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O homem e sua hora, de Mário Faustino

by Lucas Gomes

O Homem e Sua Hora

, publicado em 1955, tem como autor Mário
Faustino. Poesia de tom nunca decadente. Em seu texto jamais o desleixo, a irresponsabilidade
que conduz ao verso mal acabado à barbárie do poema sem convicção
e sem unidade.

Na época da publicação o panorama literário brasileiro
passava por uma confluência de estéticas. De um lado, o pós
modernismo ou a geração de 45; do outro, o surgimento de vanguardas
brasileiras (Concretismo, Poesia Práxis, Poema Processo,…).

O livro é um livro dividido em três partes: “Disjecta Membra”
(do latim, membros dispersos), “Sete Sonetos de Amor e Morte” e “O
Homem e Sua Hora”.

1ª parte: “Disjecta Membra” (título
inspirado nas palavra de Horácio, célebre poeta latino, que viveu
no ano 65 a.C., autor do famoso tratado de poesia “Arte poética”.
A frase original, retirada da obra Sátiras é: “Disjecti
membra poetae” – isto é – “Os membros do poeta
esquartejado”, completáveis assim: não seriam reconhecíveis
se lhes desfizéssemos o ritmo e a disposição da frase”.
Esta parte compõe-se de 13 poemas: Mensagem, Brasão, Noturno,
Vigília, Legenda, Romance, Vida toda linguagem, Estrela roxa, Alma que
foste minha, Solilóquio, Mito, Sinto que o mês presente me assassina
e Haceldama (do hebraico, “campo de sangue”). À exceção
de Romance (em redondilha maior), há o predomínio do verso decassílabo,
trabalhado pelo poeta com uma grande variedade rítmica, utilizando-se
de formas livres na composição poética.

2ª parte: Sete Sonetos de Amor e Morte (todos em decassílabos
e escritos à maneira inglesa: os quatorze versos são compactados
numa só estrofe: O mundo que venci deu-me um amor, Nam sibylam (do latim,
é certo, Sibila), Inferno, eterno inverno, quero dar, Agonistes (do grego,
lutador, atleta), Onde paira a canção recomeçada, Ego de
Mona Kateudo (do grego pelo latim: e eu jazo sozinha), Estava lá Aquiles
que abraçava. Os sonetos são estruturados à maneira inglesa
(quatorze versos sem a divisão estrófica). Dos sete, quatro seguem
a tradição renascentista de ter como título o primeiro
verso do poema.

3ª parte: Constituída por um só texto
que dá título à obra. Trata-se do poema “O homem e
sua hora”. Contém 235 versos, decassílabos na quase totalidade.
É a síntese do projeto poético de Mário Faustino.
Determinados trechos são difíceis de compreendê-los, pois
exigem do leitor conhecimentos sobre mitologia, literatura bíblica e
greco-latina. Trata-se de um longo diálogo do poeta com o mundo, sugerindo
mais do que afirmando. A intertextualidade faz-se presente através de
referências aos livros do Antigo e do Novo Testamento, passando por autores,
como Homero, Safo, Confúcio, Virgílio, Homero, Dante, Pound, Mallarmé,
Eliot, Jorge de Lima e outros.

Os versos surgem numa cadeia sintática descontínua e reticente,
instaurando no texto o pensamento fragmentário e analógico, tornando
o tom ambíguo, cada vez mais saliente no poema. É também
propósito do poeta enunciar, ao longo do poema, princípios da
linguagem poética que devem nortear os versos, privilegiando pressupostos
de Ezra Pound: a fanopéia (atribuição de imagens à
imaginação visual), logopéia (a dança do intelecto
entre palavras) e a melopéia (musicalidade). Amor e morte, tempo e eternidade,
sexo, carne e espírito, vida agônica, salvação e
perdição, pureza e impureza, Deus e o homem, passam e repassam,
sob diferentes nomes e em diferentes situações, nos versos do
livro O Homem e sua Hora. Outros temas são ainda recorrentes
na obra: o tempo, misto de efêmero e de eterno. Há também
o tempo que destrói e consome nossa existência, em momentos de
solidão e de muita angústia.

