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O Fogo e as Cinzas, de Manuel da Fonseca

by Lucas Gomes

O
Fogo e as Cinzas,

publicado em 1951, é um dos mais significativos livros
de contos da moderna literatura portuguesa, onde a arte de Manuel da
Fonseca atinge a perfeita maturidade, revelando-se então um escritor de tendência
regionalista e de funda preocupação humana, que retrata a vida pobre dos trabalhadores
rurais das planícies alentejanas, dando especial realce à sua luta contra a
injustiça.

Os contos
são acerca de um Alentejo dos anos 40 e 50, rústico e em
decomposição. Eles nos
falam das gentes de uma terra maravilhosa mas pobre: esse Alentejo de há muitas
décadas, que assistia aos primeiros passos de um progresso lento. As personagens
são crianças, velhos, camponeses, habitantes de pequenas vilas ou cidades,
alguns deles condenados à exclusão pela pobreza ou pelo esquecimento – cenas de
um passado que em alguns casos se prolongaram até ao presente. O mundo que aparece 
na obra corresponde a um Alentejo certamente mitificado no imaginário
neo-realista como lugar da revolta dos camponeses contra os latifundiários, mas
transcende essa dimensão da luta de classes pela presença de uma panorâmica
social mais vasta, em que avulta a personagem um tanto marginal do maltês ou o
universo das pequenas vilas modorrentas, cujos habitantes se reúnem no café ou
no largo principal, verdadeiro “centro do mundo” para onde convergem as
histórias ora dramáticas, ora quase picarescas, que enriquecem narrativamente o
conjunto.

Conto escolhido:

O Largo

Era o centro da
Vila. Os viajantes apeavam-se da diligência e contavam novidades. Era através do
Largo que o povo comunicava com o mundo. Também, à falta de notícias, era aí que
se inventava alguma coisa que se parecesse com a verdade. O tempo passava, e
essa qualquer coisa inventada vinha a ser a verdade. Nada a destruía: tinha
vindo do Largo. Assim, o Largo era o centro do mundo.


Quem lá dominasse, dominava toda a Vila. Os mais inteligentes e sabedores desciam
ao Largo e daí instruíam a Vila. Os valentes erguiam-se no meio do Largo e desafiavam
a Vila, dobravam-na à sua vontade. Os bêbados riam-se da Vila, cambaleando, estavam-se
nas tintas para todo o mundo, quem quisesse que se ralasse, queriam lá saber-
cambaleavam e caíam de borco. Caíam ansiados de tristeza no pó branco do Largo.
Era o lugar onde os homens se sentiam grandes em tudo o que a vida dava, quer
fosse a valentia, ou a inteligência, ou a tristeza.


Os senhores da Vila desciam ao Largo e falavam de igual para igual com os mestres
alvanéis, os mestres-ferreiros. E até com os donos do comércio, com os camponeses,
com os empregados da Câmara. Até, de igual para igual, com os malteses, os misteriosos
e arrogantes vagabundos. Era aí o lugar dos homens, sem distinção de classes.
Desses homens antigos que nunca se descobriam diante de ninguém e apenas tiravam
o chapéu para deitar-se.


Também era lá a melhor escola das crianças. Aí aprendiam as artes ouvindo os
mestres artífices, olhando os seus gestos graves. Ou aprendiam a ser valentes,
ou bêbados, ou vagabundos. Aprendiam qualquer coisa e tudo era vida. O Largo
estava cheio de vida, de valentias, de tragédias. Estava cheio de grandes rasgos
de inteligência. E era certo que a criança que aprendesse tudo isto vinha a ser
poeta e entristecia por não ficar sempre criança a aprender a vida- a grande e
misteriosa vida do Largo.


A casa era para as mulheres.

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