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O pintor de retratos, de Luís Antônio de Assis Brasil

by Lucas Gomes

No último romance de Luís Antonio de Assis Brasil, O pintor de retratos, de 2001, os amplos
painéis históricos que lhe deram renome foram substituídos por uma escrita mais precisa, introspectiva,
engenhosa. Novela para alguns, romance para outros, Assis Brasil narra desta vez as peripécias que
levaram Sandro Lanari, um menino rústico nascido na cidadezinha italiana de Ancona, porto do Adriático,
a tornar-se pintor de retratos em Porto Alegre, e, mais tarde, nas estâncias isoladas do Rio Grande do
Sul. Entre a Itália e o Brasil, há uma permanência em Paris, centro artístico europeu, durante a virada
do século XIX, momento crítico em que a arte fotográfica ameaçava, para logo substituir, a arte dos
pincéis.

O resultado dessa nova estética na trajetória de Assis Brasil não poderia ser mais feliz. Embora
ampliados os limites geográficos habituais de sua narrativa, além dos elementos externos, ele fixou-se
numa questão para muitos artistas e/ou intelectuais mais profunda: as tecnologias não são neutras; acima
de tudo, são os homens (e as mulheres) que decidem sobre seu sentido e valor. Daí a frustração da
perseguição utópica de Sandro Lanari. Ainda que como indivíduo possa ter sido um vencedor, seu arrivismo
social impediu-o de entender a responsabilidade ética da arte.

É uma história surpreendente, que nos interroga sobre os limites da arte e da sua representação do mundo
e do homem. A trajetória de um homem e seus desacertos, e de uma precária ambição. Seu paradigma é o de
um grande artista, mas em que se transformou sua vida? Na perfeição do retrato de Sara Bernhardt pode
estar a chave de tudo.

O tema transita de diários de bordo e crônicas de viagem para a ficção. O novelista, em obras anteriores,
como Um quarto de légua em quadro, As virtudes da casa e Videiras de cristal, já
havia introduzido personagens originárias da cultura européia. Nesse romance, contudo, o autor incluiu
nuances que particularizaram o foco com que se aprecia a relação entre dois universos diferenciados.

O protagonista Sandro Lanari provém de uma família de retratistas italianos. Seus ancestrais contabilizam
algumas glórias passadas, mas não passam de pintores medíocres, que adulam a elite local, formada por
comerciantes enriquecidos e religiosos, para garantir o patronato. Com o objetivo de aperfeiçoar sua
arte, o rapaz vai a Paris, onde se depara com a ascensão do impressionismo e da fotografia, processos
complementares, pois o impressionismo rejeita a pintura retratista, porque a fotografia pode realizá-la
de modo mais eficaz.

Sandro Lanari percebe-se colocado na contramão da arte que pretende praticar, sumariada na ação do
fotógrafo Nadar, no ápice de seu prestígio. Sandro deixa-se reproduzir por esse profissional, que flagra
no moço a personalidade medíocre e retraída. Sem ocupação, o herói migra para o Brasil, trazendo a Porto
Alegre a esperança de encontrar um lugar para sua atividade. Surpreende-o, contudo, o fato de que, mesmo
nessa cidade, a fotografia suplantar o retrato. Por essas e outras, como o envolvimento amoroso com fina
jovem da sociedade local, foge para o interior.

É então que descobre seu verdadeiro ofício – o de fotógrafo. Aliciado à força por tropas do exército
castilhista, durante a revolução federalista de 1893, Sandro Lanari registra as façanhas dos soldados
até ser obrigado a documentar a degola de um prisioneiro. O resultado espanta o autor da imagem, que
conserva a fotografia como comprovação de sua arte. Convencido de seu talento, Sandro Lanari consagra-se
profissional requisitado para sempre, constituindo família, engordando e enriquecendo.

