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O outro pé da sereia, de Mia Couto

by Lucas Gomes

O outro pé da sereia

, romance de Mia Couto, jornalista, biólogo,
ex-militante político e descendente de portugueses, entrelaça
história e ficção, remete à tradição
e, ao mesmo tempo, lança à África, e a Moçambique,
em particular, um olhar absolutamente contemporâneo.

Nesta obra o autor opta por abrir mão de um discurso abertamente centrado
em uma abordagem política em prol de uma retórica híbrida
e sutil, permeada dos recursos estilísticos e intertextos que, embora
atendendo ao gosto do leitor pós-moderno, não se priva de questionamentos
acerca dos estereótipos que envolvem a África. O autor vai além
de questões político-sociais contemporâneas, partindo da
premissa de que é preciso que o africano reencontre suas origens, suas
tradições, seus cultos, suas crenças.

Em O outro pé da sereia, não apenas o choque entre
culturas é representado, mas também, e talvez primordialmente,
os arquétipos sobre o homem africano. Para tanto, o autor entretece duas
histórias paralelas, interligadas por uma personagem. A primeira relata
como Mwadia Malunga e seu marido, Zero Madzero, encontram uma imagem de Nossa
Senhora abandonada nas imediações do lugar em que vivem; significativamente
denominado Antigamente. Mwadia é encarregada de ir a Vila Longe, onde
vive a sua família, para providenciar um destino à imagem. Nesta
história de retorno à casa natal, nos são apresentados
uma série de personagens e seus dramas pessoais. A segunda é uma
narrativa histórica, que, em capítulos alternados, conta como
a referida imagem de Nossa Senhora chegou a Moçambique, trazida pelo
jesuíta D. Gonçalo da Silveira em uma nau portuguesa em 1560.

A imagem, benzida pelo papa, era destinada ao imperador do mítico reino
de Monomotapa, a fim de catequizar a região. Os acontecimentos dessa
viagem, que em certa medida refletem problemas contemporâneos, envolvem,
ainda, o conflito pessoal do jovem sacerdote Manuel Antunes, que será
seduzido pelos ritos e ritmos africanos, e a relação de um escravo,
Nsundi, com uma dama portuguesa e sua aia de origem indiana.

A guiar-nos pelo seu universo ficcional, há epígrafes que se
reportam aos temas cruciais a serem desenvolvidos metaforicamente no romance,
como, por exemplo, identidade, memória, permanência, pertencimento
e morte, além do posicionamento do continente frente a um mundo globalizado.

No romance, o autor entrelaça diferentes imagens do “outro”,
ao relatar, ficcionalmente, a viagem empreendida pelos padres jesuítas.
A nau transporta não apenas portugueses, mas escravos africanos e, até
mesmo, uma indiana a serviço de uma dama portuguesa, D. Filipa.

Durante a viagem há diversas instâncias em que o choque cultural
se manifesta. Boa parte delas gira em torno da imagem da santa, que Nimi Nsundi,
o escravo encarregado de guardar a pólvora e gerir os fogareiros, associa
de imediato à Kianda.

As águas têm significado especial nas manifestações
culturais africanas por remeterem aos mitos de fundação que regem
as múltiplas formas de vida. Tal como na cultura cristã, elas
fazem parte de um mundo primordial, do qual os seres humanos e o universo descendem.
Em Uso e Costumes dos Bantus, Junod (1975, 285-286), antropólogo
suíço que em 1895 dirigiu missão de pesquisa em Moçambique,
identificou diversas lendas e costumes, dentre eles um princípio feminino
da água que justifica sua natureza germinante e, por isso, procriativa.

Em quimbundo, as sereias são chamadas de “ianda”, no singular
“kianda”. Ao ver a imagem da santa tombar no lodo, durante o carregamento
da nau, o escravo se atira às águas, evitando que fosse tragada.
Mais tarde, ao ver D. Gonçalo da Silveira limpando os pés da santa,
diz que ela não havia escorregado; que ela queria ficar ali, no pântano.
A devoção do escravo à Santa comove o missionário,
incapaz de compreender a quem Nsundi realmente cultuava.

