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O fiel e a pedra, de Osman Lins

by Lucas Gomes

Com o romance O Fiel e a Pedra, publicado em 1961, Osman Lins começou
a afiar os instrumentos com os quais se tornaria um dos maiores artesões da literatura
brasileira contemporânea. Escrito em 1960, este livro pode ser considerado um
divisor de águas na obra do autor.

O Fiel e a Pedra ergue-se como a obra-base no percurso do ficcionista,
precisamente porque alcança o justo e alto equilíbrio entre as duas tendências,
a introspectiva e a experimentalista.

Nesse romance o autor se entrega a uma radical experiência na estrutura do romance,
levando o leitor a um tremendo esforço para atingir suas páginas finais, tão
diferente e experimental é sua estrutura de narrativa.

Diferente dos demais romances de cunho regionalistas que procuram a todo momento
realçar costumes e folclores da região, O Fiel e a Pedra, mesmo tratando-se
de uma história localizada na zona rural do nordeste, é um romance explicitamente
universal. Indiferente da região em que vive a alma humana é a mesma, deixa
claro o autor. Segundo algumas opiniões, é romance escrito para ser degustado
aos poucos, num lento processo de avaliação e empatia.

Em vez de se deixar seduzir pelo coloquialismo fácil, ao gosto de tantos, Osman
Lins usa uma linguagem limpa, lavrada com ferramentas precisas, resultando numa
obra acabada, pronta a suportar todos os ventos com seus modismos temporários.

É um romance de uma tensão interna e externa que não amortece em momento nenhum,
da primeira à última palavra, de maneira que as soluções lingüísticas decorrem,
por necessidade, das situações focalizadas, e estas, reciprocamente, geram a
linguagem adequada à sua representação. Romance de tensão dramática e metafísica,
a primeira, ao nível da problemática social, encarnada por Bernardo e Teresa
em luta com Nestor e os seus capangas; a segunda, ao nível cósmico, em que se
joga a existência, não de um indivíduo encurralado pelo ódio e o medo, mas no
gênero humano a debater-se com as forças indômitas que despertou ou pôs em movimento,
– do ser humano em face da Natureza, dos semelhantes e, sobretudo, de si próprio,
seu inimigo maior. Um halo poético envolve tudo, seres e paisagens; inclusive
os maus, os antagonistas empedernidos, se movem num plano mítico.

A história, passada em zona rural nordestina, tem por núcleo as relações conflituosas
entre um despótico senhor de terras, Nestor, e um forasteiro íntegro e altivo,
Bernardo. Ao escolher uma região e uma situação presentes no romance dos anos
30, Osman Lins corria o risco de pervagar trilhas conhecidas ou pisar terrenos
cansativamente visitados. Não obstante, como o leitor verificará por conta própria,
soube contorná-lo airosamente e ainda criar uma obra-prima.

A tensão dialética se concretiza no diálogo entre as personagens e a Natureza;
o recorte abissal dos protagonistas, efetuado com indisfarçável economia de
meios, reflete-se na descrição da paisagem, retratada com fidelidade e senso
de medida. Eqüidistante, sopesando cuidadosamente o valor de cada pólo dramático,
o ficcionista defende-se de atribuir à paisagem função condicionante; embora
não lhe negue a força opressiva, desloca o eixo da ação para o herói, para o
ser humano; não é o cenário que lhe atrai a atenção, mas o conflito, não a geografia,
mas homem. O propósito implícito é sondar o homem, ou antes, o Homem perante
a adversidade do contexto natural e dos semelhantes por ele abrutalhados.