Os textos de O Homem e sua Hora sempre traduzem a consciência
de um estado em crise. Seja no âmbito literário, como no soneto
Prefácio, seja na esfera pessoal, como no poema O mundo que venci deu-me
um amor. A poesia, o poeta e o poema são temas constantes em todo o livro.
Ressalte-se também a poesia com fins didáticos. O poeta é,
ora visto como artista e artesão, ora como cantor inspirado e fecundador.
O poeta é concebido como produto da inspiração e do intelecto.

Há também no livro, momentos em que o autor, a exemplo de João
Cabral de Melo Neto e de Carlos Drummond de Andrade, teoriza sobre a poesia
dentro do próprio poema, estabelecendo a fusão entre as funções
poética e metalingüística. É oportuno lembrar que
todos os temas assumem diferentes matizes ou subtemas. A linguagem poética
de Mário Faustino é altamente elaborada, com senso de disciplina
e ritmo preciso. Por essa razão, é tida para alguns como hermética.
Ao construir poemas em formas tradicionais, segue o exemplo dos bons poetas
da língua, pois entendia a forma como possibilidade de criar novas
estruturas. Daí a capacidade que possuía de transitar da forma
tradicional para as variantes poemáticas próprias.

Alguns poemas da obra

PREFÁCIO

Quem fez esta manhã , quem penetrou
À noite os labirintos do tesouro,
Quem fez esta manhã predestinou
Seus temas à paráfrases do touro,
A traduções do cisne : fê-la para
Abandonar-se a mitos essenciais ,
Desflorada por ímpetos de rara
Metamorfose alada , onde jamais
Se exaure o deus que muda , que transvive .
Quem fez esta manhã fê-la por ser
Um raio a fecundá-la , não por lívida
Ausência sem pecado e fê-la ter
Em si princípio e fim : ter entre aurora
E meio-dia um homem e sua hora.

1.1 Primeira Parte – Disjecta Membra

MENSAGEM

Em marcha, heróico, alado pé de verso,
busca-me o gral onde sangrei meus deuses;
conta às suas relíquias, ontem de ouro,
hoje de obscura cinza, pó de tempo,
que ele os venera ainda, o jogral verde
que outrora celebrou seus milagres mais fecundos.

Dize a eles que vinham
tecer silentes minha eternidade
que a lava antiga é pura cal agora
e queima-lhes incenso, e rouba-me farrapos
de seus mantos desertos de oferendas
onde possa chorar meu disfarce ferido.

Dize a eles que tombam
como chuvas de sêmen sobre campos de sal
sem mancha, mas terríveis
que desçam sobre a urna deste olvido
e engendrem rosas rubras
do estrume em que tornei seus dons de trigo e vinho.

Segue, elegia, busca-me nos portos
e nas praias de Antanho, e nas rochas de Algures
os deuses que afoguei no mar absurdo
de um casto sacrifício.
Apanha estas palavras do chão túmido
onde as deixo cair, findo o dilúvio:
forma delas um palco, um absoluto
onde possa dançar de novo, nu
contra o peso do mundo e a pureza dos anjos,
até que a lucidez venha construir
um tempo justo, exato, onde cantemos.

ROMANCE

Para as Festas da Agonia
Vi-te chegar; como havia
Sonhado que já chegasses:
Vinha teu vulto tão belo
Em teu cavalo amarelo,
Anjo meu, que, se me amasses,
Em teu cavalo eu partiria
Sem saudade, pena, ou ira;
Teu cavalo, que amarraras
Ao tronco de minha glória
E pastava-me a memória.
Feno de ouro, gramas raras.
Era tão cálido o peito
Angélico, onde meu leito
Me deixaste então fazer,
Que pude esquecer a cor
Dos olhos da Vida e a dor
Que o Sono vinha trazer.
Tão celeste foi a Festa,
Tão fino o Anjo, e a Besta
Onde montei tão serena,
Que posso, Damas, dizer-vos
E a vós, Senhores, tão servos
De outra Festa mais terrena –

             Não
morri de mala sorte,
             Morri
de amor pela Morte
.