Assim como o escravo, Padre Antunes, que acompanha D. Gonçalo em sua
missão, experimenta um contato com a santa que é inconcebível
segundo a visão cristã. Sonha com uma mulher despedindo-se dele
na berna do rio Mandovi. Ela começa a desvencilhar-se de suas roupas,
dizendo-lhe que é deste modo que ele há de lembrar-se dela. Angustiado,
o padre acorda e, ao dormir novamente, torna a sonhar com a mulher, que lhe
diz para tocá-la, pois ela o fará renascer. No sonho, ele afunda,
para ser devolvido à tona pela estranha mulher, que, finalmente, se apresenta
como Kianda, embora ainda personificando Nossa Senhora. O sonho é o início
de uma crise religiosa e identitária.

Padre Antunes decidira ser padre por conta de um amor proibido e abdica da
batina por perceber-se um homem diferente, após o contato com os africanos
e a paixão súbita pela indiana Dia, também passageira da
nau Nossa Senhora da Ajuda. Os indícios dessa mudança espalham-se
pelo romance antes de sua enunciação final, como comprova esta
passagem:

Foi então que reparou que estava com as mãos sujas
de tinta. Com as mãos negras, ele reentrou no camarote. E com as mãos
negras ele se abandonou no rio do sonho
” (p.62).

A viagem conduz o padre para longe de sua fé, na medida em que, ao
testemunhar as atrocidades impostas aos escravos e os desmandos da igreja católica
em Goa, ele começa a duvidar dos preceitos do cristianismo:

A mais cruel das memórias de Manuel Antunes era de um escravo,
que, desesperado de fome, cortou a língua e a comeu. Mais do que uma
recordação era um símbolo da condição da
gente negra: exilada do passado, impedida de falar senão na língua
dos outros, obrigada a escolher entre a sobrevivência imediata e a morte
anunciada.
(p.260)

A visão de um porão abarrotado de cargas, a riqueza destinada
aos comerciantes, ocupando o espaço da água destinada aos escravos
que ali estavam confinados e a certeza de que estes, em sua maioria, não
chegariam ao destino, mortos de sede e fome, fazem com que Antunes confronte
D. Gonçalo, perguntando:

“Como iremos governar de modo cristão continentes inteiros
se nem neste pequeno barco mandam as regras de Cristo? (p.160)

São as obviedades de um cristianismo parcial que fazem com que Padre
Antunes perceba que se está convertendo em um negro:

Até 4 de janeiro, data do embarque em Goa, ele era branco, filho
e neto de portugueses. No dia 5 de janeiro, começara a ficar negro.
Depois de apagar um pequeno incêndio em seu camarote, contemplou as
suas mãos obscurecendo. Mas agora era a pele inteira que lhe escurecia,
os seus cabelos se encrespavam. Não lhe restava dúvida: ele
se convertia num negro.
– Estou transitando de raça, D. Gonçalo. E o pior é que
estou gostando mais dessa travessia do que de toda a restante viagem.

(p.164)

A fala de Antunes ecoa uma outra fala, a do escravo do qual recebe posteriormente
o nome, Nsundi. Ao perceber que a imagem da santa abrigava uma Kianda, o escravo
ficara obcecado pela idéia de libertá-la, serrando um dos pés
da imagem. Por esse ato, fora aprisionado no porão e ameaçado
de morte. Após um momento de transe, enquanto tocava a mbira, o escravo
se atira ao mar. Quem se dá conta do fato é Dia, a indiana, aia
de D. Filipa, tão subalterna e excluída quanto ele; com quem fizera
amor nas águas, por ser ela dona de um corpo que se incandescia ao contato
sexual. Naqueles dias, Dia o havia acusado de ter se submetido não apenas
à fé, mas ao modus vivendi dos cristãos. Após a
morte do escravo, ela encontra uma mensagem que ele lhe deixou. Nessa carta,
dentre outras coisas, ele afirma:

A verdadeira viagem é a que fazemos dentro de nós
(p.207)

A travessia de Nsundi é de libertação:

Eu lhe mostrei na noite em que fizemos amor: na popa da nossa nau está
esculpida uma outra Nossa Senhora. Deixo essa para os brancos. A minha Kianda,
essa é que não pode ficar assim, amarrada aos próprios
pés, tão fora do seu mundo, tão longe de sua gente. A
viagem está quase terminada. Daqui a dias chegaremos a Moçambique,
os barcos tombarão na praia como baleias mortas. Não tenho mais
tempo. Vão-me acusar dos mais terríveis crimes.Mas o que eu
fiz foi apenas libertar a deusa, afeiçoar o corpo dela à sua
forma original. O meu pecado, aquele que me fará morrer, foi retirar
o pé que desfigurava a Kianda (…) Agora não tenho mais medo
de morrer nem de ficar morto. Foi você quem me ensinou: a melhor maneira
de não morrer queimado é viver dentro do fogo
(p.208).

