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O fotógrafo, de Cristóvão Tezza

by Lucas Gomes

Publicado em 2004, O fotógrafo é o primeiro romance de Cristóvão Tezza, desde 1998.

Neste romance os personagens são revelados gradativamente, ganhando uma impressionante
profundidade com o avançar da narrativa. Para que eles sejam compreendidos, não
basta acompanhar o que se passa em suas mentes, é preciso também vê-los passar
por diversas situações, descobrir o que os outros pensam deles, conhecer seus
familiares. A solidão de um personagem pode dizer muito sobre o outro.

A ação se desenvolve num único dia. Os personagens compartilham nesse mesmo dia dos mesmos espaços
físicos – Lídia sai de uma sessão de cinema acompanhada por Duarte no exato instante em que Mara
surpreende o fotógrafo apontando a câmera para a mulher e desistindo de registrar talvez um flagrante;
Lídia cruza com Íris na saída do elevador na universidade, mas não sabe que ela é a jovem perseguida
pelo marido -, sem que, no lapso de tempo em que se desenvolve a ação principal e aparentemente
frustrando a expectativa do leitor, eles venham a descobrir essas coincidências.

O texto revela os pensamentos ora de um, ora de outro, numa rede muito bem tramada.
Várias ações simultâneas são mostradas, uma de cada vez, num vaivém de pontos
de vista construído com perfeição. E embora O fotógrafo não seja propriamente
uma história de suspense, não há como o leitor não ficar ansioso para saber o
que vai acontecer em seguida. Mais do que isso: “ver” o que um personagem está
fazendo gera uma grande curiosidade de saber o que está se passando com os outros
naquele mesmo instante, ainda que numa parte diferente da cidade.

Os personagens estão impregnados de uma melancolia azeda. Como numa espécie de auto-exílio, escolhem
para si a solidão e isso os sufoca. Guardam os ressentimentos em silêncio, à espera do momento adequado
para colocá-los para fora – um momento que nunca chega. Não à toa, estão sempre pensando alto,
balbuciando coisas desconexas. Um artifício inteligente do autor.

Apesar do título, o romance de Cristovão Tezza se constrói não a partir de um mas de três fotógrafos.

O primeiro deles é o protagonista da história, um jornalista de 40 anos, em Curitiba, às vésperas da
eleição presidencial que elegeria Lula. Inseguro, insatisfeito com seu trabalho e sua vida afetiva, o
fotógrafo aceita uma proposta de trabalho diferente: fotografar uma jovem, a pedido de um homem
misterioso. Dividido entre a realidade e a fantasia, o fotógrafo se move com dificuldade no mundo real,
e apenas se sente seguro quando amparado por sua câmera.

Sua câmera o orienta como um astrolábio orientava os antigos navegadores, e de tal modo o fotógrafo
depende do seu precioso instrumento de leitura que, sem ele, não consegue se guiar pelos labirintos de
um cotidiano cada vez mais assustador. Leitor de imagens, fotografar é seu “modo de entender as coisas”,
como ele mesmo afirma. E entender não apenas o passado e o presente mas também o futuro, num exercício
que pode quem sabe ser resumido numa de suas crenças, a de que o bom fotógrafo não olha exatamente para
o seu modelo, mas para a fotografia que ainda não existe ali.

Anônimo, o fotógrafo de Tezza está sempre à margem, fora da foto, tanto no campo profissional (é quase
um desconhecido) quanto no amoroso (para a esposa, é apenas uma sombra do passado). Como um fantasma,
ele caminha pela cidade, imaginando cenas, diálogos, personagens, inventando um mundo onde possa caber
melhor. E onde possa estar com a mulher que vai fotografar, a bela e atormentada Íris (cujo nome é um
signo talvez um pouco óbvio demais).

No nível simbólico, porém, há um segundo fotógrafo: o narrador. Agora se utilizando não de uma máquina
fotográfica mas de palavras, este narrador onisciente — e anônimo, como o protagonista —, “fotografa” o
próprio fotógrafo e aqueles que o cercam, invadindo seus pensamentos, medos, desejos, trazendo à luz as
imagens reprimidas em função das conveniências sociais. Nesse sentido, o romance dialoga com o ensaio,
como boa parte da ficção brasileira das últimas décadas, e dá vazão, a partir do que falam, pensam e
imaginam os personagens, a elucubrações diversas nos campos da filosofia, da política, da psicanálise,
da literatura.

É este segundo fotógrafo que conduz o romance. Não por acaso, à certa altura, um dos personagens,
professor de literatura na universidade, afirma estar absorvido por um trabalho sobre a figura do
narrador — “que afinal é o que importa”. O recado parece claro: é o narrador que dá ao romance de Tezza
seu teor de originalidade. A história em si, centrada em personagens comuns e com uma trama banal,
adquire intensidade dramática pelo modo como é contada. Vidas pequenas, anônimas, são alçadas ao
primeiro plano pela objetiva do narrador e ganham uma dimensão diferente, nos fazendo ver o que escondem
de ironia, desacerto e, num certo sentido, esperança.

Alternando constantemente seu foco, o narrador vai fazendo girar a ciranda de personagens, levando o
leitor a visitar o mundo particular de cada um. Sem aviso prévio, a narração passa de um a outro e deste
ao seguinte, numa espécie de travelling que mostra ora o que se passa por fora — seus rostos no espelho,
seus corpos, as ruas por onde andam —, ora o que vai por dentro daqueles de quem se conta a história, ou
as histórias. E como não tem nome nem participa daquilo que conta, o narrador é também, a seu modo, um
outro fantasma. É desse lugar móvel que ele faz as fotos de cada um e, juntando-as num intrincado painel,
vai montando seu relato.

