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O monstro, de Sérgio Sant'Anna

by Lucas Gomes

As três narrativas que compõem o livro O monstro, de Sérgio Sant’Anna,
situam-se respectivamente numa cidade do interior do Brasil, numa prisão do Rio
de Janeiro, e num hotel de cinco estrelas em Chicago. A disparidade entre os lugares
acompanha a variedade no registo: da epístola à entrevista policial, os modos
de narrar são aqui, como em toda a obra de Sérgio Sant’Anna, postos em questão.
O resultado é a forma única como se faz conviver o insólito e o banal, a transgressão
e uma pretensa normalidade, em histórias em que, ora encarado como um instrumento
de poder, ora como via para a transcendência, o sexo é a figura central.

O autor mescla gêneros diversos, da epístola à entrevista policial, explorando mais uma faceta de seu
universo surpreendente: feito de paixões rigorosas e raciocínios imprevistos, onde o insólito e o banal,
o instinto e uma acurada reflexão mental caminham lado a lado.

Os relatos aqui reunidos destrincham os próprios rituais de transgressão pelos quais o desejo se
transforma em narrativa – e vice-versa.

De comum, as três histórias trazem a marca de um erotismo que talvez seja mais da mente que do corpo e
que nunca está isento de um voyeurismo cuja lógica implícita transforma o leitor em cúmplice de atos
tresloucados.

Em todos os contos do livro O monstro, que tem o subtítulo irônico de “Três histórias de amor”, é
o vazio deixado pela ausência física do outro que nutre a narrativa erótica, que dá força ao narrador,
chegando ao ponto de a personagem ddo conto “A carta” declarar:

E o que realmente importaria, então, não seria o destinatário, nem mesmo a autora, mas a
construção utópica, o gozo do corpo na razão, a carta em sua autonomia.

Os personagens do livro O Monstro, têm como preferência, hospedarem-se nos andares mais altos dos
hotéis, de onde só saem para o aeroporto. Querem ver a cidade de cima, contemplar, à distância, suas
luzes. Observam o espaço urbano “com um olhar periférico”, que tanto pode partir da janela dos hotéis
quanto de dentro de um automóvel com o vidro fechado. Eles estão exaustos de pesquisa, exaustos do que
lhes é proposto como realidade. A única viagem que, de fato, lhes interessa é a viagem no imaginário
individual, com o intuito de reunir vivências fragmentadas num discurso articulado que lhes confira
algum sentido, buscando construir um real particular, a partir do próprio verbo. Em O monstro, se
expressam de maneira exemplar os impasses vividos pelo homem, nas últimas décadas deste século,
caracterizadas pelo que George Balandier chama de “tempo-necrológio”, porque marcado por um interminável
inventário de desaparecimentos, de fins.

No espaço de duas décadas, essa lista cresce e permanece em aberto: o fim do camponês e das cidades, da
família, dos grupos (suprimidos pelas relações em redes) e das classes sociais, da política, da escrita
(fim da galáxia de Gutenberg), dos códigos sociais transmitidos por gerações e gerações (os que governam
o corpo e a sexualidade), dos valores e das crenças; fim do indivíduo enquanto sujeito capaz de
liberdade. Fim último da série de fins, eis que se anuncia o fim do real, aviltado pela imagem e os
ruídos da mídia, depois abolido pela ação de inúmeras simulações; não haveria mais nenhum sentido pensar
no que o real é hoje.

Os personagens, nos três contos de O monstro, não são capazes de viagem, na acepção de saída de
um mundo determinado, porque estão presos ao único mundo que lhes interessa, ou seja, o mundo das
palavras, através das quais procuram criar um espaço em que possam se encontrar, como forma de
compensação para a perda de sentido da dimensão do real. A desrealização do espaço urbano, com a
diluição dos referenciais sensíveis para o indivíduo, leva-o a sentir-se, mais e mais, como parte de uma
sociedade abstrata. A hiper-racionalização do discurso é uma forma de tentar escapar à desrealização do
próprio indivíduo. Assim, Antônio Flores — o músico famoso do conto “As cartas não mentem jamais”,
nascido no Rio de Janeiro, mas que passa a maior parte do tempo viajando pelo mundo —, para escapar à
sensação de que sua vida não é real, precisa narrar os acontecimentos marcantes do passado. O recurso ao
imaginário retrospectivo constitui uma tentativa de produção de sentido por conta própria, ainda que,
para isso, tenha que transformar o outro em mero fator de estimulação para o desencadeamento do discurso
narcísico, fechado em torno do indivíduo que o enuncia.

