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O mundo de Flora, de Angela Gutiérrez

by Lucas Gomes

O Mundo de Flora

é o romance de estréia de Angela Gutiérrez, escrito em
1987. É um casamento feliz entre ficção e memória. Pode-se afirmar que é resultado
do caráter polifônico da literatura pós-modernista, pois há uma variação de foco
narrativo em que diferentes personagens têm voz. O romance apresenta como um de
seus espaços a cidade de Fortaleza.

O aspecto estrutural é que faz de O Mundo de Flora um romance singular,
de muitas influências da vanguarda européia do início do século, como o Cubismo,
em que é valorizada a superposição de planos e a colagem. Esses elementos, porém,
aparecem no texto de Angela Gutiérrez com outras perspectivas, dada a feição original
dos vários narradores, da perspectiva memorialística e autobiográfica, do regionalismo,
dos vários tipos de linguagem que o texto encerra, da fragmentação do enredo e
do tempo da narrativa.

Diante disso, veremos como a não-linearidade do enredo tanto é proporcionada pelos
vários narradores do romance, como pelos vários planos temporais que nele existem.
Tais narradores alternam-se, ora cabendo a um personagem o direcionamento da narrativa,
ora aparecendo outro que conduz a narração, que tanto pode ser contemporâneo do
primeiro, como pertencer a um outro tempo bem distanciado, e ora um narrador ausente,
em terceira pessoa, distanciado da narrativa, o que faz do tempo do romance um
verdadeiro caleidoscópio de imagens e fatos, daí a superposição de planos temporais
e espaciais.

O enredo, que à primeira vista parece confuso e desordenado, adquire unidade ao
longo do texto, pela simplicidade e naturalidade com que os planos se sobrepõem.
Tais planos, na maioria das vezes, têm individualidade própria, e aparecem sob
várias formas, como pequenos contos, crônicas, letras de músicas que marcaram
época, poemas populares etc. Essa independência formal, no entanto, não prejudica
o entendimento, haja vista os fragmentos se amalgamarem num todo narrativo, assegurando
a sua unidade, e marcando a originalidade da composição do romance em questão.

Ao lado dessa estrutura fragmentária, aparecem vários elementos que enriquecem
o texto, como os hábitos e costumes de Fortaleza antiga, o que caracteriza um
regionalista bem original, dado os efeitos que a autora emprega para mostrar ao
leitor tais costumes.

A nostalgia e o memorialismo são aspectos presentes na obra. O romance é fragmentado. A história se passa no casarão, no
sítio e na cidade.

Da perspectiva do memorialismo e da autobiografia, perceberemos que são mostrados tanto a formação do clã da protagonista,
como a sua formação individual, que tanto é contada por ela mesma, como por um outro narrador, possibilitando, desta maneira,
várias visões ao leitor, abrindo-lhe várias perspectivas não só de interpretação do mundo da personagem, como de visão
abrangente de um período, interpretado sob vários ângulos.

Apesar de o termo Pós-Modernismo ser ainda empregado com certas reservas, queremos
propor essa classificação para servir de identificação da estética do romance
de Angela Gutiérrez. Domício Proença Filho, em seu livro Pós-Modernismo e
Literatura
, identifica vários traços que caracterizam textos sob esta denominação,
como a ´intensificação do ludismo´, a ´utilização deliberada da intertextualidade´,
o ´exercício da metalinguagem´, a fragmentação etc. Tais traços são característicos
do romance de Angela Gutiérrez.

Pode-se afirmar que a personagem-narradora, Flora, identifica-se com o conto Cantiga de Esponsais, de Machado de Assis.
O romance é o fim de Flora, a personagem narradora. Aos 33 anos, ela se despede da vida. No espelho de cabo de marfim, ela
percebe o “cortejo da velhice” que se aproxima. Então, relembra a sua vida, os primeiros anos no casarão que pertenceu ao
avô e ao bisavô. O mundo de livros na biblioteca e a caveira no topo da estante – que a menina jamais esquecerá, com certo
espanto (seria seu primeiro contato real com a morte?). A primeira lembrança: aos três anos, sentadinha num tamborete,
comendo pedaços de sapoti, “cortados em gomos e arrumados no prato como uma flor”.

