou dizendo que
me deixam sempre sozinho: Não há meio de fazer com que fiquem comigo. (Toca uma campainha para chamar as
pessoas) Ninguém ouve; mas a campainha está muito baixa. Tlin, tlin, tlin, tlin. Está todo mundo surdo?
Nieta! Tlin, tlin, tlin, tlin. E’ como se eu não estivesse tocando. Cachorra. Sem-vergonha. Tlin, tlin,
tlin. É demais. (Pára de tocar, só grita) Tlin, tlin, tlin. Ah! Meu Deus, vão me deixar morrer aqui.
Tlin, tlin, tlin.

CENA II

Nieta:(entrando) Já vai.

Argon: Sua cachorra. Sua malandra!

Nieta: (fingindo ter batido a cabeça) Puxa vida, que impaciência.
O senhor apressa tanto a gente que eu acabei batendo com a cabeça, com toda a
força, na porta.

Argon: Traidora.

Nieta: (Fica se lamentando para interrompê-lo e impedi-lo de
gritar) Ai… Ai…

Argon: Faz…

Nieta: Ai.

Argon: Faz uma hora…

Nieta: Ai.

Argon: …que você me deixou…

Nieta: Ai.

Argon: Cale a boca, fingida, que eu estou te repreendendo.

Nieta: Ainda mais essa, depois de tudo o que me aconteceu.

Argon: Você me obrigou a grita, cretina.

Nieta: E eu, por sua causa quase quebro a cabeça. Estamos
quites, então.

Argon: Sua bandida.

Nieta: Se continuar xingando, vou chorar.

Argon: Me largar sozinho…

Nieta: (Para interrompê-lo) Ai.

Argon: Cachorra. Você quer…

Nieta: Ai.

Argon: Será que eu não posso nem ter o prazer de brigar?

Nieta: Brigue o quanto quiser, eu não ligo.

Argon: Você me impede, sua imbecil, me interrompendo a toda
hora.

Nieta: Se o senhor tem prazer em brigar, eu tenho prazer em
chorar. Cada um faz o que gosta. Não há nada demais.

Argon: Está bem. Desisto. Tire isso daqui, tire. (Ele se levanta
da cadeira) Veja se minha lavagem, de hoje, fez efeito.

Nieta: Sua lavagem?

Argon: É. Saiu minha bílis?

Nieta: Ah, não. Não tenho nada a ver com essa coisa. O Sr. Flores
que meta o nariz aí. Ele ganha para isso.

Argon: Que mantenham a água fervendo para a próxima.

Nieta: Esse Sr. Flores e esse Dr. Purgan se divertem bem como
o seu corpo. Têm no senhor uma vaca leiteira e eu adoraria perguntar a eles o
motivo de tantos remédios.

Argon: Fique quieta, ignorante. Não é você que vai controlar
minhas receitas médicas. Chame Angélica. Quero falar com ela.

Nieta: Parece que adivinhou seu pensamento, pois já está aqui.

CENA FINAL

(Uma cena burlesca, de colação de grau de um médico. Assembléia composta de porta-seringas,
farmacêuticos, doutores. Argon, vestido com a toga)

Argon:
Sapientissimus doctores,
medicinae professores,
qui estamos reunidos
para receber um novo confrade
que, pela prática e longevidade,
não precisou cursar Faculdade.
Carissimi colegas presentes,
por príncipes e reis admirados,
devemos examinar o bacharelando
e saber se pode participare
do nosso magnífico corpo docente.
É para isso que convocati estis:
dono at interrogandum
in suas capacitatibus.

Primeiro doutor:

Se mihi licentiam dat
et tanti docti doctores
et assistenti ilustres,

muito sábio bacharel,
que estimo e venero,
opium faz dormire
domando qual la causis et rationis?

Argon:
Mihi docto doctore,

domandatur causa et rationem
opium facit dormire?
Respondo que est do opium
da sua própria natura
a virtude de fare dormire.

Coro:
Muito bem, muito bem, muito bem,

respondeu o douto paciente.
Dignus, dignus est intrare
no nosso corpo docente.

Segundo autor:
Com a permissão de todos os presentes,
gostaria de perguntar ao douto bacharel,
quae sunt remedio,
quae in doença dita hidropisia,

convenit facere.

Argon:
Clysterium donare,

depois sangrare
e logo purgare.

Coro:
Muito bem, muito bem, muito bem,

respondeu o douto paciente
dignus, dignus est intrare
no nosso corpo docente.

Terceiro doutor:
Doctissimae Facultatem
et toda compania escutantem
pergunto ao distinto bacharel:
in grande febrem, com dolorem cabecis,
et pulmonicis, ataque asmatiquis,
et dificultatis respirares;
que cosa facere?

Argon:
Clysterium donare,
depois sangrare
e logo purgare.

Coro
Muito bem, muito bem, muito bem,
respondeu o douto paciente,
dignus, dignus est intrare
no nosso corpo docente.

Quarto doutor:
E se a doença teimosa
não quiser se curar?
Quid illi facere?

Argon:
Clysterium donare,
depois sangrare
e logo purgare.

Reitor:
Jura guardare statuta
per Facultatem prescrita
com sensu e julgamento?

Argon: Juro.

Reitor: Jura consultationibus i mais velhi?

Argon: Juro.

Reitor: Jura deixar que os doentes morram de suas doenças?

Argon: Juro.

Reitor:
Eu, com este diploma
venerabili e docto
dou e concedo
virtutem et poder
medicandi
purgandi
angrandi
cortandi
et matandi
impune per totam terram.

Coro:
Et vivat, vivat, cem vezes, vivat,
novus doctor que tão bem parlat
mil, mil anos vivat
per sempre matat.

(FIM)

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