Nsundi referia-se ao fato de que após a morte do marido, Dia cumprira
o ritual que dela se esperava, atirar-se ao fogo. Mas, para espanto de todos
os presentes, as labaredas não a consumiram e, incólume, ela atravessara
o fogo, sendo, a partir desse dia, excluída do convívio com as
pessoas da aldeia, que acreditavam que ela estava possuída por espíritos.
Da exclusão à escravatura fora um salto rápido, no qual
ela “nem notou a diferença”, pois “no mundo a que pertencia,
ser esposa é um outro modo de ser escrava (p.108).

A idéia de libertação perpassa o romance e está
simbolicamente inscrita até mesmo na passagem em que o elefante, que
tanto impressionara D. Filipa, é atirado ao mar, para aliviar a carga:

Como se tudo isso não bastasse, o mestre ordenou que se deitasse
ao mar o elefante enjaulado. Os grumetes, de imediato, empurraram a jaula
e a custo de muitos braços a fizeram transpor a amurada. A gaiola de
ferro tombou com estrondo sobre as vagas, mas não se afundou logo,
como era de se esperar. Ficou vogando entre as altas ondas, em vez de se alarmar,
o elefante parecia rejubilar em se ver mergulhado nas águas. Quando,
por fim, a grade se afundou, o bicho exibia ainda tal felicidade que era difícil
sentir compaixão pelo seu destino.
(p.159)

A primeira mensagem de Nsundi a Dia rechaça as acusações
que ela lhe faz, condenando-o por ter se convertido aos deuses dos brancos,
por ser-lhes submisso:

Não, minha amiga Dia, eu não traí as minhas crenças.
Nem, como você diz, virei as costas à minha religião.
A verdade é esta: os meus deuses não me pedem nenhuma religião.
Pedem que eu esteja com eles. E depois de morrer que seja um deles. Os portugueses
dizem que não temos alma. Temos, eles é que não vêem
(…) é essa a razão por que D. Gonçalo quer embranquecer
a minha alma. Não é a nossa raça que os atrapalha: é
a cor da nossa alma que eles não conseguem enxergar. (…) Critica-me
por que aceitei lavar-me dos meus pecados. Os portugueses chama isso de baptismo.
Eu chamo de outra maneira. Eu digo que estou entrando na casa de Kianda (…)
De todas as vezes que rezei não foi por devoção. Foi
para lembrar. Porque só rezando me chegavam as lembranças de
quem fui.
(p.113)

A identidade, o sentido de pertencimento, a autoconsciência chega até
ele de modo inverso. É graças aos rituais e padrões da
fé que lhe é imposta que ele aprende o que não é,
e percebe a verdadeira dimensão do que fora um dia.

A incongruência do discurso cristão é reforçada
na conversa entre D. Gonçalo e Dia, quando aquele se surpreende ao vê-la
calçar o morto:

– Gostavas muito desse homem?
– Ele era meu…ele era meu irmão.
– Irmão? Muito estranho. Não seria, vá lá, um
meio-irmão?
– Para nós não existem meios-irmãos, senhor padre. Irmão
é sempre inteiro.
(p.205)

Ao desembarcarem em Moçambique e mediante as histórias que ouviram
sobre a crueldade dos habitantes do Monopotapa, as reflexões do médico
Fernandes, natural de Goa, e do Padre Antunes despertam em D.Gonçalo
o firme propósito de enviá-los para serem julgados pela Santa
Inquisição. O primeiro ousara afirmar que “quando se inventam
assim maldades sobre um povo, é para abençoar as maldades que
se vão praticar sobre eles”; o segundo os compara aos próprios
portugueses.