Flora tem cinco anos, e é com este espanto maravilhoso das crianças que vamos ler sua história, histórias – de sua família,
com tantas Floras e Níveas e Brancas, que se perpetuam, em gerações – gestos, jeitos e atitudes. A caçula é magrelinha,
sonhosa, de “pestanas compridas”, cabelos lisos e negros e perninhas de sibite. Vamos, levados pela mãozinha de Flora,
conhecendo as pessoas da família, e também – e com imensa ternura – as empregadas, feito a negra Cota e a cozinheira Maria
Amélia; pedintes, vizinhos, amigos de rua e da escola, os manos, os tipos (os rabos-de-burro, por exemplo). E também
curiosíssimas criaturas, como a gorducha Alaíde Vernon, “daquelas que quando se sentavam enchiam uma cadeira”. Ou a
galalau inglesa, miss Daisy Colbert (que vai aparecer em outro romance da escritora, Avis rara – como aquela que não
cabia nos retratos…). Filó, e sua dentadura postiça, balangando na boca, rodando a saia godê, enquanto dança, para alegria
de Flora. O velho Jeromo, o professor Quadrado e sua amada Micaela, o primo maluquinho, que cantava sem parar “Malica bela,
tu cagaste na panela”. A cidade – também ela é personagem do romance.

O Mundo de Flora convida o leitor a um passeio por uma Fortaleza que persiste no afeto, feito a velha Sé, demolida
no dia em que a menina nasceu (e a catedral, que nunca se acabava de terminar). A Coluna da Hora, na praça do Ferreira, o
trem apitando na estrada de ferro, no subúrbio de Matosinhos (é a Maraponga), o costume do “sereno” – ficar espiando, de
fora ou da calçada, uma festa para a qual não se foi convidado. Brincadeiras infantis, cantigas de roda, jogo de bila, de
pedra, passa-anel. A moda, cabelo curto, vestidos de organdi. A lagoa sangrando. Enterro de anjinhos. Música. Vela na cabaça,
para encontrar o corpo do menino afogado; o partido azul e o encarnado, bumba-meu-boi, maracatu, queima de judas. “Ôi,
bafo te bafo te bafo”, e a zoada da mutuca.

A menina cresce, apaixona-se, se casa por amor. Perde o primeiro filho. Sofre.
Mas é a renitente alegria, acompanhada pela esperança, o que sobressai da narrativa.
Porque a vida se eterniza nesta frágil mágica cotidiana, que é a vida de cada
um. Narrativa, como já citado, não linear, de vai-e-vem, com histórias
que se cruzam e se mesclam.

A estrutura

No romance O Mundo de Flora, não há a divisão macroestrurural. Observa-se
que no índice deste livro há uma divisão em grandes partes. Essa divisão em partes
maiores, no entanto, é apenas um indicativo de leitura para o leitor, que poderá
lê-lo da maneira que lhe for conveniente, como a própria autora observa – ´…o
leitor poderá conhecê-lo de um corrido só… ou folheá-lo ao acaso…
´ (p.
180).

Essas grandes unidades de divisão também não têm nenhuma função dentro da estrutura
narrativa, dada a independência que cada fragmento assume. Todo o texto romanesco
da autora cearense é formado por microestruturas narrativas, que proporcionam,
também, uma visão fragmentária para o leitor. Cada microestrutura guarda a sua
independência textual, visto que o discurso, em algumas delas, tem característica
bastante diferenciadas e possibilitam panoramas bem distintos, tanto em relação
à cosmovisão como em relação à vida da personagem. Desta maneira, as microestruturas
só se completam quando da recriação do leitor, que recompõe todos os desenhos
que lhe são apresentados.

Em O Mundo de Flora há a interpretação da realidade – e conseqüentemente
a sua crítica -, demonstrando a relatividade desta interpretação, que sempre está
sujeita a várias leituras, dependendo do ponto de vista em que é observada. Desta
maneira, há vários narradores que direcionam a narrativa – que entram e que desaparecem
do contexto narrativo -, e vários personagens que se alternam, assumindo, ora
uns, ora outros, a função de protagonista do enredo do romance.