Tal como seus predecessores – cronistas, viajantes ou mesmo as personagens anteriores de Assis Brasil –
Sandro Lanari é um estrangeiro que acredita na sua superioridade diante de um meio provinciano. Contudo,
diferencia-se deles, porque, desde o começo da narrativa, sua posição está comprometida: ele pratica uma
arte ultrapassada. Assim, a pose – atitude programada por ele, mas inviável – é substituída pela
humilhação, que acompanha sua trajetória, sempre em fuga. O olhar estrangeiro não tem condições de
avaliar corretamente o novo espaço que lhe é apresentado.

Nem por isso o ambiente é menos provinciano, quando a ação se passa no meio urbano,
nem menos bárbaro, quando se depara com a guerra no pampa. Lanari, de posse de
sua arte, tenta captá-lo, mas sua personalidade fica aquém das virtualidades de
representação, mantendo-se na periferia dos acontecimentos, preocupado com o efeito,
não com o conteúdo.

A busca por uma identidade pode ser analisada mais profundamente sob o aspecto ou temática do olhar
estrangeiro de um indivíduo que transforma o que vê em imagem. Esta porém não dá conta da representação,
como que informando que nem a arte tradicional, nem a tecnologicamente mais avançada são capazes de
traduzir as contradições de que se alimenta o universo vivenciado pelo protagonista Sandro Lanari.
Contempla igualmente, num segundo momento, o confronto entre civilização e barbárie. De um lado do
Atlântico, em Paris, Rodin esculpia “Le baiser” em mármore finíssimo, e Debussy compunha o delicado
“l’Après midi d’un faune”
(p. 121). Do outro, é a guerra civil rio-grandense que vai exemplificar. A
narrativa, que se desenvolve na terceira parte durante a Revolução Federalista, lembra que, por falta de
munição, “eram degolados cinqüenta em um só dia” (p. 121).

O pintor de retratos evoca ainda a errância e as reações dos predecessores de Lanari ante o Novo
Mundo, cronistas viajantes, aqueles que acreditaram em sua superioridade em relação à nova terra.

Estrutura e Enredo

A trajetória de Sandro Lanari: Ancona / Paris / Porto Alegre / Rio Pardo / Porto Alegre / Marselha – é o
fio condutor das ações ocorridas nos dezenove capítulos, distribuídos em quatro partes, e narradas sob o
ponto de vista da onsciência.

Na primeira parte, o espaço é Ancona, porto do Adriático, na Itália, berço de Sandro Lanari e de suas
seis gerações de pintores. Ele aprendeu toda a técnica que o pai, Curzio Lanari, conheceu. Este,
reconhecendo que o filho não tem mais nada a aprender, mandou-o a Paris aperfeiçoar seus conhecimentos
na arte dos retratos pintados.

Embora a Itália tenha sido, praticamente, o nascedouro das muitas excelências da pintura, Paris era o
espaço do requinte, do brilho e do sucesso imaginário europeu. No entanto, o rapaz, lá chegando, entrou
em contato apenas com pintores decadentes, vivia a espera de um futuro que não chegava porque em Paris
não era famoso enm Monet, nem Manet, nem Picasso, nem Degas, nem outros que viviam a habitar os museus
do globo. Famoso era Nadar. A febre era Nadar. Todos saudavam Nadar. Não era pintor, nem fotógrafo.
[…] Sua fama de gênio veio dos retratos.

Na segunda parte, que se poderia chamar “da Europa para a América”, sem ocupação, Lanari emigrou para o
Brasil; (…) aliás, todo o mundo emigrava: seleiros, agricultores, sapateiros, lapidadores de vidro,
artesãos de agulha e linha, chapeleiros, qualquer ofício, até artistas, todos iam para aquela selva. O
que iam fazer no Brasil? Queriam ser devorados pelas feras?
(p. 47). Apesar disso, e depois de muito
pensar, prevaleceram as palavras do pároco: …no Brasil eles vivem na bem-aventurança do paraíso
terrenal, desfrutando as dádivas do Nosso Senhor. Quem trabalhar terá sua recompensa e ficará livre dos
tormentos do espírito, dado que os da carne são inevitáveis
(p. 47). A frase “Merde! Pois emigre!”
(p. 47), de um bêbado no bar que Lanari freqüenta, não por acaso denominado “Barbare”, é decisiva e nos
remete novamente a Rivas. Segundo ele, o sistema americano representa para a Europa o mito das origens,
enquanto para o europeu a América representa a utopia do futuro.