D. Gonçalo começa a defrontar-se com a devassidão moral
que reina na ilha:

Toda a sua vida imaginara que os demónios moravam no outro lado
do mundo: em outra raça, em outra geografia. Durante anos ele se preparara
para levar a palavra redentora a essa gente tão diversa. Nos últimos
dias Silveira confirmara que o Diabo fazia ninho entre os seus, os da sua
origem, raça e condição.
(p.255)

O padre vem a descobrir algo ainda mais surpreendente: que lá havia
negros que viviam da captura e venda de escravos:

O padre sorriu, incrédulo: escravos? Xilundo explicou-se: ele
era escravo, mas a sua família era proprietária de escravos.
Viviam disso: da captura e venda de escravos. O pai enviara-o para Goa, na
condição de servo, como punição de graves desobediências.
O projecto do pai era simples: preparar o filho para herdar o negócio
da venda de pessoas. No processo de ser escravo ele aprenderia a escravizar
os outros.
(p.258)

Os registros encontrados no arquivo de Zimbabwe atestam que D. Gonçalo
esteve por sete semanas na corte de Nogomo, período em que batizou o
próprio imperador, sua mãe e outros membros da corte, até
que comerciantes árabes, receosos da intervenção do padre
em seus negócios, convenceram Nogomo de que o jesuíta era um espião
e que o ato de batismo não passava de um encantamento malévolo,
o que determinou a sua morte, por estrangulamento, em 16 de março de
1561.

O contexto da viagem, eixo temático deste romance, e, principalmente,
do intertexto histórico, equivale às viagens interiores das personagens
em busca de si mesmas, transcendendo o relato que busca explicar o reaparecimento
da imagem em 2002, e remetendo a muitas outras viagens no outro plano da história.

A tessitura ficcional e a figuração da África
contemporânea

No plano do mundo contemporâneo, a história é tecida a
partir do relato do aparecimento da imagem e da viagem empreendida por Mwadia
Malunga, no intuito de encontrar um local para abrigar a santa. O relato entrelaça
dois espaços físicos, Antigamente e Vila Longe, que têm
papel preponderante no romance.

Desde o primeiro capítulo, a relação entre Mwadia e Zero
delineia-se atípica aos olhos do leitor. Ela vive com um homem silencioso,
que dizia estar “a esquecer-se” (p.14). Num certo dia, Zero encontra
algo que ele descreve como uma estrela que havia caído do céu
e, inclusive, queimara-lhe as mãos ao enterrá-la em seu quintal.
A suposta estrela nada mais é que uma aeronave em missão de reconhecimento
e espionagem que caíra, que, aos olhos do pastor de animais, assumira
a forma daquilo que mais se assemelhava à bola de fogo em que se tornara.

Após uma conversa com a mulher, ambos decidem desenterrar a estrela
e levá-la para ser enterrada junto ao rio, no lugar do bosque sagrado.
Mwadia sabe aquilo não é uma estrela, mas os restos de uma “desembarcação”.
No entanto, não deseja desmentir o marido. Naquela noite, Zero sonha
que suas mãos se juntavam como duas chamas numa única fogueira,
que, em lugar dos dedos, lhe doíam dez pequenas labaredas, até
que mãos feitas de água se aproximaram das dele, aplacando a sua
dor. Como sonâmbulo, ele repete as palavras da mulher que lhe aparece
no sonho.

Essa passagem se reporta a outra de valor idêntico no outro plano da
história: à carta de Nsundi, ao relatar a Dia a experiência
de rezar:

Acontecia-me a mim o inverso do que lhe sucedeu a si, Dia Kumari. As
minhas mãos se juntavam e pegavam fogo. Em lugar de dedos me ardiam
dez pequenas labaredas. Era então que outras mãos, feitas de
água, se aconchegavam nas minhas e aplacavam aquela fogueira. Essas
mãos eram da Santa. E ela me segredava: – Este é o tempo da
água. Era a voz da Santa que me percorria por dentro. A voz tomava
posse de mim. E agora que lhe escrevi a carta, vejo que esta letra não
me pertence, é letra de mulher. Meus pulsos delgados se recolhem ao
peso de um cansaço de séculos. Meus dedos não têm
gesto, meus dedos são o próprio gesto. Eu sou a Santa.