O que vai predomina no texto de Angela Gutiérrez é a relatividade da cosmovisão.
O questionamento do mundo, neste romance, aparece mais enriquecido, visto a percepção
localizar-se em muitos pontos, o que possibilita tantas visões quanto o número
de referentes existente, daí a relatividade. O romance de Angela Gutiérrez é uma
tentativa de refazer esse mundo estilhaçado, que a modernidade proporcionou, e
que a pós-modernidade tenta reconstruir, unindo esses vários fragmentos; não mostra
somente o mundo partido e fragmentário dos personagens, mas mostra como esse mundo
pode ser reconstruído a partir desses fragmentos. O procedimento para a estruturação
do livro – a fragmentação, a colagem, a montagem, como já visto, fazendo
dele uma escrita caleidoscópica – tem uma relação profunda com um dos objetivos
de toda narração: a história da vida das personagens, que, neste caso, se elabora
através de lembranças que chegam, em muitas ocasiões, sem um nexo temporal ou
espacial de contigüidade, dada a independência que as estruturas assumem.

A polifonia: múltiplas vozes narradoras

O narrador do romance O Mundo de Flora assume várias identidades. O início
da narrativa é marcado pela presença de um narrador em primeira pessoa, que abre
o cenário para o leitor através do monólogo interior: ´São três horas da tarde.
(…) Trancada em meu quarto, vejo a luz do sol filtrada pelas persianas e ouço,
vindos de longe, sons que me parecem do Carinhoso. (…) Para quem escrevo? Para
mim mesma? Alguém lerá estas páginas?
‘ (p. 13)

Em seguida, na segunda microestrutura. um outro narrador assume o comando da narrativa,
desta feita em terceira pessoa, atuando num tempo não determinado, em relação
à primeira microestrutura. Essa técnica de construção da narrativa vai, desde
já, excitar a curiosidade daquele leitor acostumado a uma leitura linear de um
texto. O tempo desse fragmento tanto pode ser o da primeira microestrutura, como
um outro anterior ou posterior a ela. Tal narrador, assim, assume essa ambigüidade
temporal, que vai ser a chave para o deslindamento da estrutura singular desse
romance. Em qualquer dos casos, porém, temos a mesma cena vista sob dois pontos
de vista: o do personagem, visto por ele mesmo, e esse personagem visto sob o
ângulo de um outro narrador: ´O espelho de cabo de marfim devolveu-lhe a imagem
de uma mulher de trinta e três anos, bonita ainda, apesar das duas vincas que
nasciam nas asas do nariz e se amorteciam nos cantos da boca. Boca de lábios cheios
e sensuais, dizia Diego.
´ (p. 13)

Então, como já visto, todo o cenário do romance é construído por
fragmentos. Desta maneira, o romance O Mundo de Flora torna-se polifônico,
em que as muitas vozes encarregadas de comporem tal cenário possibilitam a visão
relativa do mundo ficcional apresentado. Com essa construção polifônica de narradores,
não há uma voz que se imponha às demais, pois cada uma tem sua visão, que é tão
verdadeira quanto às outras; visão essa que abre uma abrangente paisagem para
o leitor, que as interpreta tendo por suporte os múltiplos planos que lhe são
apresentados.

Em alguns momentos, a ambigüidade do discurso não permite que identifiquemos o
narrador como sendo em primeira ou terceira pessoa: ´Ao chegar à sala de almoço,
respirava aliviada. Ali, o telefone, o rádio, a sariema e a arara se encarregavam
de afastar os maus espíritos. Era o único lugar claro e alegre daquela casa.
´(p.
16) O verbo desse fragmento tanto pode ter como sujeito oracional “eu”,
como “ela”. Em qualquer dos casos, não se sabe se o referente diz respeito
à personagem ´Flora´ – mãe, ou ´Flora´- filha. Tal indeterminação, proporcionada
pela desinência do verbo, ganha relevância na medida em que as microestruturas
têm autonomia narrativa, ou seja, na grande maioria desses fragmentos, não há
nenhum sinal de contigüidade que permita assegurar a linearidade da narrativa.

Diz-se isso para dar ênfase a mais uma das características do narrador desse romance:
o narrador híbrido – aquele que pode assumir várias identidades ao mesmo tempo;
podendo ser um narrador-personagem, ou um narrador em terceira pessoa.

