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O jardim selvagem (Conto da obra Antes do baile verde), de Lygia Fagundes Telles

by Lucas Gomes

Este conto está inserido na obra Antes
do baile verde
, de Lygia Fagundes Telles.

Neste conto os acontecimentos da abrangem cerca de três meses e meio a quatro
meses, do casamento de Ed e Daniela até o desfecho.

Em O Jardim Selvagem, de 1965, a personagem que atua como narrador é
uma criança, e será sob o seu ponto de vista que o leitor verá os temas adultos
– a relação matrimonial, o preconceito, a morte – serem analisados.

O título do conto apresenta uma expressão interessante e ambígua. Um jardim
geralmente é um ambiente doméstico, formado por uma coleção de plantas cultivadas
e, portanto, conhecidas. Em uma análise inicial, não é um espaço que desencadeie
grandes emoções ou que desperte surpresas. Supõe-se que as eventuais surpresas
que poderiam surgir num jardim – o nascimento de uma planta indesejada ou o
aparecimento de pragas, como formigas ou lagartas – devam ser controladas pela
presença assídua de um jardineiro atento.

Por outro lado, um ambiente selvagem pode ser agreste, ermo, bravio, sem civilização.
De qualquer forma, o adjetivo traz a idéia de algo que ainda não foi domado,
domesticado, ou que é difícil de o ser. Assim, provavelmente, um jardim selvagem
deve encerrar uma mescla desses dois conceitos – talvez designe um ambiente
que possui elementos conhecidos, mas que, ao mesmo tempo, pode conter mistérios
e perigos inimagináveis.

Na primeira linha da narrativa, Ed, uma das personagens, refere-se a outra,
Daniela, comparando-a a “um jardim selvagem”. Ainda não se tem nenhuma informação
sobre as personagens, mas, com o uso dessa expressão para designar Daniela,
a primeira “isca” foi lançada ao leitor. A intenção do narrador, provavelmente,
foi conferir uma aura de mistério à personagem feminina e, com isso, despertar
a curiosidade de quem está lendo, fazendo com que se engaje no pacto ficcional.

A visita de Ed à Pombinha dá início à narrativa. O leitor só fica sabendo o
motivo dessa visita – a comunicação do casamento – posteriormente, bem como
o tipo de relação entre as personagens mencionadas nesse primeiro momento (Ed,
Daniela, Pombinha e a menina, até então sem nome). Ao adotar a estratégia de
principiar o conto utilizando o discurso direto – ou seja, com a fala de uma
das personagens – o narrador, aparentemente, tem a intenção de inserir o leitor
no centro da ação, proporcionando-lhe uma impressão de simultaneidade e de
presentividade.

Nas duas frases que emite, Ed emprega um discurso avaliativo em relação a
outra personagem, Daniela. Para ele, Daniela é “como um jardim selvagem”
(p. 67), expressão que dá título ao conto, conforme já comentado. Essa
atitude apreciativa de Ed – instrumento de elaboração da subjetividade da
personagem –, não fornece ao leitor, entretanto, elementos para inferir
sobre a personalidade ou qualquer característica de Daniela. Assim,
provavelmente, o efeito que se buscou conseguir foi o de despertar a
curiosidade do leitor, de prender-lhe a atenção. Após o comentário feito
por Ed, há um trecho narrativizado, no qual é introduzida outra personagem,
Tia Pombinha, a interlocutora de Ed. É também nesse momento que se torna
possível reconhecer, por meio dos pronomes e dos verbos em primeira pessoa,
que são empregados, que a história terá um narrador do tipo autodiegético:
“Passei a mão na tampa da caixa (…)”, “eu já sabia”, “Foi o que lhe
perguntei”, “Ele me olhou” (p. 67) e, ainda, “eu disse”, “aproveitei a
entrada de Tia Pombinha”, “eu já tinha visto” (p. 68).