Num terceiro círculo, há um derradeiro (ou primeiro, dependendo de como se vejam as coisas) fotógrafo: o
autor. E se agora já não se trata de um anônimo, como os dois anteriores, este terceiro fotógrafo não
perde contudo sua condição de quase invisibilidade. Ao optar por uma escrita neutra, sem experimentações
formais e sem aquela desagradável intromissão, na narrativa, da voz autoral — mais conhecida como a
“mensagem” do texto —, o autor como que desaparece de cena, deixando apenas, como marca de sua passagem,
o nome na capa do livro.

Ao montar a história da forma como o fez e ao criar um narrador como este, Tezza, no entanto, vai
deixando transparecer aos poucos um outro ensaio fotográfico, para além dos retratos de sentimentos
fortes — medo, insegurança, solidão — levados a cabo pelo narrador. Sem que se anuncie explicitamente,
ou seja, sem que o narrador o explicite, Tezza vai apresentando ao leitor outras fotos possíveis.

Algumas delas mostram, como num close, uma das faces da cidade de Curitiba no início do século XXI. E
outras captam certo clima reinante no país às vésperas da eleição presidencial de 2002. Nesse caso, o
interessante é a sugestão de espelhamento entre o que vivem os personagens, em seus dramas particulares,
e o país como um todo. A sensação de medo e euforia pela proximidade da mudança, que faz os personagens
se sentirem vivos, excitados, se aproxima daquilo que experimenta grande parte da população, na
expectativa do que virá com a eleição do novo presidente.

Condensando narrativa tão múltipla no espaço de apenas um dia, Tezza confere mais intensidade ao relato,
já carregado pela tensão da espera (de um novo país, um novo amor, uma nova vida).

É da combinação entre esses três fotógrafos — personagem, narrador e autor — que o romance faz surgir
seu auto-retrato, exposto agora ao leitor, a quem caberá, como sempre, o retoque final.

Um pano de fundo em que se projetam temas da atualidade (eleições, falência do casamento institucional,
sexo, drogas etc.) faz com que se sobressaiam esses poucos personagens enquanto remoem seus pequenos
dramas cotidianos (a insatisfação, o desajuste, o desgaste familiar, a preocupação com os filhos).

Um livro é quase minimalista pela leveza da trama, mas cuidadosamente trabalhado
na maneira de apresentá-la ao leitor, valendo-se de uma escrita irrepreensível,
sem deixar de ser provocantemente moderna.

Cada um dos 25 capítulos, dispostos como fotos numa exposição, corresponde a uma
cena fotografada em suas minúcias e de diversos ângulos, não raro por mais de
uma “câmera” – ou seja, o olhar de um personagem. Muito além da cena em si, captada
no exato instante em que ela ocorre, o movimento principal do livro acontece na
cabeça de cada um dos cinco protagonistas. Contendo os elementos da história que
vêm desaguar no presente, esse mergulho interior é tão ricamente explorado que
o autor às vezes não se contém e chega a permitir a intromissão de uma primeira
pessoa, causando estranheza ao dar voz interna ao próprio personagem, quando o
texto é todo ele construído na terceira pessoa, embora o foco narrativo seja alternado
a cada troca de protagonista.

Longe de ser inadequada, a intrusão reforça o caráter de monólogo interior do discurso, ainda que ele se
valha de uma voz diferente do “eu” exigido nessa técnica narrativa.

As relações humanas são ásperas: na óbvia deterioração do casamento, no serviço escuso e na postura
dissimulada decorrente, na dificuldade do homem conservador em lidar com uma paixão extraconjugal, no
encontro com o amigo de infância que virou político, tudo tem sempre um travo de mal-estar e
constrangimento. A imagem que o fotógrafo faz do próprio casamento – “dois estranhos com uma filha no
meio” – é o melhor exemplo desse ânimo. A felicidade fica restrita aos limites das reminiscências do
passado e de alguma tímida projeção para o futuro, enquanto o presente quase nunca deixa de ser
desgracioso e mal-ajambrado. A frase de abertura, “a solidão é a forma discreta do ressentimento”, dá o
tom predominante e funciona também como um leitmotiv, que será retomado em diferentes situações no
decorrer do romance.

Enredo

A história se desenvolve ao longo de um único dia na vida de cinco personagens – Mara, Duarte, Lídia, Íris
e o fotógrafo -, na Curitiba de 2002, às vésperas da eleição presidencial.

A narrativa principal acompanha o fotógrafo, sem nome do título. Ele se dispõe a seguir Íris, uma bela
jovem, e fotografá-la em segredo pelas ruas. O homem misterioso que o contratou para o serviço paga 200
dólares por cada filme não revelado com fotos da moça. Embora o trabalho seja relativamente fácil e o
dinheiro seja bom, o fotógrafo falha logo de cara – sentindo-se atraído pela jovem, ele vai ao seu
apartamento e se apresenta a ela com uma desculpa qualquer, a fim de vê-la mais de perto e fotografá-la
como um artista, não como um paparazzo.

Assim que termina a sessão de fotos, o fotógrafo corre para seu laboratório particular, ansioso para
revelar o filme. A revelação é um processo delicado, que requer técnica – a imagem não se materializa de
repente no papel, ela surge aos poucos, cercada de mistério e expectativa, pois nunca se sabe exatamente
como ficará a foto.

Ao mesmo tempo, o fotógrafo vive uma crise conjugal, mas não sabe como dizer à esposa Lídia que seus
dias juntos terminaram. Lídia também acha isso e, assim como o marido, não sabe como expressar o
problema, e começa um caso com seu professor de mestrado, Duarte. Duarte é casado com Mara, que é
analista de Íris. Em uma cena, Lídia e Íris se cruzam em um elevador.

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