A história, às vezes narrada através de monólogo interior, também permite a presença
desse narrador híbrido. É o caso do fragmento ´sentado em pé´, em que a incoerência
semântica tanto pode lembrar o pensamento lúdico da infância – neste caso identificaríamos
a personagem ´Flora´-criança -, como possibilitar a presença de um outro narrador
que não guarda nenhuma semelhança com os demais, haja vista que em nenhum momento
do livro, além desse, essa construção frasal se repete: ´Era meia-noite, o
sol despontava no horizonte. Sentado em pé, numa pedra de pau, nu com a mão no
bolso, o homem calado, assim me dizia, enquanto caminhava parado…
‘ (p.
57)

Percebe-se que o narrador de O Mundo de Flora se comporta de várias maneiras,
assumindo várias identidades que, em alguns casos, nada tem de comum com os demais.
Ele entra e sai da narrativa sem nenhum compromisso com a história da personagem
´Flora´ (mãe e/ou filha), o que faz dele, além do hibridismo que assume, também
um emissor de uma mensagem aparentemente sem nenhuma relação com a fabulação,
como foi o caso desses dois últimos excertos.

A polifonia de vozes, assim, é uma característica do romance moderno. O que vai
diferenciar o texto de Angela Gutiérrez é o hibridismo que o narrador assume.
Desta maneira, alguns narradores aparecem camuflados, com identidades desconhecidas,
para tentar decifrar, para o leitor, o que há por traz do mundo da personagem.

A técnica da montagem, da colagem, da visão cinematográfica, tudo isso, naturalmente,
muita influência teve dos movimentos vanguardistas europeus do início do século,
como o Cubismo, o Surrealismo, o Dadaísmo etc. Há um aproveitamento das técnicas
utilizadas pelas vanguardas, que aparecem com novos elementos estruturantes do
discurso, como é o caso do refazimento da vida da personagem ´Flora´.

Ainda em relação ao narrador: ´O narrador distancia-se ainda mais da matéria narrada
e converte-se num observador, quase um repórter. No romance O Mundo de Flora,
pela diversidade de narradores, há aqueles que se comportam como o narrador tradicional,
onisciente, mas há aqueles que se distanciam da matéria narrada, como foi o caso
dos dois últimos excertos. É o caso também do fragmento ´dentro da gaveta´, em
que um deles, em primeira pessoa, assume, em determinado ponto da narrativa, um
comportamento distanciado, que quer somente resumir um enredo: ´A estória
do conto é simples. Uma menina de cinco anos tenta chamar a atenção da mãe que
parece alheia a tudo. Finalmente a mãe nota sua presença e lhe diz coisas que
só uma criancinha pode entender. Que vai fazer a mesma viagem que o papai fez
um dia, que não pode levá-la. Pede que a menina a deixa só porque vai tomar um
pó que a levará para esse lugar tão longe e de onde não voltará
‘. (p.167)

Ou o caso de ´certidão de nascimento´, nítida colagem, em que o narrador somente
informa os dados de nascimento de um personagem, utilizando-se, como é comum nestes
casos, de uma linguagem completamente referencial: ´Certifico que no livro
165 do Registro de Nascimento, às fls. 385, sob o no. de ordem 226.685, consta
que, no dia 30 de outubro de 1970, nasceu uma criança do sexo masculino de nome
Diego Fernández Filho…
´ (p. 151)

O narrador desse fragmento assume, naturalmente, uma outra identidade – a de um tabelião -, que somente aparece neste momento
da narrativa. Aparece como simples emissor de uma mensagem para, logo a seguir, desaparecer. Neste caso, ele tem a função
precípua de um narrador aparentemente descompromissado com o enredo, haja vista esse fragmento não ter, à primeira vista,
nenhuma conexão com a história, a não ser a de informar – referencialmente – um nascimento. É um caso típico de
transcontextualidade: o discurso de um outro contexto – o do universo cartorário – atuando no contexto do universo literário.