Ainda nessa primeira parte do conto, a visita de Ed à Pombinha, é empregado
o discurso iterativo para demonstrar situações que sempre se repetem –
“Era a segunda ou terceira vez que a presenteava com uma caixa igual…”
(p. 67), “A tal caixa estava mesmo fechada, tão cedo não seria aberta”
(p. 68), “E o licor de cacau era tão ruim que eu já tinha visto uma visita
guardá-lo na boca para depois cuspir” (p. 68). Em contraste com a monotonia
das atitudes já presenciadas pela menina, e, por isso, enfadonhas, existe
a novidade, simbolizada pela informação que Ed disponibiliza sobre Daniela.
A expressão desconhecida, utilizada pelo tio, aguça a curiosidade da criança,
personagem e narradora: “Mas, e um jardim selvagem? O que era um jardim
selvagem?” (p. 67). Provavelmente, o narrador procura, dessa maneira,
desencadear dois efeitos no leitor: instigar sua curiosidade, mais uma
vez, e, além disso, proporcionar uma certa identificação com a menina, que,
nesse momento, também está curiosa. Se conseguir alcançar esses (supostos)
objetivos, o desvendar do mistério poderá ser um ato realizado
simultaneamente pelos dois, ou seja, pelo leitor e pela personagem.

A segunda parte do conto inicia-se com uma locução adverbial – “mais tarde”
(p. 68), e consiste no diálogo entre Ducha e Pombinha.

A conversa ocorre no quarto de Ducha, no momento em que a menina se prepara
para dormir. Com relação à velocidade da narrativa – relação entre a duração
da história e a extensão do texto –, esta é a parte mais lenta. Apesar de
podermos supor que a duração do diálogo, na diegese, deve ter sido de alguns
minutos ou, no máximo, de uma ou duas horas, este é o trecho de dimensão
máxima, com cerca de três páginas. É no transcorrer dessa conversa que o
leitor recebe a maioria das informações a respeito das personagens. Por
meio da cena em que se desenvolve o diálogo, fica-se sabendo que Ed e
Daniela se casaram, “há mais de uma semana” (p. 68). Se, por um lado,
essa breve analepse esclarece a relação existente entre Ed e Daniela, bem
como o motivo que o levou a visitar Pombinha, por outro, entretanto,
lança um novo componente para manter um clima de suspense na história: por
que Ed não convidou a família para o casamento? Pombinha conta para Ducha
que sonhara com Ed, “ainda na noite passada” (p. 68) e que ficara nervosa
por “ter sonhado com dentes nessa mesma noite” (p. 68). E Pombinha completa:
“Você sabe, não é nada bom sonhar com dentes” (p. 68). Dessa maneira, o
trecho desempenha uma função de índice de antecipação de desfecho – o mau
pressentimento de Pombinha em relação a Ed exerce o papel de uma prolepse.
Entretanto, o comentário do narrador, empregando o discurso iterativo,
“Os sonhos de tia Pombinha eram todos horríveis” (p. 68), aparentemente
tenta desacreditar a antecipação – o narrador parece querer confundir o
leitor, fazê-lo acreditar que a prolepse é uma pista falsa. Também a ironia
do narrador – ao dizer que “tratar deles” (dos dentes) “é pior ainda” (p. 68),
assemelha-se a um descrédito à opinião de Pombinha. Ainda durante o diálogo,
Pombinha faz referências ao passado, lembra-se de Ed quando menino. São dois
trechos de analepse externa, inseridos na narrativa, por meio da utilização
das recordações de Pombinha. No primeiro, o leitor recebe a informação, pelo
pronome possessivo empregado, que Ed e Pombinha são irmãos: “Fui a mãezinha
dele quando a nossa mãe morreu” (p. 68).

O segundo segmento, fornece dados a respeito da personalidade de Ed e permite,
ao narrador e, conseqüentemente, ao leitor – estabelecer uma relação dialética
com o presente da narrativa. “Ele me abraçou e me olhou do mesmo jeito que me
olhou agora, querendo confessar que estava com medo. Mas sem coragem de
confessar” (p. 69).