CONTO: As cartas não mentem jamais

O conto discute as tramas de verdades e mentiras que obrigam a identidade única das coisas, inclusive
das histórias que compõem uma vida, a ficar permanentemente instável: “Não sei mais quem sou, Dorothy,
não sei o que é verdade ou mentira em minha vida. Às vezes só as histórias me parecem reais.”

O narrador, ambíguo, fala dos outros, mas age, muitas vezes, como se tratasse de si mesmo em terceira
pessoa. Perdido em meio aos muitos diálogos estranhos na narrativa, este narrador é limitado, não dá
conta das complexidades do que narra e nem mesmo consegue dar sentido e coerência às ações dos
personagens, obrigado a lidar com encenações sofisticadas da trama narrativa, que, obviamente,
extrapolam esse território, na medida em que são mediadoras das próprias complexidades da vida c
ontemporânea. Esse narrador compõe suas cenas carregando nos clichês e nos fetiches que organizam o
plano de um apelo sensual em marcha, mas deixa que as conversas desregulem as fantasias sexuais, para
que discussões metaficcionais possam invadir a narrativa.

A ordem das coisas, a ordem das aparências, a ordem do discurso de Sérgio Sant’Anna não podem, meramente,
ser confiadas a qualquer matéria de saber. Os fios de história que constituem o enredo jogam com a
condição paradoxal e sedutora das falas do narrador. Evidentemente, não considero como sedução algo como
“manipulação aduladora” e sim os desvios de identidade, os desvios do ser. Pois o pensamento narrativo
não trabalha no sentido de uma descrição das coisas, como o pensamento racional, mas no sentido das
possibilidades de sua desidentificação, de sua sedução, isto é, de seu desvio, talvez a serviço de uma
fantasiosa vontade de criar uma narrativa toda em desvio que contivesse a potencialidade de todas as
outras narrativas possíveis. Por isso mesmo, o cineasta Godard (transformado em personagem desse conto,
onde, por ironia, freqüenta, ambiguamente, o divã de uma doutora Dorothy, psicanalista, em Las Vegas)
reconhece, numa sessão de análise, ser impossível filmar todas as imagens que passam por sua cabeça, o
que o deixa louco, exasperado e irremediavelmente frustrado. A saída dessa frustração seria conseguir
realizar um filme que contivesse, potencialmente, todos os outros filmes. “God-art”, num trocadilho que
fala por si:

[…] a menos que conseguisse realizar um filme que contivesse, potencialmente, todos os outros filmes.
“God-art”, eu disse para ele. “God-art”, ele concordou imediatamente, pois tal associação já lhe ocorrera
um monte de vezes.”

Quando a narrativa trabalha seus elementos como simulacros, concluindo por não poder mais fazer distinção
entre o verdadeiro e o falso, institui-se um movimento de encenação dessa perda do limite entre verdades
e mentiras como forma de escrita, causando uma ambigüidade que sujeita o relato aos constantes jogos de
verossimilhança entre o possível e o impossível, entre o real e suas fantasias, estabelecendo um outro
nível de pensamento, muito mais radical – distante do pensamento causal, racional, newtoniano – que
tentará dar conta daquela destinação secreta do mundo do qual, conforme Baudrillard, seria uma espécie
de “estratégia fatal”.

Madame Zenaide, a cartomante em cena nesta história que se interliga às outras – mais uma “história como
ironia em marcha” –, também tem, e, provavelmente, não por acaso, um sorriso “com dentes muito brancos”,
confundindo-se com o próprio destino – outra ironia em marcha -, que arma seu jogo de cartas na própria
cama da mulher que, além de iniciar o menino nas questões de sexo, também será responsável por ler o
destino dele nas cartas e “alterá-lo profundamente”.

Quando madame Zenaide me estendera os braços, seus olhos estavam revirados, numa expressão ao mesmo tempo
meiga e selvagem, como se um anjo e um demônio possuíssem simultaneamente o seu corpo, para, por sua vez,
serem possuídos por mim e também me possuírem.