Neste momento do romance, o discurso literário de Assis Brasil transfere-se de cartografia para refletir
a respeito do que é viver, produzir cultura em província ultramarina, analisando, por intermédio de seu
protagonista, as relações entre as duas civilizações, cujo estranhamento de uma à outra data dos
primeiros encontros, num procedimento de intercâmbios, que ressalta a singularidade do próprio em
confronto com a diversidade do alheio, procedimento este característico de múltiplas escritas por ocasião
dos quinhentos anos das descobertas de Colombo, no fluxo das reconsiderações a respeito da presença
européia nas Américas e suas conseqüências.

É do porto de Marselha que Lanari parte a bordo de um navio de carga. Atravessa o Atlântico entre os
odores de gases fétidos dos companheiros de compartimento e o maravilhamento com o Cruzeiro do Sul.
Chega a Porto Alegre num domingo de “calor úmido e viscoso” (p. 51). Instalou-se na Rua da Praia, na
pensão de um compatriota, que o aceita em homenagem a Garibaldi, o Herói de Dois Mundos. Ali, os
hóspedes comiam concentrados, e mastigavam de boca aberta. Sem guardanapos disponíveis, limpavam-se com
mangas das camisas. Duas escarradeiras de faiança azul demarcavam o comprimento do salão de refeições;
ali (…) cuspiam, segundo a educação ou a pontaria
(p. 52).

O velho mundo, civilizado e culto, permaneceu como modelo. As noções de unidade e pureza que Lanari
trouxe na bagagem sofreram reviravoltas, foram sendo infiltradas progressivamente, contaminando-se pela
mistura sutil e complexa que se deu entre elementos europeus e autóctones, abrindo o caminho para a
transformação (Santiago, 2000, p. 15).

Lanari sobreviveu como pintor de retratos – só havia um na capital, o Alcides, e era “inofensivo”. No
entanto, para sua decepção, a cidade estava infestada de fotógrafos-retratistas, e todos italianos
(p. 55). Desde 1860 (Lanari ignorava), o Rio Grande conhecia a fotografia. Profissionais de estirpe –
Carducci, Lucchese, Terragno – estabelecidos no centro de Porto Alegre, retratavam as pessoas e a cena
urbana.

Reproduzia-se novamente na capital gaúcha o contexto da Cidade Luz. Tal qual Paris, onde os castanheiros
cobriam-se de flores piramidais que para nós, basbaques da parte Sul do mundo, são como pinheiros de
Natal em miniatura
(p. 41), o prestígio dos pintores de retratos havia sido transferido para os
fotógrafos-retratistas. Em contraponto geográfico às flâneries parisienses, ou à paisagem pictórica de
Ancona, agora “era o Guaíba” que Lanari via quando se espraiava nas tardes porto-alegrenses, as águas
(…) refletindo o fulgor do sol
(p. 55). Mas nesse “fim do mundo” (p. 56), habitado por uma
sociedade rudimentar e tosca, no “rio tão belo” (p. 55) não havia heróis, batalhas, deuses; era apenas o
Guaíba; (…) lá, (…) o Adriático, povoado por lendas de heróis descabelados e furibundos, varridos
pelo colérico ribombar dos canhões, itinerário de bojudas galeras venezianas e bizantinas desde épocas
sem memória, habitação dos deuses e cenário de batalhas decisivas para a Humanidade (…). E ele,
Sandro, era um artista que trazia nas costas a Europa e seus séculos de civilização (p. 55).