Pombinha é apenas uma personagem e, portanto, tem um conhecimento limitado da
situação. Entretanto, o sonho que teve, o olhar do irmão, a falta de informações
sobre a nova cunhada, “E que moça é essa, Cristo-Rei? Ninguém sabe quem ela
é…” (p. 68), levam-na a sentir-se apreensiva e a conjeturar sobre o verdadeiro
estado de espírito do irmão. As incertezas da personagem a respeito de Ed são
demonstradas pela utilização do discurso modalizante: “Ele parece feliz”, “Era
como se quisesse me dizer qualquer coisa e não tivesse coragem”, “Tive a impressão
de que estava com medo” (p. 68), “foi como se eu estivesse vendo Ed menino outra
vez” (p. 69). O narrador, Ducha, novamente parece querer desacreditar Pombinha
perante o leitor. Logo após a analepse que trata do medo que Ed sentia do escuro,
quando criança, toma-se conhecimento do que Ducha pensa a respeito da situação,
por meio do uso da focalização interna: “Quando minha tia anunciava uma história
importante, na certa vinha alguma bobagem sem importância nenhuma.

De resto, tia Pombinha tinha a mania de ver mistério em tudo (…) Não passava
um dia sem falar nos tais pressentimentos” (p. 69). O narrador-personagem
emprega o discurso avaliativo para expressar sua opinião sobre o que é importante
para a tia, e o discurso iterativo para caracterizar os sentimentos de Pombinha
em relação ao casamento do irmão, não como algo único, mas sim como um
comportamento freqüente da tia, a respeito de qualquer assunto. A seguir,
Pombinha dá outros informes a respeito de Daniela, fatos que lhe foram relatados
pela cozinheira do casal, enquanto Ducha estava na escola. Além dos gastos
excessivos do casal, a empregada relata que “quando estiveram na chácara, nesse
último fim de semana, ela” (Daniela) “tomou banho nua debaixo da cascata” (p. 69).
O narrador continua a depreciar as preocupações da tia. E, novamente, por meio
da focalização interna e do discurso avaliativo, toma-se conhecimento da opinião
de Ducha sobre o assunto, aparentemente definitiva: “Tia Pombinha estava era mesmo
com ciúme, (…), eu mesma já tinha lido um caso parecido numa revista. Sabia até
o nome do complexo, era um complexo de irmão com irmã.” (p. 70). Apesar do
menosprezo demonstrado por Ducha, que boceja, dá de ombros, Pombinha continua a
falar a respeito de Daniela: “Diz que anda sempre com uma luva na mão direita,
não tira nunca a luva dessa mão, nem dentro de casa” (p. 70). Não é mencionado
pelo narrador quem contou o fato para Pombinha. Mas, fica explícito, por meio
dos advérbios de tempo empregados, que o uso da luva é freqüente e específico
– sempre na mesma e única mão, a direita. Ao ouvir isso, Ducha senta-se na cama:
“Esse pedaço me interessava” (p. 70). Por que tal informação aguça a curiosidade
da menina? Pode ser considerado algo assim tão excêntrico? A seguir, as
observações de tia e sobrinha sobre o fato singular:

– Já amanhece com ela. Diz que teve um acidente com essa mão, deve ter ficado
algum defeito… – Mas por que não quer que vejam? – Eu é que sei? Como Ed nem
tocou nisso, fiquei sem jeito de perguntar, essas coisas não se perguntam.
(…) Tia Pombinha ficou falando algum tempo ainda sobre a bondade do irmão, mas
eu só pensava naquela nova tia que tomava banho pelada debaixo da cascata. E não
tirava a luva da mão direita.
(Telles, 1982, p. 70)

Aparentemente, a função da segunda parte do conto é fornecer detalhes a respeito
das personagens principais. O narrador utiliza a seguinte estratégia para alcançar
esse objetivo: Ed é focalizado por Pombinha, que o descreve como “o meu querido
Ed” (p. 68), “sempre foi muito discreto, não é de se abrir com a gente, ele
esconde” (p. 69), “deve dar um marido exemplar, desde criança foi muito bonzinho
(…) Uma verdadeira pérola…” (p. 70), e afirma ainda que “Ed não é tão rico
quanto se pensa” (p. 70). Deve-se levar em consideração que Pombinha e Ed são
irmãos. Assim, as informações veiculadas por ela a respeito da personagem
masculina contêm um alto grau de afetividade.