O importante a observar, neste caso, é que a autora, com esse procedimento, vem não só reafirmar que a linguagem não é mais
exclusiva de um gênero como categoria impositiva, como também se referir à questão da dissolução dos gêneros, cuja pureza
começou a ser abalada quando da intromissão de termos prosaicos à poesia, como disse Haroldo de Campos, em seu livro Ruptura
dos gêneros na literatura latino-americana
. A linguagem, assim, qualquer que seja o campo semiótico utilizado, não pertence
a nenhum deles com exclusividade.

Da estrutura narrativa

Por conta do narrador híbrido, que se desloca a cada fragmento, assumindo, como já dissemos, várias identidades, o tempo do
romance O Mundo de Flora torna-se, também, fragmentário, não-linear. A vida da personagem é contada sob vários planos
temporais, em que cada fragmento assume, na maioria das vezes, uma feição completamente independente do tempo do fragmento
anterior, ou do que se lhe segue. Desta maneira, em um determinado fragmento mostra a personagem em uma fase da sua vida.

No fragmento seguinte, esse personagem pode estar vivendo em uma época completamente
diferente do anterior; ou o narrador pode se referir a outros episódios que não
guardam nenhuma continuidade, nem de tempo nem de enredo, com os fragmentos anterior
ou posterior. Por conta dessa estrutura, é que tais microestruturas são montadas
cinematograficamente na mente do leitor, que fica encarregado de uni-las e, com
isso, dar nexo à narrativa: ´Feriado. Fomos para a casa de praia do meu tio.
E o que eu gostava mais na praia era de brincar nas dunas. A subida era difícil.
Os pés afundavam na areia fofa e tinha de fazer muita força nas pernas magras
para ir subindo
‘. (p. 95)

Todo o texto de O Mundo de Flora é montado desta maneira, por isso, raras
são as vezes em que há uma linearidade temporal. Para a autora, através desse
narrador – seja ele em primeira ou terceira pessoa -, o que interessa é o momento
da lembrança, do episódio vivido pelo personagem. Assim, o tempo e/ou episódio
podem ser contínuos ou não. O que observamos é que a descontinuidade prevalece
no texto.

O mundo da personagem é reconstituído através de vários planos temporais e episódicos.
Por esse motivo é que há a tentativa de reconstrução da história do personagem
através dos vários fragmentos que se achavam perdidos na lembrança.

O valor atual, neste romance, é o valor da memória, dos episódios da personagem
que são revividos como presente, daí a constante mudança de planos temporais.
O narrador, neste caso, não conta tais episódios somente como passado, como numa
narrativa de tempo cronológico; o tempo, no caso, é presentificado a cada faceta
vivida pelo personagem. As fronteiras entre passado e presente, assim, não existem,
pois elas se atualizam a cada fragmento.

Cada fragmento pode assumir várias formas: de um poema, de um convite, de um telegrama,
de uma certidão de nascimento etc. O tempo, por isso, é independente em cada fragmento,
cuja atualização se processa em cada um deles, daí a subjetividade e a relativização
desse tempo. O Mundo de Flora é um romance de muitos tempos, por isso há
o indicativo da autora: ´O mundo de Flora, onde tantos mortos moram
e alguns vivos, o leitor poderá conhecê-lo de um corrido só, de cabo a rabo, como
se diz, ou folheá-lo ao acaso, buscando costurar os retalhos a seu gosto, ou,
ainda, poderá guiar-se pelo índice que se segue e pelos indículos que o seguem
.
(p. 180)

O leitor, portanto, é o encarregado de recompor o mundo da personagem a partir dos vários momentos por ela vivido, que é contado por
um narrador descompromissado com a lógica linear. O compromisso desse narrador é o de tentar refazer o mundo de ´Flora´, através dos
vários retalhos da memória. O tempo, por conta disso, se desenha pelas lentes múltiplas de vários narradores, em que cada fragmento
tem sua independência.

O discurso

O Mundo de Flora é um romance composto de muitos fragmentos, como já dissemos. Essas microestruturas adquirem, por isso,
várias feições, assumem várias formas como a de um poema, de uma carta, de um telegrama etc, como frisamos no item anterior. O
discurso, neste caso, também se diferencia a cada nova forma. Utilizamos o termo discurso no sentido que lhe dá Tzvetan Todorov,
no ensaio intitulado ´As Categorias da Narrativa Literária´.