Essa leitura de cartas misturada à iniciação sexual, esse trânsito de anjos e demônios, abrindo caminho
para a reversibilidade do destino do personagem, parece abrir caminho também para o destino da narrativa,
que a partir desse momento opta por seguir a “verdade” das cartas, que sugere que “não se pode fugir da
morte e é melhor entrar num acordo com ela. Às vezes você tem que decidir entre matar ou morrer”. Ou seja,
o relato propõe uma reversibilidade dos fados, antes que essa reversão escape totalmente ao controle, e,
assim, só as histórias podem ser verdadeiras.

Sendo um clichê, as cartas que não mentem jamais têm todo o respaldo do senso comum. Isso é bem irônico
se pensarmos que, se a frase expressasse uma mentira, a afirmação seria falsa; caso expresse uma verdade
é um paradoxo. Ficar assim entre clichê e paradoxo, eis uma questão, porque os pensamentos ao serem
encenados paradoxalmente pelas palavras não são verdades nem mentiras porque fazem fronteira com a
poesia, forçando a linguagem a trapacear consigo mesma, isto é, a ultrapassar a medida de seus próprios
limites, obrigando sua hybris a um alerta de reversibilidade. Isso nunca pode ser objeto de um saber ou
de uma certeza. Se todo projeto construído por significantes funcionasse como um objeto tranqüilizador e
fosse a conseqüência lógica ou teórica de uma verdade assegurada (eufórica, sem aporias, sem
contradições), estaríamos em presença de uma máquina que não precisasse de nós para funcionar: sem
responsabilidade, sem decisão, talvez sem ética, nem direito, nem política. Não há decisão nem
responsabilidade sem a prova da aporia ou da indecidibilidade.

Talvez, madame Zenaide, se fosse analisada como Godard, se sentisse também frustrada, por não poder
fazer uma leitura tão radical das cartas a ponto de conter todas as previsões possíveis. Então, como diz
o conto, sob pena do “grande perigo”, que seria “embaralhar todas as cartas”, vamos combinar que as
cartas não mentem… mas das verdades que dizem, não teremos certeza jamais.

CONTO: O monstro

Nesta narrativa Sérgio Sant’Anna retoma o pastiche da linguagem da imprensa que já havia experimentado
em obras dos anos 70 e 80. Aqui, o monstro é um professor universitário que concede duas entrevistas
para explicar como e por que participou do assassinato de uma jovem cega.

O tema policial e o formato da história são extraídos do jornalismo. Trata-se do que se chama, em jargão,
de “pingue-pongue”, uma entrevista de perguntas e repostas, na qual a intervenção do jornalista se
resume à introdução e às questões, deixando o maior espaço ao entrevistado, que assume diretamente a
fala, em função do interesse do depoimento.

No caso do conto, a personagem do professor Antenor Lott Marçal, 45 anos, é quem narra o crime que ele
mesmo cometeu. A construção em primeira pessoa acrescenta complexidade à narrativa, porque a apresenta
do ponto de vista do sujeito que procura se conhecer. Além disso, como o narrador é testemunha
participante da ação, suas palavras ganham concretude e produzem empatia no leitor:

Mas, como procurei esse tempo todo não ser complacente comigo, vou permitir-me agora expor
sentimentos meus muito profundos, de um modo que nunca seria possibilitado numa investigação policial ou
julgamento.

A linguagem adotada por Antenor é, apesar de sua participação nos acontecimentos, predominantemente
objetiva. Por isso pode apresentar as demais personagens da trama utilizando artifícios próprios também
da narrativa impessoal, como o relato da ação para deduzir características.

Tanto no caso da assassina Marieta como no da vítima Frederica, alguns traços essenciais são repetidos à
exaustão, para caracterizar as personagens de modo convincente, em função da economia da trama.

Os retratos da co-autora do crime, Marieta, e da vítima, Frederica, são sentenciosos, resultado de uma
análise quase onisciente. Em “O monstro” os retratos são ambíguos. Sant’Anna não deixa nunca de provocar
no leitor o desconforto de duvidar da completude da percepção e da linguagem:

ANTENOR: (…) Ali de pé, no centro do banheiro, de frente para mim, era como se ela [Frederica] ocupasse
um espaço próprio e olhasse para dentro de si mesma, séria, compenetrada, sem qualquer afetação ou
consciência da sua beleza, de que pudesse estar sendo objetodo amor e da cobiça de outros olhares.

