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O leopardo é um animal delicado, de Marina Colasanti

by Lucas Gomes

O leopardo é um animal delicado

, de Marina Colasanti, é uma coletânea de vinte e cinco contos curtos
onde os temas são variados, incluindo situações cotidianas e reflexões sobre a complexidade das relações
humanas.

Nestes contos a autora volta a explorar os abismos da alma feminina. Embrenhando-se por florestas
misteriosas, casas desertas, investigando o amor de um pastor por sua ovelha, a solidão de um ingênuo
internauta, ou a espera de uma mulher por um homem que nunca vem, a autora exercita sua prosa delicada e
sutil, oferecendo a seus leitores as amarguras e delícias da boa literatura.

Os contos deste livro diferem do estilo miniconto ao qual Marina se dedicou ao longo de três livros, desde
Zooilógico. Em O leopardo é um animal delicado, a autora optou por um texto mais longo, mais
alentado, que lhe deu espaço e tempo para compor histórias de muitas nuances, que demonstram o perfeito
domínio da atividade literária. A narrativa é leve e insinuante, plena de sentimento e um verdadeiro
convite à reflexão sobre a própria natureza da condição humana.

Hábil em explorar o feminino, Marina cria imagens sutis e poéticas, despe e revela lados inexplorados,
secretos. Ela vai além das evocações de erotismo, afeto, ambigüidade do amor e da realidade cotidiana.

Para a autora, o leopardo não é um animal delicado, nem a delicadeza é a tônica do livro. A delicadeza
está na forma, no cuidado com a escrita e com a delineação dos personagens. E o leopardo pode até ser um
animal delicado, quando comparado à ferocidade humana. Pois é através da referência daquilo que cerca o
homem que é possível referi-lo, e então defini-lo.

Conto escolhido: COMO É MESMO O NOME?

Levou o manequim de madeira à festa porque não tinha companhia e não queria ir sozinho.

Gravata bordeaux, seda. Camisa pregueada, cambraia. Terno riscado, lã. Tudo do bom. Suas melhores roupas
na madeira bem talhada, bem lixada, bem pintada, melhor corpo. Só as meias um pouco grossas, o que porém
se denunciaria apenas se o manequim cruzasse as pernas. Para o nariz firmemente obstruído, um lenço no
bolsinho.

No relógio de ouro do pulso torneado, a festa já tinha começado há algum tempo.

Sorridentes, os donos da casa se declararam encantados por ter ele trazido um amigo.

— Os amigos dos nossos amigos são nossos amigos — disseram saboreando a generosidade da sua atitude. E o
apresentaram a outros convidados, amigos e amigos de nossos amigos. Todos exibiram os dentes em amável
sorriso.

Recebeu o copo de uísque, sua senha. E foi colocado no canto esquerdo da sala, entre a porta e a cômoda
inglesa, onde mais se harmonizaria com a decoração.

A meia hilaridade pintada com tinta esmalte e reforçada com verniz náutico exortava outras hilaridades a
se manterem constantes, embora nenhuma alcançasse idêntico brilho. Abriam-se os transitórios vizinhos em
amenidades que o compreensivo calar-se do outro logo transformava em confidências. Enfim alguém que sabia
ouvir. Relatos sibilavam por entre gengivas à mostra e se perdiam em quase espuma na comissura dos lábios.
Cabeças aproximavam-se, cúmplices. Apertavam-se as pálpebras no dardejado do olhar. O ruge, o seio, o
ventre, a veia expandida palpitavam. O gelo no uísque fazia-se água.

A própria dona da casa ocupou-se dele na refrega de gentilezas. Trocou-lhe o copo ainda cheio e suado por
outro de puras pedras e âmbar. Atirou-se à conversa sem preocupações de tema, cuidando apenas de mantê-lo
entretido. Do que logo se arrependeu, naufragando na ironia do sorriso que lhe era oferecido de perfil. A
necessidade de assunto mais profundo levou-a à única notícia lida nos últimos meses. E nela avançou
estimulada pelo silêncio do outro, logo úmida de felicidade frente a alguém que finalmente não a
interrompia. No mais frondoso do relato o marido, entre convivas, a exigiu com um sinal. Afastou-se
prometendo voltar.

O brilho de uma calvície abandonou o centro da sala e coruscou a seu lado, derramando-lhe sobre o ombro
confissões impudicas, relato de farta atividade extraconjugal. Sem obter comentários, sequer um aceno, o
senhor louvou intimamente a discrição, achando-a, porém, algo excessiva entre homens. Homens menos
excessivos aguardavam em outros cantos da sala a repetição de suas histórias.

Não acendeu o cigarro de uma dama e esta ofendeu-se, já não havia cavalheiros como antigamente. Não acendeu
o cigarro de outra dama e esta encantou-se, sabia bem o que se esconde atrás de certo cavalheirismo de
antigamente. Os cinzeiros acolheram os cigarros sem uso.

Um cavalheiro sentiu-se agredido pelo seu desprezo. Um outro pela sua superioridade. Um doutor
enalteceu-lhe a modéstia. Um senhor acusou-lhe a empáfia. E o jovem que o segurou pelo braço surpreendeu-se
com sua rígida força viril.

Nenhum suor na testa. Nenhum tremor na mão. Sequer uma ponta de tédio. Imperturbável, o manequim de madeira
varava a festa em que os outros aos poucos se descompunham.

Já não eram como tinham chegado. As mechas escapavam, amoleciam os colarinhos, secreções escorriam nas
peles pegajosas. Só os sorrisos se mantinham, agora descorados.

No relógio torneado do pulso rijo a festa estava em tempo de acabar.

As mulheres recolhiam as bolsas com discrição. Os amigos, os amigos dos amigos, os novos amigos dos velhos
amigos deslizavam porta afora.

Mais tarde, a dona da casa, tirando a maquilagem na paz final do banheiro, dedos no pote de creme,
comentava a festa com o marido.

— Gostei — concluiu alastrando preto e vermelho no rosto em nova máscara —, gostei mesmo daquele convidado,
aquele atencioso, de terno riscado, aquele, como é mesmo o nome?

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