BRASÃO

Nasce do solo sono uma armadilha
Das feras do irreal para as do ser
– Unicórnios investem contra o Rei.

Nasce do solo sono um sobressalto.
Nasce o guerreiro. A torre. Os amarelos
Corcéis da fuga de ouro que implorei.

E nasce nu do sono um desafio.
Nasce um verso rampante, um brado, um solo
De lira santa e brava – minha lei

Até que nasça a luz e tombe o sonho,
O monstro de aventura que amei.

1.2 Segunda Parte – Sete Sonetos de Amor e Morte

INFERNO, ETERNO INVERNO, QUERO DAR

Inferno, eterno inverno, quero dar
Teu nome à dor sem nome deste dia
Sem sol, céu sem furor, praia sem mar,
Escuma de alma à beira da agonia.
Inferno, eterno inverno, quero olhar
De frente a gorja em fogo da elegia,
Outono e purgatório, clima e lar
De silente quimera, quieta e fria.
Inverno, teu inferno a mim não traz
Mais do que a dura imagem do juízo
Final com que me aturde essa falaz
Beleza de teus verbos de granizo;
Carátula celeste, onde o fugaz
Estio de teu riso – paraíso?

ESTAVA LÁ AQUILES, QUE ABRAÇAVA

Estava lá Aquiles, que abraçava
Enfim Heitor, secreto personagem
Do sonho que na tenda o torturava;
Estava lá Saul, tendo por pajem
Davi, que ao som da cítara cantava;
E estavam lá seteiros que pensavam
Sebastião e as chagas que o mataram.
Nesse jardim, quantos as mãos deixavam
Levar aos lábios que o atraiçoaram!
Era a cidade exata, aberta, clara:
Estava lá o arcanjo incendiado
Sentado aos pés de quem desafiara;
E estava lá um deus crucificado
Beijando uma vez mais o enforcado

O MUNDO QUE VENCI DEU-ME UM AMOR

O mundo que venci deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que venci deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo,
Por cima de qualquer fosso de sexo.
O mundo que venci deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória…

