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O médico e o monstro, de Roberto Louis Stevenson

by Lucas Gomes

O Médico e o Monstro (título original em inglês: The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde) é o nome de um livro de Robert Louis Stevenson publicado em 1886.

A obra foi, em seu tempo, considerado um excelente livro de horror e suspense, que marcaria profundamente seus leitores, pois mantém uma atmosfera assustadora durante todo o enredo, se tornando assim um clássico do mistério.

A história de Stevenson baseou-se na vida dupla de um habitante de Edimburgo, na Escócia, chamado William Brodie: de dia ele era um respeitado marceneiro; à noite, roubava as casas dos moradores da cidade.

A história se passa em Londres, no final do século XIX, centro urbano com quatro milhões de habitantes. Devido ao grande contraste econômico entre os industriais (cada vez mais ricos) e os miseráveis (cada vez com menos oportunidades de emprego e vida digna), Londres passou a ser palco de inúmeros crimes horríveis. Justamente por isso, em 1829, foi criada a Scotland Yard, que se tornaria mais tarde reconhecida por sua eficiência em resolver crimes e por tomar parte das inúmeras páginas das histórias policiais inglesas.

Foi esta a primeira obra a inserir a Scotland Yard no universo literário.

O médico e o monstro transmite o clima de insegurança e desconfiança que havia na Inglaterra vitoriana, e que vemos nas cenas da cidade coberta de bruma, uma evidência visual desse clima de suspeita. Talvez por isso, a história de Stevenson tenha como eixo central, delineado já no início da narrativa, o primeiro momento de desconfiança que o advogado Gabriel Utterson sente a respeito do cliente Henry Jekyll, que deixara com ele um testamento dedicando seus bens ao sr. Edward Hyde.

Escrita para o grande público, que já conhecia este autor através do folhetim A Ilha do Tesouro, a novela, apesar da linguagem simples e de fácil entendimento, tem uma forma que privilegia o suspense. Os capítulos e o enredo, com traços de novela policial – um crime, um grande mistério e alguém tentando desvendá-los – se encaixam perfeitamente, de modo que todos os elementos da narrativa se esclarecem somente no desenlace da história.

A maestria na condução do enredo, através da forma, se evidencia na combinação entre os capítulos em que há um narrador e os capítulos finais, todos em primeira pessoa. Esses, um narrado pelo próprio Jekill, outro por seu amigo Lanyon, trazem, cada um, parte do esclarecimento do mistério. Tal qual um quebra-cabeça, os relatos completam-se. Além disso, permitem a Stevenson narrar o drama de Jekill através de suas próprias palavras, completamente afetadas pelo delírio, medo e angústia da situação-limite que vivia:

…dentro de meia hora, irei novamente e definitivamente incorporar aquela odiosa personalidade, e antevejo com irei sentar tremendo e chorando em minha cadeira, ou continuar, com o mais desgastado e apavorado êxtase auditivo, a andar de cima para baixo neste quarto (meu último refúgio terreno) e atentar a qualquer som de ameaça.

Stevenson, através do drama fantástico, retrata os valores da sociedade vitoriana, tão peculiares que a palavra vitoriano tornou-se adjetivo em nossos dias. A neblina londrina, presente nas descricões tal qual uma personagem, encobria todos os tipos de crimes:

…o fog ainda sobrevoava lento, asfixiando a cidade, onde lampiões brilhavam como gemas preciosas; e trespassando as camadas opressoras deste sufocante nevoeiro, a procissão da vida urbana estendia-se (…)

Londres era a cidade de todos os vícios, do jogo à prostituição. Essa hipocrisia é um dos temas principais do livro. O Dr. Jekill, ilustre médico, percebe-se dividido entre duas personalidades, ambas, para ele, completamente verdadeiras. Uma é a do emérito doutor, filantropo respeitado, exemplo de conduta. A outra, reprimida durante toda a sua vida, é a do hedonista, que busca o prazer carnal, que comete crueldades e vilanias, sem responsabilidades. Busca, então, na ciência, maneira de resolver esse impasse. A poção que permite a transmutação entre as personalidades é, ao mesmo tempo, amostra das incríveis possibilidades abertas pela ciência em acelerada evolução e exemplo da angústia de não saber até onde ela poderia ir, já que a invenção subjuga o próprio cientista, que não pode mais controlá-la. Ainda que de forma não premeditada, Stevenson transporta para a literatura o debate político e social vigente (Karl Marx viveu em Londres de 1850 até sua morte, em 1883). Ao mesmo tempo que traz o progresso e a riqueza, a ciência traz a pobreza e a destruição, como se podia observar na própria Londres da época.

A invenção do Dr. Jekill explicita ainda um tema importante relacionado à moral e à sociedade: o bem e o mal convivem dentro de cada ser humano. Mr. Hyde não ganha vida pela ingestão da beberagem, e sim é libertado do interior de Jekill, onde já vivia, embora reprimido.