Daniela, por sua vez, é focalizada por Ed, que além de compará-la a um jardim
selvagem, diz a Pombinha que a esposa é “lindíssima” (p. 69), “mas não é tão jovem
assim, parece que tem a idade dele, uns trinta e poucos anos…” (p. 69).

O narrador menciona, ainda, as impressões da cozinheira, empregada de Ed, que
conta a Pombinha que Daniela “se veste nos melhores costureiros, só usa perfume
francês, toca piano…” (p. 69), e, ainda, que no último final de semana, “tomou
banho nua debaixo da cascata” (p. 69). Quem faz a focalização de tia Pombinha
é o próprio narrador-personagem. A menina a considera “sovina” (p. 68), não
lhe dá muita atenção e até a trata com ironia, como já foi comentado. É realizada,
ainda, a caracterização externa de Pombinha: ela choraminga, “fazendo bico”
(p. 68), triste porque o irmão não a convidou para o casamento; franze a testa
e “seus olhinhos redondos ficaram ainda mais redondos” (p. 69), intrigada, por
não conseguir adivinhar que motivo poderia provocar medo em Ed; e ainda, há
a descrição das mãos de Pombinha, cujo aspecto aflige Ducha:

Ela abriu nos joelhos as mãos ossudas, de unhas onduladas, cortadas rente.
Passei a língua na palma das minhas mãos para umedecê-las. Sempre que olhava
para as mãos dela, assim secas como se tivessem lidado com giz, precisava
molhar as minhas.
(Telles, 1982, p. 70)

As opiniões emitidas por Pombinha a respeito de Ed, por Ed a respeito de
Daniela e por Ducha a respeito de Pombinha, são discursos subjetivos, com
caráter avaliativo, impregnados das emoções decorrentes das relações afetivas
estabelecidas entre essas personagens. Serão informações confiáveis, verdadeiras?
Quais as lacunas a serem preenchidas? O que poderá vir a acontecer? Com os
elementos fornecidos e por intermédio das focalizações de diferentes personagens,
o jogo armado pelo narrador convida o leitor a formular hipóteses sobre o
desenrolar da trama. Dessa forma, o leitor acompanha a narrativa com uma sensação
de que algo pode acontecer a qualquer momento, o diálogo entre Ducha e tia
Pombinha, os pressentimentos desta última, o mistério que envolve Daniela, são
estratégias do narrador para gerar este efeito no leitor. Mas, talvez o principal
seja o fato do narrador selecionar os componentes mais importantes, direcionar
o olhar do leitor para eles: a expressão “Lembrei-me então do que ele dissera:
Daniela é como um jardim selvagem” (p. 69), o banho na cascata, “Nua?” (p. 69) e,
principalmente, o fato de Daniela nunca tirar “a luva da mão direita” (p. 70).

Entretanto, aparentemente, a situação se altera, na terceira parte do conto.
“Numa manhã de sábado” (p. 70), Daniela faz uma visita a Tia Pombinha, enquanto
Ducha está na escola. Pombinha fica emocionada, encantada com a cunhada – esquece
os pressentimentos anteriores, derruba qualquer barreira que pudesse existir com
relação ao casamento do irmão.