FLAGRANTE: É sabido que os cegos, ou mesmo os quase cegos, possuem os sentidos muito aguçados. Não lhe
ocorreu, ainda que não naquele momento, que Frederica possa ter pressentido a presença e o olhar do
senhor, sem reagir a isso?

ANTENOR: Não… É claro que não… Não pode ser. Qualquer dúvida nesse sentido lançaria uma nova luz sobre
os acontecimentos, não menos terrível, ou ainda mais terrível.
(SANT’ANNA, 1994, p.53)

O conto incentiva esse tipo de cotejamento entre literatura e jornal ao mimetizar as convenções da
linguagem jornalística. Na primeira página de cada uma das duas partes em que o conto se divide, o
cabeçalho indica a data da publicação, à maneira dos periódicos: 2 e 9 de junho de 1993.

A própria divisão em duas partes é justificada como procedimento técnico, devido à extensão da
entrevista, preservada pelo seu interesse jornalístico. Os textos que introduzem a narrativa do
assassino, feitos em nome da edição da fictícia revista Flagrante, especificam detalhes das
circunstâncias da entrevista, reproduzindo cacoetes do jornalismo num tom ligeiramente caricato.

A linguagem é em geral objetiva. Os verbos escolhidos para organizá-la são típicos do campo do
jornalismo: Antenor conta, explica, revela. O texto inclui ainda inúmeros detalhes próprios do efeito de
real buscado pela narrativa jornalística, como os nomes próprios completos, as datas exatas e locais
precisos, a idade do entrevistado. É assim que se abre o conto:

Em sessão do 2º Tribunal do Júri, em 4 de março passado, no Rio de Janeiro, o professor
universitário Antenor Lott Marçal, de 45 anos, após ter sua culpa reconhecida unanimemente pelos jurados,
foi condenado pelo juiz Irailton Catanhede à pena de trinta anos de reclusão, pelo estupro e co-autoria
do assassinato de Frederica Stucker, de vinte anos, no dia 18 de junho de 1992.
(SANT’ANNA, 1994,
p.39)

Nos dois textos introdutórios também aparecem indícios de uma preocupação em legitimar o relato como
verdadeiro e mesmo justificativas para o que, na sua estrutura, foge aos padrões do formato escolhido.
Vejamos alguns trechos:

O pouco de edição que foi feito na matéria obedeceu a critérios de melhor ordenamento da mesma
e obteve a concordância do entrevistado, que introduziu algumas alterações no texto final, revelando
sobretudo preocupações de ordem sintática e de clareza, para depois colocar sua assinatura em todas as
folhas originais.

(…) a exemplo do que aconteceu com a primeira parte da entrevista, preferimos não antecipar com
subtítulos ou destaques na matéria, para que suas etapas com as correspondentes revelações possam ser
acompanhadas pelos leitores em sua ordem e mecanismos próprios.
(SANT’ANNA, 1994, p.40 e 69)

No entanto, o conto contrapõe a essa pretensão de busca da verdade declarações do entrevistado que
questionam qual seria o caminho para a verdade e problematizam a relação entre realidade e ficção,
incluindo o papel do jornalismo e dos meios de comunicação na formação da visão de mundo dos indivíduos.
“É necessária muita cautela para se chegar a alguma verdade quando se trata de atos humanos”,
adverte Antenor, ecoando a reflexão já empreendida por Sérgio Sant’Anna vinte anos antes, em Notas de
Manfredo Rangel
.

Ainda que faça uso do pastiche e adote ironicamente as regras de gêneros variados, especialmente os da
mídia, Sérgio Sant’Anna não abre mão de um tom moralizante que grande parte da ficção abandonou em favor
do amoralismo e da valorização do jogo da linguagem por si mesmo. É uma literatura obsessiva, que retoma
e reelabora infinitamente seus temas metalingüísticos.

Assim, a personagem de Antenor cumpre o papel de colocar em evidência os limites humanos da percepção e
do registro da realidade, além do papel da mídia em sua conformação.