1.3 Terceira Parte – O Homem e Sua Hora

O HOMEM E SUA HORA

1 Et in saecula saeculorum: mas
2 Que século, este século – que ano
3 Mais-que-bissexto, este –
4                                  Ai,
estações –
5 Esta estação não é das chuvas, quando
6 Os frutos se preparam, nem das secas,
7 Quando os pomos preclaros se oferecem.
8 (Nem podemos chamá-la primavera,
9 Verão, outono, inverno, coisas que
10 Profundamente, Herói, desconhecemos…)
11 Esta é outra estação, é quando os frutos
12 Apodrecem e com eles quem os come.
13 Eis a Quinta estação, quando um mês tomba,
14 O décimo-terceiro, o Mais-Que-Agosto,
15 Como este dia é mais que Sexta-feira
16 E a Hora mais que Sexta e roxa.
17                                   Aqui,
18 Sábia sombra de João, fumo sacro de Febo,
19 Venho a Delfos e Patmos consultar-vos,
20 Vós que sabeis que conjunções de agouros
21 E astros forma esta Hora, que soturnos
22 Vôos de asas pressagas este instante.
23 Nox ruit, Aenea, tudo se acumula
24 Contra nós, no horizonte. As velas que ontem
25 Acendemos ou brancas enfunamos
26 O vento apaga e empurra para o abismo.
27 As cidades que erguemos, nós e nossos
28 Serenos ascendentes se arruinam
29 (Muros que escravos levantamos, campos
30 Ubi Troja – Nossa Tróia, Tróia! – fruit …)
31 E no céu onde a noite rui só vemos
32 Pálidos anjos, livros e balanças,
33 Candelabros, cavalos, crocodilos
34 Vomitando tranqüilos cogumelos
35 Róseos de sangue e lava – bestas, bestas
36 Aladas pairam, à hora de o futuro
37 Fazer-se flama, e a nuvem derreter-se
38 Em cinza presente.- Vê, em torno
39 De mesas tortas jogam meus sonâmbulos,
40 Meus líderes, meus deuses. Como ocultam
41 As cartas limpas, como atiram negros
42 Naipes no vale glauco de meu sonho!
43 Erza, trazem mais putas para Elêusis
44 E hoje Amatonte é todo o vasto mundo:
45 Prostitutas sagradas! – Se esta carne
46 Demais sólida pudesse dissolver-se,
47 Derreter-se e em rocio transformar-se!
48 Príncipe louro, oh náusea, proibição
49 Do mais ilustre amor, oh permissão,
50 Oh propaganda santa do mais rude!
51 L’amor che move il sole e l’altre stelle
52 Aqui parou, em ponto morto. Nem
53 Cometas hoje aciona, ou gestos de
54 Ternura move rumo aos eixos trêmulos
55 De seres enlaçados; nem desperta
56 Encantados centauros de seu sono.
57 Amor represo em ritos e remorsos,
58 Eros defunto e desalado. Eros!
(…)
111 Aqui devo deixar-te, Herói. Retiro-me
112 Para uma ilha, Chipre, onde nascido
113 Outrora fui, onde erguerei não uma
114 Turris ebúrnea, torre inversa, torre
115 Subterrânea, defesa contra as pombas
116 Cobálticas, columbas de outro Espírito –
117 Torre abolida! No marfim que leves
118 Lunares unicórnios cumularam
119 Em cemitérios amorosos, eu,
120 Pigmalion, talharei a nova estátua:
121 Estátua de marfim, cândida estátua,
122 Mulher primeira, fêmea de ar, de terra,
123 De água, de fogo – Hephaistos, sobe, ajuda-me
124 A compor essa estátua; fácil corpo
125 Difícil Face, Santa Face – falta
126 O sopro acendedor de tua esperta
127 Inspiração… à noite, enquanto durmo,
128 Cava-lhe, oh coxo, o gesto e o peito, pede
129 À deusa tua esposa dê-lhe quantos
130 Encantos pendem de seu cinto. Phanos,
131 Phanos, imagens de beleza, chagas
132 Na memória dos homens… pede a Hermes
133 Idéias que asas gerem nos tendões
134 Das palavras certeiras – logos, logos
135 Carregando de força os sons vazios –
136 Dá-lhe tu mesmo, Fabro, o mel, a voz
137 Densa, eficaz, dourada, melopaico
138 Néctar de sete cordas, musical
139 Pandora de salvar, não de perder…
140 Orfeu retesa a lira e solta o pássaro.
141 Pronta esta estátua, agora, os deuses e eu
142 Miramos o milagre: branca estátua
143 De leite, gala, Galatéia, límpida
144 Contrafação de canto e eternidade …
(…)
187 Vai, estátua, levar ao dicionário
188 A paz entre as palavras conflagradas.
189 Ensina cada infante a discursar
190 Exata, ardente, claramente: nomes
191 Em paz com suas coisas, verbos em
192 Paz com o baile das coisas, oradores
193 Em paz com seus ouvintes, alvas páginas
194 Em paz com os planos atros do universo –
(…)
223 Vênus fará de teu marfim fecunda
224 Carne que tomarei por fêmea, carne
225 Feita de verbo, cara carne, mãe
226 de Paphos, filho nosso, que outra ilha
227 Fundará, consagrada a tua música,
228 Teu pensamento, paisagem tua.
229 Ilha sonora e redolente, cheia
230 De pios templos, cujos sacerdotes
231 Repetirão a cada aurora (hrodo,
232 Hrododaktulos Eos, brododaktulos!)
233 Que Santo, Santo, Santo é o Ser Humano
234 -Flecha partindo atrás de flecha eterna –
235 Agora e sempre, sempre, nunc et semper…

Créditos: Prof. Jorge Alberto, Colégio Pró Campus
| Prof. Anísio, Portal Impacto

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