(p.114)

O tempo da água remete a temas e imagens recorrentes na obra de Mia
Couto. Ao rio, às margens que estabelecem uma fronteira entre o real
e o irreal, ao espaço de Mwadia, que quer dizer “canoa” em
si-nhungwé.

Muito embora Mwadia não fosse apegada às crendices, respeitou
o desejo do marido de consultar o adivinho Lázaro Vivo, em busca de permissão
para penetrar no local onde a estrela será enterrada. A mulher se surpreende
ao deparar-se com a “nova versão” do nyanga, que já
não portava mais as longas tranças de antes, nem as costumeiras
roupas pretas. Ao invés disso, encontra um homem de cabelo curto e penteado
de risca, usando uma blusa esportiva, e portando um celular. Lázaro vinha
de Vila Longe, onde fora buscar uma tabuleta para pôr na porta de seu
“estabelecimento”.

O modo com que Mia configura a personagem é uma visão irônica
da prontidão em que a África se atira em direção
à idéia de globalização:

– Eu já estou no futuro. Quando chegar aqui a rede, já
posso ser contactado para serviços internacionais. Entendem, meus amigos?

(p.24).

Em uma entrevista concedida a Celina Martins (2002), Mia Couto expôs
a sua visão sobre o choque de culturas em África:

Esse encontro de culturas é sempre, em princípio, traumático,
porque não se trata de um encontro, é uma incursão abusiva.
O que chega a estas culturas africanas não são as culturas européias.
São emanações, representações simbólicas
por via da tecnologia. Mantemos ainda a imagem dos primeiros encontros dos
descobridores europeus que trocavam umas bugigangas que reluziam diante dos
olhos dos africanos. Estamos mais ou menos repetindo esse modelo de relação.
Não existe globalização, o que existe é exportação
e imposição de sinais, nem sequer são modelos, o modelo
fica junto do produtor, os africanos consomem passivamente aqueles sinais
mais brilhantes e apelativos.

Nesse sentido, Lázaro personifica, no mundo contemporâneo, e
no âmbito do consumo, a repetição de uma relação
de dominação que se oculta sob a égide da globalização.
É um homem dividido entre as suas crenças e os possíveis
benefícios da tecnologia e da modernidade. O romance deixa entrever,
no entanto, que seus poderes são reais. É através de Lázaro
que o romance introduz pela primeira vez os rumores acerca da morte de Zero.

Após enterrar “a estrela”, Zero descobre a estátua
da Virgem, bem como os pertences de Gonçalo da Silveira, que com ela
estavam enterrados, e reconhece nela a mulher do sonho. Ao levarem o achado
até o adivinho, Mwadia percebe que Zero está sangrando. Para o
adivinho, Zero tinha despertado a alma do morto, pois uma pessoa assassinada
não descansa como os mortos naturais; vira um gnozi. Dada a
impossibilidade, até então não explicada, de Zero voltar
a Vila Longe, fica decidido que Mwadia há de fazê-lo.

Ante as muitas dúvidas de Mwadia, Lázaro afirma que ela ficara
muito tempo no seminário e acabara por perder o espírito das coisas
de seu povo, distanciando-se da imagem de uma africana. Ao que ela responde
que há muitos modos de ser africana, perguntando-lhe se ele sabe quem
eles são. Nesse ponto, a questão da identidade é retomada,
passando a entrelaçar-se com o tema da viagem, resgatando, por sua vez,
outros itinerários que se dão no curso de rios reais e ficcionais.
Vila Longe se revela como a Macondo de Gabriel García Márquez,
elevando a realidade à categoria onírica, sintetizando os mais
diversos elementos: a história, a natureza, os problemas sociais e políticos,
a vida quotidiana, a morte, o amor, as forças sobrenaturais, o humor
e o lirismo.

Conforme afirma o narrador, “a viagem não começa quando
se percorrem distâncias, mas quando se atravessa as nossas fronteiras
interiores
” (p.65). A métafora mais importante do romance
é o rio, a evocação implícita da sua terceira margem.
A caminho, Mwadia reflete sobre a própria vida:

Mas a vida de Mwadia fez-se de contra-sensos: ela era do mato e nascera
em casa de comento; era preta e tinha um padrasto indiano; era bela e casara
com um marido tonto; era mulher e secava sem descendência
(p.69).