Não é difícil encontrar evidências de uma tese sobre o consciente e o subconsciente nas entrelinhas dessa obra de ficção do final do século XIX. Para isso, basta ler o último capítulo do livro em que o médico, num momento de lucidez, narra em uma carta todo seu trabalho e pesquisa dos últimos anos.

Resumo

Sr. Utterson, o advogado, Dr. Henry Jekyll, o médico, e Edward Hyde, sem profissão definida, são as três pessoas envolvidas diretamente na trama novelesca, no mistério da obra.

O que teria levado Dr. Jekyll, homem recatado, elegante, de finas maneiras, a proteger, até depois de sua morte, Edward Hyde, um criminoso de feições grosseiras e hábitos estranhos e assustadores?

O que acontecerá com Sr. Utterson, o advogado de Jekyll, ao receber das próprias mãos do médico um testamento, nomeando Hyde como único herdeiro? De onde teria surgido essa criatura, de passado desconhecido e de presente comprometedor?

Se ele é aquele que se esconde, eu serei aquele que procura.

Segundo as teorias de Dr. Jekyll, o homem, na verdade, não é apenas um, mas dois. Todo ser humano é dotado de duas naturezas completamente opostas equilibradas de acordo com sua saúde mental. Uma é boa, aquela que traz admiração das pessoas, compaixão dos mais velhos, elogios dos amigos e da esposa ou namorada; outra é má, aquela que é violenta, agressiva, mal-educada, feia e temida por todos. Quando bem distribuídas, com pequenas alternâncias de estado, o homem pode ser considerado normal, mas há os casos em que uma natureza se sobrepõe a outra, tentando se libertar. O problema torna-se grave quando quem alcança a liberdade é o lado negativo, gerando as fatalidades que estamos acostumados a presenciar nos noticiários.

Com base nessas idéias, o médico e cientista, Dr. Jekyll dedicou anos de estudo em busca de uma fórmula que fosse capaz de trazer à tona a natureza má do ser humano. Enfim, ele conseguiu.

O livro tem início com a presença de Sr. Utterson, o advogado de Dr. Jekyll, caminhando pelas ruas silênciosas de Londres ao lado de seu parente, Sr. Richard Enfield, a quem ele narra os estranhos acontecimentos envolvendo uma porta e uma figura misteriosa. Ele diz que presenciou o momento em que um homem de aparência detestável, que andava a passos largos, atropelou uma criança que vinha em sentido contrário, deixando-a aos berros na calçada. Após perseguido e trazido ao local do acidente, o monstruoso homem, que se chamava Hyde, disse que estaria disposto a pagar pelos prejuízos causados à família da menina. Não acreditando na afirmação daquele sujeito horrendo, Sr. Utterson foi com ele até uma estranha porta e ficou estarrecido quando recebeu um cheque com fundos. A narração termina com a promessa de Sr. Utterson em realizar uma pesquisa sobre o Sr. Hyde a todo custo.

Para deixar o advogado ainda mais confuso a respeito do último acontecimento, ele recebe uma notificação de Dr. Jekyll, um respeitado e admirado médico, favorecendo em seu testamento, em caso de desaparecimento, ninguém menos que Dr. Hyde. A partir desse ponto, o médico começa a se isolar em seu quarto, deixando de lado todos os seus conhecidos, enquanto o advogado passa a acreditar em seqüestro, chantagem e até mesmo assassinato envolvendo o amigo. As piores hipóteses passam a adquirir sentido quando Sir Danvers Carew, um velho rico e tranqüilo, é assassinado de forma brutal, sob os olhares de uma criada do alto de uma janela. Após a descrição da moça, Dr. Hyde se torna o maior suspeito do crime, passa a ser perseguido pela polícia local e desaparece sem deixar vestígios, no mesmo instante em que Dr. Jekyll ressurge na sociedade. A partir desse ponto, o leitor ainda irá encontrar muitas surpresas até a revelação final, quando o espesso nevoeiro londrino irá se dissipar.

Numa linguagem bem acessível, O Médico e o Monstro inspirou diversos autores na construção de suas obras, gerou alguns filmes, principalmente os que envolvem dupla personalidade, e até um personagem dos quadrinhos. Robert Louis Stevenson conduz essa trama como se fosse mais uma aventura gótica do detetive Sherlock Holmes, de Conan Doyle, deixando pistas e intrigando ao mesmo tempo em que suas descrições perturbam o leitor desacostumado com o gênero. Dr. Hyde é apresentado como uma pessoa de aparência negativa e curiosa, dando a impressão que se trata de uma criatura deformada, mesmo não sendo. Sua baixa estatura, sua palidez mórbida, seu sorriso desagradável e voz medonha, tudo se definia nas assustadoras palavras de Sr. Utterson: pobre Sr. Jekyll, se alguma vez vi a marca de Satanás num rosto, foi no de seu novo amigo.

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