O problema humano é que se levanta, de molde a tornar a Natureza o espaço acidental
em que o drama se organiza, se desdobra e deflagra tragicamente. Desse modo,
sem recorrer aos expedientes narrativos utilizados na década de 30, Osman Lins
atinge a feitura de um romance regionalista de indiscutível universalidade.
A trama romanesca, estruturada com a simplicidade apolínea das obras acabadas,
arma-se ao redor do Bem e do Mal, aquele representado por Bernardo, este, por
Nestor. No final, o Bem vence em toda a extensão, mas vence de acordo com lei
dos direitos superiores do Homem, não com a dos mais fortes. Prevalece o mel
da bondade humana sobre a sua animalesca ausência. E sem que se possa entrever
nesse quadro um idealismo panglossiano ou utopia cega, impõe-se o poder do caráter,
no qual os impulsos poéticos desempenham relevante papel. Vence, pois, a bondade
humana e um sentido poético da existência. Romance-poema, tal a pulsação comovida
e o intenso lirismo que permeia o enredo, qualquer de suas páginas ressuma de
poesia: a sua vitalidade fora do comum promana do consórcio íntimo entre o narrativo
e o poético, da transfiguração constante dos fatos em atmosferas líricas, como
se a “guerra” de Bernardo e Nestor fosse recordada por entre as névoas da reminiscência
ou as lágrimas da saudade, ou entrevista na luz coada de vitrais penumbrentos.

Nesse ambiente vago, um homem, Bernardo, busca a sua identidade na reconstrução
do seu “eu” estilhaçado. A auto-sondagem processa-se discretamente, pausadamente,
e o ficcionista observa as reservas do protagonista. De onde o drama não assomar
inteiro à tona da consciência, mas em pedaços, como restos de naufrágio a boiar
no dorso das vagas. É que O Fiel e a Pedra não se limita a ser o simples
relato de acontecimentos motivados por uma questão de terras e de orgulho malferido:
verdadeiramente, objetivamente patentear, nos embates de dois seres plenos de
amor-próprio, a imagem total do homem ansioso de reconquistar a perdida ou dispersa
unidade essencial. Assim, com retratar o desespero de um ser que (re)constrói
a sua essência com os retalhos da sua existência, o romance bordeja a problemática
existencialista. E, desde o primeiro momento, um clima de tragédia domina a
narrativa, adensa-se progressivamente e chega ao clímax no derradeiro capítulo,
por si só uma peça antológica. Para ali confluem as linhas de força trágicas
que se vinham avolumando ao longo da peregrinação de Bernardo e Teresa no rumo
da terra da promissão ou do esquecimento e renúncia. Prova de fogo para qualquer
escritor, as páginas finais mostram um ficcionista a reunir naquele trecho todas
as suas virtualidades estéticas. Presenciamos uma cena de tragédia grega ou
shakespeareana, em que o pathos transbordante mal e mal se descarrega na morte,
por meio de que o Bem exerce o seu equívoco domínio. Nesse “reino” de angústia,
vivem emparedados, suspensos e resignados, Bernardo e Teresa: ela, fadada a
um tal homem, toda feita de energia moral e beleza interior, iluminada por uma
chama de esperança, sobrançaria e determinação, apesar de um sofrimento aterrador
que o tempo não diminui. Mais sombra que ser físico, contorno diáfano, imponderável
e frágil, nela o marido encontra, ironicamente, o apoio para evitar a catástrofe
que se aproxima e resistir ao assédio humilhante de Nestor e os seus apaniguados.

Ele, vítima ou depositário de um caráter privilegiado que o eleva acima do condicionamento
social e natural, vive cercado por entidades malignas que o repelem com a um corpo
estranho: o ódio e a morte. De ambos se livra graças ao imenso orgulho e ao “furor”
olímpico, amparados no amor plácido e confiante de Teresa. Estofo de herói no
sentido preciso do vocábulo, nele a Literatura Brasileira ganha mais uma figura
emblemática, ao lado de um Capitão Vitorino, de Fogo Morto, e de um Rodrigo
Cambará, de O Tempo e o Vento, duas obras de índole regionalista.

