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O jardim e a praça, de Nelson Saldanha

by Lucas Gomes

O jardim e a praça

, de Nelson Saldanha, é um ensaio de antropologia
filosófica que parte do paralelo entre a dimensão privada e a pública tal
como ocorrem na vida histórica: os dois termos funcionam como duas metáforas
centrais, como referências temáticas em torno das quais se desenvolve a
reflexão do autor.

O jardim, representando o espaço privado, e a praça, representando o público,
são os símbolos que funcionam como elemento central de ligação entre os ensaios.
Nelson Saldanha credencia à praça um significado social, correlato do próprio
espírito da cidade onde se insere. Diferenciando-se do jardim, que carrega consigo
a semântica do espaço privado, a praça sempre foi um corte, uma abertura nos espaços
naturais a partir do fenômeno da cidade.

O autor empreende uma viagem pelo tempo
e pela história, da Antigüidade clássica aos dias atuais, e por diferentes espaços
culturais, através de digressões e de analogias, transitando com desenvoltura
ora pela Antigüidade Clássica, ora pela Idade Média, ou ainda pelo mundo contemporâneo,
para conduzir o leitor a uma visão conclusiva sobre a própria condição humana,
em que se fazem essenciais as referências sociológicas, literárias, filosóficas
e cinematográficas. Discorre com agudeza sobre as relações, sociais, econômicas
e políticas, através da sociologia, literatura, filosofia e artes.

Composto por dezesseis curtos e incisivos capítulos, a obra começa e termina pela
construção de imagens: a do jardim, espaço de recolhimento pessoal e reordenação
da natureza, e a praça, espaço da coletividade e recorte imposto à cidade. Entre
um espaço e outro, a argúcia do autor, Nelson Saldanha, sabe descobrir relações,
contradições, continuidades e descontinuidades que são registros daquilo que,
várias vezes, gosta de chamar de imagem do homem construída pelo próprio homem.

Sempre ladeado por tais metáforas, adverte que as crises que se prolongam na modernidade
vêm a ser crises da articulação entre vida privada e vida pública, e lembra que
a importância desses temas já se fazia presente entre gregos e romanos até mesmo
para a qualificação política da dimensão pública.

Outro tema presente no livro é a do intelectual moderno, suas funções e sua
relação com a modernidade. Ao falar das utopias, o autor afirma que elas surgem
como expressão do triunfo de uma mentalidade que sobrepõe o público ao privado,
como se o próprio pensamento utópico se formulasse a partir da experiência da
praça, o que deve ter relação com certa artificialidade que existe nas utopias.

Mas o livro reflete, de qualquer sorte, a preocupação que o autor sempre teve
com a relação entre o pensamento (e com ele as palavras) e os contextos. Isto
equivale a falar da perspectiva histórica e das “conexões de sentido”, que tanto
interessam na compreensão dos objetos culturais. Ele comenta também que o paralelo
entre a vida pública e a vida privada revela aspectos da existência que evoluem
e que em cada período histórico revelam, ao mesmo tempo, expressivas permanências
e ostensivas modificações.

São ensaios escritos por quem convive familiarmente com a história cultural,
com a sociologia do conhecimento e com a antropologia filosófica, sabendo, no
entanto, evitar a erudição de superfície, relendo certos autores a partir do ângulo
crítico assumido pela invenção de um modo de apreender o tema. É o caso de Ortega,
é a admirável defesa que faz de Mannheim, é a própria retomada de Hegel ou mesmo
a elegante referência ao grande Bachelard.

Encontrando uma imagem aglutinadora, o jardim e a praça, Saldanha foi capaz
de soltar-se numa prosa ensaística que integra erudição e imaginação crítica.
Ou, para dizer com Pascal, um autor que ele também menciona, vinculando o “esprit
de finesse” ao de “geométrie”.

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