Em Vila Longe, ela se reencontra com o seu passado, com a mãe que sempre
se lamentara de sua partida; com o padrasto que vivia em “trânsito
nominal” por acreditar que, ao trocar de nome anualmente, acabaria por
viver mais; com as crendices de seu povo e com a novidade da chegada de um casal
de americanos, que, pretensamente, viria estudar antigas histórias de
escravos.

As relações atribuladas com Constança, sua mãe,
que atribui à sua partida a sua crescente abundância de carnes,
entabulam uma reaproximação dolorosa, permeada de descobertas,
como a morte de Tia Luzmina, irmã de seu padrasto.

Em suas deambulações pela cidade, à cata de suas memórias,
Mwadia percebe situações anormais: cães assustados à
sua passagem; pessoas cujo reflexo ela é incapaz de ver no espelho; a
sensação de irrealidade ao contemplar o padrasto que a esperava
do lado de fora da alfaiataria; a sua surpresa ao ouvir o chefe da estação
afirmar que ela estivera ali na semana anterior, quando partira há tantos
anos.

A chegada dos americanos – na realidade, afro-americanos – traz
ao romance um tom de comicidade, uma vez que Mia Couto retrata com extrema ironia
a ansiedade do povo em inventar uma África ao gosto do estrangeiro. A
comunidade reúne-se para forjar uma memória sobre a escravidão,
já relegada ao esquecimento pelas contradições que traz
em sua própria constituição, como a captura e venda de
escravos, realizadas pelos próprios negros, os vangunis.

A estada dos americanos passa a ser a grande oportunidade de fonte de renda
para uma cidade desolada e entregue ao passado. Nas discussões que se
sucedem, Mia deixa entrever algumas questões que lhe parecem cruciais,
como, por exemplo, um desfraldar de bandeiras apoiado na questão da negritude,
na busca de uma África mítica, que, de certa forma, ignora a realidade
da Moçambique contemporânea, fruto de uma intensa miscigenação.
O desejo patético do afro-americano que quer ser africano é ironizado
no diálogo a seguir:

– O que se passa, mano, uma tontura?
– Eu só queria beijar a nossa mãe…
– Qual mãe?
– Queria beijar o chão de África…
– Ora o chão, pois o chão de África, mas veja,
meu brada, o melhor chão para ser beijado é noutro local que
lhe vou indicar, este chão, aqui, é melhor não…
(p.138)

A relação que o americano Benjamin estabelece com a África
é construída através do conceito intermediário de
raça; conceito este que ele adquiriu de uma matriz cultural euro-americana.
Em conseqüência, suas respostas às questões da identidade
africana encontram-se enraizadas na visão arquetípica e romântica
que foi o ponto de partida para os africanos que assumiram a bandeira de uma
nacionalidade negra pan-africana.

Ao satirizá-lo, Mia Couto tenta encontrar o espaço de construção
de uma identidade moçambicana. Conforme afirma Appiah (1997, 115), a
relação dos escritores africanos com o passado da África
é uma trama de ambigüidades delicadas, “se eles aprenderam
a não o desprezar nem ignorá-lo; ainda estão por aprender
a assimilá-lo e a transcendê-lo”.

Mia não deixa incólume a ação internacional em
prol dos povos africanos. No romance, os afro-americanos sobrevivem por meio
de contas superfaturadas para ONGS, como a Save Africa Fund, uma associação
religiosa afro-americana, responsável pela verba que o casal trazia:

Espalhou gorjetas pelos funcionários, polícias, lavadores
de viaturas e carregadores de malas. Cada desembolso era cuidadosamente anotado
numa pequena agenda em cuja capa se grafava a letra de imprensa: “Project
budget”.
(p.139)

A percepção aguda de Mwadia lhe faz pensar que “diversas
viagens se cruzavam, a um só tempo, naquela casa”: “os
americanos atravessavam os séculos e os mares onde se esbatera a sua
identidade” e “ela viajava no território em que o tempo nega
a converter-se em memória
” (p.145). Porém o esquecimento
era uma condição necessária: “O tempo existe
para apagar o tempo
”. (p.136)