Por meio da focalização de Pombinha, o leitor fica sabendo que Daniela é
“encantadora” (p. 70), “Tão natural, tão simples e ao mesmo tempo, tão elegante,
tão bem cuidada… Foi tão carinhosa comigo!” (p. 70-71), “Um amor de moça!”
(p. 71). O discurso avaliativo empregado pela personagem, a quem o narrador
cede a voz, nesse momento, demonstra a ótima impressão causada por Daniela.
As desconfianças que haviam surgido anteriormente são, agora, deixadas de lado.
O único detalhe que ainda provoca estranhamento é o uso da luva naquela única
mão – o que leva Pombinha a comentar: “Podia fazer uma plástica… Enfim, deve
ter motivos” (p. 71). Pela utilização de um 48 discurso modalizante, Pombinha
supõe que alguma razão justifica o uso da luva por Daniela. Entretanto, devido
ao conhecimento limitado que possui, por ser apenas uma personagem, não imagina
qual possa ser o motivo, nem faz conjeturas a esse respeito. Sente-se tão
cativada por Daniela, que isso deixa de ter importância. Como conclui o narrador:
“então tudo tinha mudado” (p. 71).

“No mês seguinte” (p. 71) é o marco temporal que dá início à quarta parte da
narrativa, na qual se dá a cena entre Ducha e a cozinheira de Ed, que acaba
de sair do emprego. O narrador chama a atenção para a importância da conversa,
que faz com que Ducha até esqueça “os zeros sucessivos que tivera em
Matemática” (p. 71). A mulher relata uma situação que presenciou, na qual
Daniela dá um tiro em um cachorro da chácara, Kleber, que estava doente:

Encostou o revólver na orelha e pum! matou assim como se fosse uma
brincadeira… Não era para ninguém ver, nem o seu tio, que estava na cidade.
Mas eu vi com estes olhos que a terra há de comer, ela pegou o revólver com
aquela mão enluvada e atirou no pobrezinho, morreu ali mesmo, sem um gemido…

(Telles, 1982, p. 71)

Daniela justifica o ato dizendo que “o Kleber estava sofrendo muito, que a
morte para ele era um descanso” (p. 72). Usa a música como metáfora para a
vida: “A doença sem remédio era o desafino, o melhor era acabar com o
instrumento para não tocar mais desafinado” (p. 72). Novamente, o narrador
conduz a atenção do leitor para determinados aspectos do diálogo, desta vez,
por meio de perguntas que faz à cozinheira. “Disse isso?” (p. 72), com relação
a Daniela afirmar que a morte era um descanso para Kleber; “Mas ela gostava
dele?” (p. 72), como para frisar que, apesar da mulher gostar do cachorro,
mesmo assim o matara, colocando a razão acima da emoção. A cozinheira relata,
ainda, que “Uma noite a mesa do jantar virou inteira” (p. 72). Apesar de Ed
ter assumido a responsabilidade pelo acontecido, na opinião da empregada, quem
jogou tudo ao chão foi Daniela, provavelmente num acesso de fúria. Mais uma vez
o narrador questiona, aparentemente para enfatizar certos aspectos que julga
importantes para o desfecho: “Por quê? Por que fez isso?” (p. 72), o que permite
que a cozinheira afirme “Quando fica brava… A gente tem vontade até de entrar
num buraco. O olho dela, o azul, muda de cor” (p. 72). E, finalizando o
interrogatório, Ducha pergunta “Não tira a luva, nunca?” (p. 72), o que é
confirmado pela mulher.

Devido à utilização do modo dramático, é passada ao leitor a impressão de que
a história está se contando sozinha. O leitor quase que desempenha o papel de
uma personagem, escondida atrás da porta da cozinha para ouvir a conversa
entre Ducha e a cozinheira.

E acaba sendo a única “testemunha” – apenas o leitor fica sabendo o que Daniela
fez com o cachorro, pois nem Conceição, nem Tia Pombinha presenciam o diálogo.

Entretanto, o narrador faz com que se perceba a importância do episódio ao
concluir: “Quando tia Pombinha chegou, a mulher já estava se despedindo, o que
foi uma sorte” (p. 72).

“Dois meses depois” tem início a quinta parte da narrativa, Daniela telefona para
avisar que Ed está muito doente. Ducha leva “o maior susto do mundo” (p. 72) ao
saber disso. Pergunta a Pombinha sobre o comportamento de Daniela, ao que a tia
responde que ela “tem sido dedicadíssima, não sai de perto dele um só minuto”
(p. 73). O médico disse a Pombinha “que nunca encontrou criatura tão eficiente,
tão amorosa, tem sido uma enfermeira e tanto” (p. 73). Com o emprego do adjetivo
em grau superlativo absoluto sintético e dos advérbios de tempo e de intensidade,
o narrador enfatiza a dedicação de Daniela.