O professor explica como precisou elaborar os acontecimentos experimentados no assassinato e
assimilá-los, para continuar a viver. “Durante os dias eu ficava sozinho e a história de Frederica se
transformava ao sabor do que se publicava nos jornais”
, observa. (SANT’ANNA, 1994, p.72)

Ainda outras indicações desse questionamento:

É curioso o poder da palavra impressa. Eu mesmo tentei colocar em dúvida, intimamente, algumas coisas.
Por exemplo, se Frederica não teria buscado conosco uma aventura amorosa.

E se a sua morte não teria ocorrido por uma fatalidade.

(…) Está certo, não lhe posso dar essa certeza. E, ainda quando se trata de fatos concretos,
como os que levaram à morte de Frederica, eu próprio duvido, algumas vezes, se a reprodução
deles que tenho em mente e procuro transmitir é a mais correta possível. No decorrer desta entrevista,
pareceu-me, várias vezes, que enxergava os acontecimentos sob novos ângulos e que
eu mesmo me transformava, falando deles. As coisas acontecem velozmente, não podemos
fixá-las nos momentos em que as vivemos(…)
(SANT’ANNA, 1994, p.71, 77 e 78)

Em “O monstro” se sustenta no enredo emblemático e envolvente desenvolvido pelo narrador-personagem.

Ao final da leitura do conto, percebemos que devoramos a história do professor, cativados exatamente
pela forma direta, distanciada e controlada com que o narrador expõe a violência, falando, como já citado,
em primeira pessoa. Santos caracteriza esse tipo de narrador, freqüente na obra de Sant’Anna, como
testemunha, dono de um olhar ao mesmo tempo participante e postado num ângulo externo aos
acontecimentos. No caso de “O monstro”, a exterioridade é garantida pela personificação do narrador como
professor de filosofia, racional e interessado na verdade, pelo afastamento no tempo e pela objetivação
proporcionada pelas perguntas do repórter. Como se um vidro isolasse o narrador e, pela mesma
propriedade de transparência, permitisse a inclusão do leitor. O jornalista, ao pontuar a narrativa,
funciona como o observador neutro descrito por Santos, que amplia o horizonte da narração no seu
posicionamento que é, simultaneamente, de questionamento e corroboração do narrado. O que se revela é o
efeito poderoso de aproximação com o leitor obtido pelos formatos tidos e apregoados como objetivos, em
especial o jornalístico.

CONTO: A carta

Neste conto, depois de ter relações sexuais furtivas com um homem casado que passava rapidamente, a
trabalho, pela cidade em que vivia, a mulher resolve escrever-lhe uma carta na qual revive os poucos
momentos em que estiveram juntos. O texto é um esforço de prolongamento da relação efêmera. É através
dele que ela conseguirá o prazer que, na ocasião da relação física, apesar de toda a excitação, não
conseguiu alcançar. A carta é, também, uma forma de burlar o estatuto fugaz do encontro, de fazê-lo
perdurar à revelia do outro e, ao mesmo tempo, de torná-lo real.

A obra de Sérgio Sant’Anna questiona, assim, a pertinência da pretensão realista, nos leva a indagar se
a literatura, hoje, poderia ser algo mais do que auto-referencial, dada a atual perda das certezas
epistemológicas e os modos como essa perda afeta a representação. A literatura não traz a realidade para
o texto: ela seria jogo, apropriação de imagens e, nesse sentido, seria também um exercício de poder,
como qualquer outro. Quem dispõe da autoridade do discurso teria a posse de um instrumento de dominação
e, não, de libertação. Isto fica claro, por exemplo, num conto como O discurso sobre o método, paródia
do discurso realista que se fundamenta no saber instituído para enquadrar, classificar o diferente,
atribuindo-lhe as características que interessam a quem tem a posse desse saber. O narrador, burguês,
culto, ao falar de um operário, o silencia, reforça o que a sociedade já faz, fala por ele:

Ele estava enganado, mas não muito longe da verdade, embora o estivesse da originalidade: ele não
era um sonho, mas uma alegoria social. Social, política, psicológica e o que mais se quiser. Aos que
condenam tal procedimento metafórico, é preciso relembrar que a classe trabalhadora, principalmente o
seu segmento a que chamam de lúmpen, ainda está longe do dia em que poderá falar, literariamente, com a
própria voz. Então se pode escrever a respeito dela tanto isso quanto aquilo.

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