Em entrevistas concedidas recentemente, durante sua passagem pelo Brasil,
Mia Couto disse pretender ironizar e questionar alguns arquétipos sobre
o homem africano, principalmente a idéia de pureza ou autenticidade,
bem como os lugares-comuns em sua representação: as crendices,
a feitiçaria e a sexualidade; como nos mostra o exemplo a seguir:

– Agora que estou no fim da minha vida, posso confessar: as vezes
em que eu fiz amor com maior paixão foi com mulheres.
– A mãe fez amor com mulheres?
Mwadia estava aterrada. Uma mãe não fala de assuntos destes.
Muito menos confessa algo tão íntimo, tão chocante.
– Você tem que saber isto, minha filha.
– Fomos ensinadas a esperar pelos homens. Mas essa espera demora mais
que uma vida. Ninguém espera tanto assim.
– Estou espantada, admitiu a brasileira.
– É o que lhe digo: os homens daqui são péssimos
amantes.
– Não é isso que consta lá no Brasil.
– Isso é porque não pedem a opinião das mulheres.

(p.178)

A questão da feitiçaria é tematizada em sua relação
com as transformações sociais, uma vez que, graças a questões
econômicas, perde a sua característica religiosa e passa a fazer
parte de uma pantomima comercial. Mwadia é convocada a encenar transes,
visitas de espíritos, para impressionar os americanos. Para torná-los
convincentes, de dia lê os velhos documentos de D. Gonçalo, encontrados
com a santa; à noite vai ao quarto dos americanos e lê os papéis
do casal, além de visitar a biblioteca que o padrasto havia herdado.
O efeito da encenação é imediato:

“Como Casuarino previra, os americanos ficaram fascinados com a
sessão de transe (…) Eis África autêntica, repetiam,
deleitados”
(p.236).

Mas ao envolver-se no engodo, Mwadia faz uma importante descoberta. “Agora
ela sabia: um livro é uma canoa. Esse era o barco que lhe faltava em
Antigamente. Tivesse livros e ela faria a travessia para o outro lado do mundo,
para o outro lado de si mesma” (p.238). Dali por diante, Mwadia e sua
mãe passam a fazer visitas prolongadas ao sótão, onde sessões
de leitura devolvem à Constança a sensação de vida.

Em seus transes fictícios, Mwadia traz à baila questões
que desafiam a busca do americano pelas próprias raízes e aprofundam
tematicamente a miscigenação, que, pra Mia Couto, está
no âmago das discussões sobre a identidade do moçambicano:

De olhos fechados, esticou o braço na direcção
do afro-americano e clamou;
– O senhor, Benjamin Southman, é um mulato.
– Mulato, eu?
O ar ofendido de Benjamin suscitou a intervenção de Casuarino.
Ora, ele não se magoasse. E acrescentou: Afinal, desde Caim somos todos
mulatos. O empresário elaborava com eloqüência: havia a
globalização. Ao fim ao cabo, vivíamos a era da mulatização
global. E, isso, poucos entendiam. Em terra de cegos quem tem um olho vê
menos do que os que nada enxergam.
(p.267)

Ao ficar sabendo, em mais um transe de Mwadia, que sua ancestral era a indiana
Dia e não uma africana genuína, Benjamin fica transtornado e é
levado à casa do adivinho Lázaro, já devidamente prevenido
por Casuarino de que devia se desvencilhar de todos os seus artefatos tecnológicos,
assumindo uma aparência primitiva: “Tudo selvagem, nada de modernices
(p.270).

Apesar dos pequenos deslizes do adivinho, que, esquecido de seu papel, dirige-se
ao americano em inglês, inquirindo sobre os dólares, este parece
impressionar-se com a idéia de ser batizado e ter um novo nome, um nome
africano. No dia seguinte, batismo marcado, o americano desaparece, deixando
alguns dólares em troca de seu novo nome: Dere Makanderi.

A fuga do americano precipita uma série de acontecimentos e revelações.
Rosie acaba por revelar que ela e o americano não são casados,
que a busca do historiador americano por suas origens era verdadeira, mas que,
na realidade, não passavam de uns trambiqueiros, que viviam de cambalachos.
Mas essas não são as únicas revelações a
serem feitas.