A seguir, ocorre o desfecho do conto. Conceição dá a notícia a Ducha que Ed
“tinha se matado com um tiro” (p. 73), o que a deixa assustada. “Mas aquele
primeiro susto que levara quando me disseram que estava doente, fora um susto
maior ainda” (p. 73). Ducha faz duas perguntas, ao saber da morte do tio:
“Um tiro no ouvido?” (p. 73) e “Mas por que ele fez isso, Conceição?” (p. 73).
A empregada não sabe responder a nenhuma das duas questões. Ninguém sabe porque
Ed se matou – “Não deixou carta, nada, ninguém sabe! Vai ver que foi por causa
da doença, não é mesmo? Você também não acha que foi por causa da doença?”
(p. 73) – e Ducha concorda, “Acho (…) Pensava agora em tia Daniela metida
num vestido preto. E de luva também preta, como não podia deixar de ser” (p. 73).
O narrador estabelece uma analogia entre a morte do cachorro e a de Ed. A menina
não falou “com ninguém” (p. 72) sobre a morte de Kleber. Assim, somente ela
“sabe” o que realmente aconteceu. Entretanto, Ducha não presenciou nenhum dos
fatos da história – apenas escuta comentários e diálogos, e vai tirando conclusões.

O Jardim Selvagem permite mais de uma leitura. Pode-se aderir à perspectiva
de Ducha, que é uma “testemunha” dos fatos, apesar de não presenciá-los, e, ao
juntar as peças desse quebra-cabeça, concluir-se-á que Daniela assassinou o marido.
Pode-se, inclusive, inferir que a utilização da luva na mão direita já era algo
premeditado, não haveria nenhuma lesão no membro, com o objetivo de evitar que as
impressões digitais de Daniela fossem identificadas na arma do crime. Ela teria se
casado com Ed, um homem rico, já com a intenção de matá-lo.

Entretanto, o único fato “verdadeiro” é que Daniela matou o cachorro, o que
também pode ser encarado como um ato de bondade, com a finalidade de aliviar
o sofrimento de um animal que não teria condições de se curar. Este acontecimento
não teria nenhuma ligação com a morte de Ed. O mistério existiria apenas para
os olhos de Ducha (ela estaria se tornando parecida com tia Pombinha que “tinha
a mania de ver mistério em tudo” – p. 69). Daniela também pode ter praticado
uma eutanásia em Ed, por gostar dele, e querer abreviar seu sofrimento – como
fez com Kleber, que, de acordo com a cozinheira, teve uma morte rápida, sem
dor aparente, “morreu ali mesmo, sem um gemido…” (p. 71). De qualquer forma,
é interessante a estratégia utilizada pela autora, ao optar pelo emprego de uma
criança como personagem e narradora, pela ambigüidade que isso provoca à narrativa.
Ducha é esperta, irônica, curiosa – como a maioria das crianças.

Vive num ambiente de adultos e, de certa forma, até é considerada como adulta
pela tia Pombinha. Em meio à rotina de casa-e-escola, vai colecionando dados
sobre a nova tia misteriosa, que, aparentemente, nem chega a conhecer, e tecendo
uma trama em que tudo se encaixa. A menina enxerga além dos fatos, consegue
captar elementos que os adultos não percebem. Entretanto, não revela suas
conclusões a ninguém – e nem poderia, é apenas uma criança, a quem, provavelmente
ninguém daria crédito – afinal, a imaginação é outra característica própria
das crianças.

Assim, como Ducha é a narradora, ela deixa de ser confiável duplamente, pois,
devemos sempre desconfiar de um narrador autodiegético e, porque toda a história
narrada pode ser apenas fruto de sua imaginação.

Fonte: Biblioteca Digital da UNESP

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