Texto parcial de www.ermelindaferreira.com

Enredo

Narrativa que conta a saga de Bernardo Vieira Cedro. A trama tem início na zona
urbana de Vitória, na época histórica do declínio canavieiro do Nordeste. Dali,
após a morte de José, seu único filho, Bernardo, a mulher Teresa e Antônio Chá,
um amigo fiel, deslocam-se para a zona rural de Pernambuco, para trabalhar como
barranqueiro, a serviço de Manuel Benício, no Engenho do Surrão.

A sogra de Bernardo, Suzana guarda rancor dele pelo sofrimento que causa à mulher
e ao filho devido à pobreza decorrente do desemprego e da falta de recursos
de Bernardo.

Em flash back recupera-se o passado de Bernardo: o pai, Vieira Cedro, Cissone,
filha bastarda de Vieira Cedro, de Lucinda, a mãe do herói; de Caetano, que
aos dezoito anos abandonou a casa paterna e sumiu no mundo.

No Surrão, Bernardo conhece a Tiago, Vié Nequinho e Precipício, assassinos conhecidos;
Cizilão, o Cabo, sádico espancador de mulheres, homem de Maria Genuína, a quem
ateara fogo aos cabelos, e Xenofonte, vigia do Engenho.

Miguel Benício, vítima de um aneurisma, morre em circunstâncias estranhas, após
haver transferido numa falsa venda, todos os seus bens para Nestor Benício,
irmão ganancioso. Tal negócio visava a excluir os direitos de Creusa, esposa
infiel de Miguel.

Nestor, violento e desonesto, objetiva também conquistar o gado da viúva, Creusa,
este sob os cuidados de Bernardo, que ouvindo sua consciência se recusa a entregar.

Nestor começa a pressionar Bernado com a cobrança de aluguéis não devidos.

Entra em cena Teles de Sá, advogado de Creusa que começa a investigar as condições
da venda da propriedade de Miguel para Nestor. Este, porém consegue cooptar
o advogado Teles oferecendo-lhe vantagens e dinheiro, depois, Nestor vai acusar
o advogado de inépcia profissional e de corrupção. Humilhado, Teles de Sá abandona
o lugar. Resolvido o problema do advogado, resta a Nestor um último entrave,
Bernardo.

Pressionado pelo fato de a esposa estar grávida, Bernardo não suportando as
pressões de Nestor, resolve procurá-lo para vender sua roça e dizer que se dispõe
a voltar para Vitória, porém, não consegue encontrar Nestor e na volta é tocaiado,
recebendo dois tiros, que, entanto, erram o alvo. Teresa resolve ir para a casa
da mãe e ficar à espera da volta de Bernardo e Antônio Chá. Por fim, Nestor
Benício cerca Bernardo e faz um balanço dos seus bens: mercadorias do barracão,
os animais, a plantação. Bernardo negocia e resolve se retirar do surrão levando
um burro selado. Nestor, porém, afirma que o animal não estava incluído na transação.
Nestor confiando em seus capangas, entre os quais o misterioso Ubaldo. Nestor
atira em Bernardo que ferido tenta se manter sobre o animal, nesse momento Antônio
Chá atira em Nestor, matando-o. Ubaldo resolve não agir e deixa Antônio Chá
partir com o ferido Bernardo sobre o burro. A seguir, Ubaldo e Marvano – outro
capanga – duelam e ambos morrem. Antônio Chá leva Bernardo até um caminhoneiro
que o levou, quase morrendo, à casa da sogra, Suzana.

Vinte e cinco anos depois – momento da narrativa – Joana é a filha que foi concebida
quando Bernardo e Teresa estavam no Surrão. Tiveram outros três filhos, dois
dos quais morreram. O que ficou vivo foi chamado de Ubaldo, em homenagem ao
capanga que deixou Bernardo vivo. Bernardo e Teresa ainda se amam, apesar do
peso do tempo. Bernardo fez sociedade com o caminhoneiro Hutá Vilarim e montou
negócio de gado. Antônio Chá, casado, é pai de cinco filhos.

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