As palavras do barbeiro, o único a se recusar em participar das encenações
para os americanos, pontilham todo o romance, como ditados oriundos de uma sabedoria
primitiva. Este é um procedimento comum a outros romances do autor, assim
como o itálico para discriminar a fala das personagens, o uso dessas
falas como epígrafes dos capítulos, a dimensão sagrada
da casa, da terra, do rio, do tempo. Neste romance em particular, a voz narrativa
adere ao mesmo discurso mágico das personagens, criando sentenças
que se assemelham a ditados milenares.

É o barbeiro quem afirma que é necessário “esquecer
para ter passado, mentir para ter destino
” (p.64). No momento em
que se dá conta de que não há como fugir do passado, de
que a história se repete, ele aconselha a Mwadia a afastar-se de Vila
Longe, perguntando-lhe se nunca ouvira falar de terras que foram erradicadas,
que deixaram de constar. Aos poucos, as peças do imenso quebra-cabeça
começam a se encaixar.

Por meio de Matambira, ela descobre que a razão de sua mãe ter
engordado tanto não fora o desgosto com a sua partida, mas as repetidas
surras que levava de Jesustino, o padrasto. Ao inquirir a mãe acerca
da revelação, outras mais surgem: seu marido Zero estava realmente
morto, conforme várias personagens sugerem ao longo do romance; o padrasto
o havia assassinado a facadas, por ciúmes de Mwadia. O romance sugere
vagamente o fato de que ela havia sofrido abuso sexual por parte do padrasto,
que já tivera uma relação incestuosa com a própria
irmã.

Pouco a pouco, Mwadia vai sendo confrontada com o passado que buscara esquecer.
Constança determina a ação necessária à libertação
de Mwadia: colocar a foto de Zero na parede dos ausentes; aceitar a sua morte.

A viagem de regresso equivale ao retorno aos labirintos da alma, pois, conforme
lembra o narrador, “a viagem termina quando encerramos as nossas fronteiras
interiores. Regressamos a nós, não a um lugar
” (p 329).

Colocando a imagem da santa junto ao tronco de embondeiro, ela segue viagem
pelo rio. O rio dos seus medos e dos seus sonhos, o rio que leva ao passado,
mas também ao destino. À sua chegada, aguarda-lhe o marido morto,
e fica-lhe a certeza de que Vila Longe e seus habitantes há muito haviam
deixado de existir:

Como aceitar que Vila Longe já não tinha gente, que a maioria
morreu e os restantes se foram? Como aceitar que a guerra, a doença,
a afome tudo se havia ravado com garras de abutre sobre a pequena povoação?
Vila Longe cansara-se de ser mapa. Restavam-lhe as linhas ténues da
memória, com demasiadas campas e nenhuns viventes.
(p.330)

À noite, ao olhar para o céu é como se este se transformasse
na parede dos ausentes em Vila Longe. Nela surgem todos os rostos, seu padrasto
suicida, a tia Luzmina, Zeca Matambira, todos. Até mesmo seu verdadeiro
pai, que passara a vida como homem e morrera como mulher. Sua mão ergue-se
para ajustar à parede um último retrato, a foto do último
ausente: Zero, que no leito dormia, sonhando e balbuciando que havia acabado
de enterrar uma estrela. Seu último rumo é o rio. O rio do qual
era canoa, ao qual se entregaria em definitivo.

Ao longo do romance, percebe-se claramente a imbricação entre
o real e o imaginário, entre o fantástico e a realidade, que,
segundo o próprio autor, é algo completamente presente na realidade
moçambicana, que é regida segundo uma outra ordem de racionalidade.

Ao criar um mundo ficcional em que só o impossível é
natural, Mia Couto revisita suas raízes, provando que a palavra é
o lugar da construção da identidade, pois é onde a memória
é preservada. Ao invés de dar três voltas à volta
da “árvore do esquecimento”, como as personagens do romance,
o autor opta por outro tipo de questionamento: compete ao homem decidir o que
deve ou não ser lembrado.

O outro pé da sereia é, afinal, o que propõe
ser a partir do contexto histórico que lhe serve de base: um livro de
viagens. Viagens entrecruzadas, nas quais a questão da identidade não
é ponto de partida ou de chegada; é o caminho.

Créditos: Profª Drª Shirley de Souza Gomes Carreira, Revista
Eletrônica do Instituto de Humanidades, Unigranrio

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