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O empate, de Florentina Neves

by Lucas Gomes

No romance O empate, Florentina Esteves discute a polêmica questão das queimadas e do desmatamento na região do Acre,
os conflitos entre fazendeiros e seringueiros. O termo “empate” tem origem no verbo “empatar” e foi empregado na região
acreana com o sentido de impedir alguém de realizar ato danoso contra a natureza ou um determinado grupo. Para enfrentar a
força desagregadora dos criadores de gado, que tentavam desarticular o antigo extrativismo vegetal da borracha e da castanha,
tradicional na região, implantando fazendas nas terras de seringais, os seringueiros se utilizavam do “empate”. Homens,
mulheres e crianças se posicionavam de mãos dadas, na frente das armas, de motosserras e dos peões que trabalhavam para os
fazendeiros e madeireiros para impedir a invasão de suas terras e a derrubada da floresta. Se necessário, ficavam horas na
mesma posição ou até o dia inteiro. Esta atitude de resistência foi chamada de “empate”.

O herói desta narrativa é Severino Sobral, que mora com o filho, Firmino. Pai
e filho vivem no tempo da liderança de Chico Mendes, no Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Xapuri, com o mercado da borracha decadente e a chegada de homens e
máquinas de São Paulo e outros estados do sul, para desmatar a floresta para feitura
de pastos para a criação de gado. Esse tempo de transição de uma economia para
outra é bem registrado no romance com os empates feitos pelos últimos seringueiros,
liderados por Firmino. Na primeira parte do livro, a narrativa se detém na solidão
de Severino, vivendo isolado na mata, no corte da seringa, com visitas esporádicas
do amigo Celestino. O amigo, que era casado, dizia-lhe sempre para arranjar uma
mulher, pois a cachorra Lindalva, que lhe servia de companhia, de mulher só tinha
o nome:

– Pois então me diga onde é que tem mulher.
– Ter, não tem nem bagulho. Você já viu a Chiquinha do finado Idroaldo? Aquilo é que é ser canhão: vesga, manca, corcunda, e,
além de tudo, preta que nem tição. Pois ainda no velório, Simplício e seu Zé-dos-Bodes armaram tal fuzuê que um foi pra casa
sangrando, e o outro levou a mulher, antes mesmo do defunto feder. Mas se tu tem coragem, faz como o finado Cosme: um dia que
Gumercindo viajou a Xapuri, ele foi no seu barraco, agarrou a mulher, levou à força. E inda deixou recado: se vier buscar, leva
bala. Só que ele não contava cruzar com Gumercindo, no meio do caminho. Foi bala, seu Severino. E do pobre do Cosme as piranhas
deixaram só o esqueleto.
(ESTEVES, 1993: 07)

Aqui a manifestação de relações de raça e de gênero está em questão. A mulher disputada pelos seringueiros no velório é negra.
A presença do elemento negro é ainda mais rara que a do indígena no romance acreano. Além de praticamente não existir escritores
negros, os representados nas narrativas são personagens sempre subalternas, a serviço de um seringalista rico e explorador.

Severino, após beber em excesso no baile, fica bem doente e viaja com Celestino para tomar os remédios da índia Jandira. Nessa
ocasião, Severino conhece Mani e, no mesmo dia, volta com ela para sua barraca para ser sua companheira: “Severino sentiu que Mani
era parte de seu ser, de que também faziam parte a terra, rio, árvores, pássaros e o ar que respirava”
(ESTEVES: 16). No decorrer
da narrativa, sobressai aos olhos do leitor a história de amor do seringueiro Severino Sobral e sua companheira Mani, índia da tribo
dos Ianomâmis, uma vez que a mulher branca contava em quantidade insuficiente para todos os seringueiros. Ele e Mani (homem branco
e índia) formam um casal de amantes perfeitos, vinculados entre si e com a mata. O trecho abaixo demonstra a força da ligação entre
Severino e Mani, que, após o nascimento de cada filho, plantavam uma árvore em homenagem à criança:

Mandaram logo recado a Jandira. Mas como a índia não chegou a tempo, ele mesmo serviu de parteira. Serviu de parteira também
quando nasceu Iraci, depois Jaci, Conceição, Maria Rita, Antônia, Agaildo, Aquino. Jandira só precisou vir na vez do temporão:
Firmino. Aí ele levou-a ao terreiro, ‘vem ver os irmãos dos meninos’. Enfileirados, mostrou-lhe que depois da sapupema vinha a
ingazeira, o cedro, copaíba, pau-d’arco, mulateiro, o sapoti e a tamarineira. Pouco adiante, atravessando a trepadeira do portão
do barraco, estava o pé de cumaru-ferro: este é o irmão de Firmino.
(ESTEVES: 20)

Quando nasceu Nino, o primeiro, plantaram uma Sapupema. Jandira, mãe de Mani, era parteira e ajudava nos partos, pois, na floresta,
os médicos aparecem esporadicamente. O próprio marido passa a fazer os partos de sua esposa, voltando a pedir ajuda da sogra no
último e nono filho. Assim, o quintal floresce farto de árvores, cada uma plantada de acordo com o desejo que Mani teve na gravidez
e com a característica que seria marcante no filho que nascia.

Todos esses elementos servem para revelar ao leitor como seria difícil, impossível para um homem como Severino deixar suas terras,
plantações e moradia para viver na cidade, só porque a terra agora pertencia a fazendeiros. Mani adoece e acaba por falecer depois
que os filhos estão adultos. Ela começa a entristecer com a morte de Agaildo, o filho que decide ajudar nos empates depois de se
casar e constituir família. Ele morre durante um dos empates de emboscada, esfaqueado por um peão, deixando a esposa grávida do
primeiro filho. Mais tarde, Nonato, o marido de Toinha, filha de Severino e Mani, mata um peão que mexera com sua esposa. Nonato
foge e desaparece depois do crime. Severino leva Toinha e os netos para sua casa (barraco). Quando ela resolve voltar para sua
colocação, toma conhecimento que os “paulistas” queimaram tudo e já se apropriaram das terras. Ela deixa as filhas menores com
os avós e decide morar na cidade com o filho mais velho. Certa ocasião, em que Severino vai visitá-la, descobre desgostoso que a
filha vive na prostituição.

Após tais acontecimentos, a saúde de Mani piora levando-a a morte. Ela não teria
como sobreviver, mesmo sendo a representação da natureza dentro da narrativa.
Ela, mulher indígena conhecia todos os remédios feitos com as ervas da floresta,
conhecimento ancestral que foi passado de mãe para a filha. Ela que conhecia os
mistérios e os segredos da mata, morre, uma alegoria de que os criadores quando
destruiam e queimavam as árvores indiscriminadamente para a criação de pastos,
matavam também as tradições, a sabedoria do povo da floresta, seus costumes e
meios de vida. O massacre ambiental equivaleria a um massacre cultural.

Fonte: Margarete Edul Prado de Souza Lopes, Doutora em Literatura Brasileira (UFBA)

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