A estrutura epistolar não é novidade na literatura. Vários autores a utilizaram como recurso e argumento da fabulação. Tal
recurso foi utilizado pelos autores que dele se valeram para dar continuidade à história, à fabulação, num procedimento coerente
e explicativo com o restante do enredo.

O narrador, em muitos casos, dá uma explicação para a introdução da estrutura
epistolar no enredo. No caso deste romance, essa estrutura vem, como as demais,
independentes da fabulação; não guarda nenhuma contigüidade com as que se lhe
avizinham, como é comum em todo o livro. A epístola, no caso, é uma lente a mais
que desvenda o mundo da personagem; assume a função de um narrador a mais: (I)
Meu bem, Viajei preocupada. Deixar os meninos assim… Mas é o jeito. Tia
Branca não pode ficar só. E a nossa caçula Florzinha? Está tão magrinha!

(p. 15); (II) Mamãe, Estou dizendo essa carta para o Papai escrever Quando
a senhora viajou, chorou olhando para mim dormindo no berço?
(p. 21)

Os dois fragmentos acima, apesar de perfazerem um tipo de comunicação entre os personagens, não guardam nenhuma contigüidade no
romance, uma vez que estão separados por vários outros fragmentos descontínuos, daí a necessidade de o leitor estar sempre
recompondo o mundo da personagem, através dos vários e descontínuos retalhos que lhe são apresentados. No caso acima, o discurso,
como é comum nesse tipo de texto, é referencial, denotativo.

A intertextualidade

A intertextualidade é um procedimento que Domício Proença Filho considera como
pós-moderno: ´presentifica-se uma tendência à utilização deliberada da intertextualidade´.
Isso ocorre com muita freqüência neste romance. Esse procedimento estilístico
aparece sob a forma de poemas, de letras de músicas que marcaram uma época, de
frases de outros autores: há um diálogo constante entre esses textos; há inclusive
a identificação da personagem ´Flora´ com as personagens do Sítio do Pica-Pau
Amarelo, de Monteiro Lobato: ´Narizinho ria de mãos dadas com a Emília. Vamos,
Flô. Toma o pó, Flô. O pó de Pirlimpimpim
.´ (p.85)

Outros exemplos: (I) O homem da vassoura vem aí / Não sei pra onde vou com
a família / Eu só queria, eu só queria / Ver o homem da vassoura em Brasília

(p. 141); (II) – Pra ver a banda passar / cantando coisas de amor. (MF,
p. 149); (III) Diga trinta e três. Diga trinta e três. Era dançar o tango
argentino Y todo a media luz, crepúsculo…
(MF, p. 158); (IV) Me solte,
doutor, que eu não tenho paciência de ser preso
. (MF, p.177); (V) Me
encontrará tremendo de medo da mão descarnada, conversando com filósofo do Humanitismo,
vivendo amores de perdição e de salvação
. (MF, p.177); (VI) Que saudades
que eu não tenho da aurora da minha vida.
(MF, p.178); (VII) Uma cova
rasa, nem larga nem funda, é a parte que me cabe
. (p. 178); (VIII) Saio
da vida sem entrar na história.
(p.178); (IX) Viver, todo o mundo sabe,
é muito perigoso
. (p.179).

No caso dos excertos acima, tem-se o exemplo de intertextualidade ´hetero-autoral´,
que é a interação de textos de autores distintos. Angela Gutiérrez não se utiliza
somente de textos literários para revelar a intertextualidade, mas de fragmentos
de textos de outros contextos semióticos, como é o caso acima, de uma frase –
modificada, como podemos notar – da carta escrita por Getúlio Vargas antes de
suicidar-se; ou o caso da famosa frase do guerrilheiro Che Guevara: ´Hay que
tener dignidad hasta el fin, hasta la muerte
´ (p. 178). Ao final do livro,
a autora se vale do final de algumas histórias infantis para elaborar o ´segundo´
final do seu romance: ´Entrou pela perna do pato, saiu pela perna do pinto
e o senhor-rei mandou dizer que contasse mais cinco. Quem quiser que conte as
outras; eu, por aqui, paro. Não quero criar rabo de cutia contando estória de
dia
‘. (p.179)

Fonte parcial: Paulo de Tarso Pardal, professor, contista, ensaísta e poeta

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