Lanari definiu-se civilizado com relação a esse lugar de inferioridade, o que revelou a dupla perspectiva
que guiou Assis Brasil, duas coordenadas, uma interna, a brasileira, e outra externa, a européia. Sua
genialidade também estava em construir esse discurso, um olho voltado para lá, o outro para as entranhas
de sua sociedade, cruzando ambos na figura de um Lanari descentralizado, atuando assim na perspectiva da
“teoria do molho”, de Machado de Assis, citada por Afrânio Coutinho, onde se lê que o artista pode ir
buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de sua fábrica
(Carvalhal,
2001, p.152).

Por ironia, foi nessa “metade inferior do planeta” (p. 48) que Lanari viu a foto de Sarah Bernhardt
ganhar vida. Ainda que a original fosse mais bonita, a cópia gaúcha tinha nome e atributos de flor.
Chamava-se Violeta, emblema da modéstia, um picante mistério a ser desvendado. Passou a fantasiá-la
perfumada, recém-saída do banho, envolta na veste romana, como no retrato de Nadar
(p. 75).

Hospedado na casa dos pais da moça, às noites do frio rigoroso de junho no Rio Grande do Sul, dos sonhos
do jovem pintor ela freqüentava agora seu leito. Perseguido pelo pai de Violeta, que o ameaçou de morte,
Lanari fogiu para o interior gaúcho, deixando o espaço urbano da capital por Rio Pardo, enraizando-se
ainda mais nas terras brasileiras.

Esta é a terceira e penúltima parte do livro, e foram atravessadas as águas do Jacuí. A persistente
referência à água nos leva à ordem simbólica. De um lado, a purificação pela água, rito de passagem,
aquela do útero materno e do batizado; do outro, a das profundezas dos mares, o Atlântico, que o trouxe
de Ancona, a terra natal, para estas paragens. A água suscitou devaneios, levou o personagem ao sonho.
Expressão de um profundo fatalismo, o destino o conduziu. Apesar da fragilidade que experimentava, ele
finalmente chegou a um porto. E para demarcar sua nova existência, libertou-se de Il Libro dell’Arte
de Cenino Cenini, jogando-o num arroio de águas confusas, dizendo: ‘Vai-te, petulante, que não tens
nenhum valor nesta parte do mundo’
(p. 118).

Transformou-se em artista ambulante, pintou o retrato de fazendeiros, vaqueiros e homens rudes, inclusive
de defuntos. Em uma circunstância ao mesmo tempo trágica e fortuita, marcado pela “sede de ser”, tornou-se
fotógrafo e “centro de uma contradição insolúvel” (Santos, 2001, p. 6-7), ao participar como coadjuvante
da Revolução Federalista (1893).

Lanari teve então sua experiência fundamental, quando, aliciado à força por tropas do exército de Júlio
de Castilhos, ao registrar suas façanhas no pampa gaúcho, foi obrigado a documentar, depois de uma
batalha, a degola de um prisioneiro. A última imagem, aquele que o desgraçado levaria para a
eternidade dos séculos foi a de Sandro Lanari, o braço erguido, na atitude de quem deseja impedir algo
(p. 135).
Como comprovação de sua arte e de seu talento, conservou a fotografia, que batizou de A foto do destino.
Decide então que somente Nadar poderia admirar a sua terrível beleza, produto de um momento epifânico,
de revelação irrestrita e, por isso, absolutamente inexplicável pela razão. Fez disso seu objetivo de
vida.

As relações entre a civilização e a barbárie, seus limites quase invisíveis pareciam sintetizados na
foto… O próprio pampa gaúcho, que parecia conter a alma do sul, transformou-se em assombração, uma
contradição entre sonhos de grandeza e destruição, são elos que dominam a narrativa de Assis Brasil.

Na última parte, de volta a Porto Alegre, consagrou-se profissional requisitado, casou, teve filhos,
prosperou e engordou. Retornou então à Europa, onde o aguardava seu passado – e Nadar, cuja reação ao ver a
fotografia que Sandro lhe mostrou foi de desespero. Culpou-o por não ter salvo a vítima fixada em
flagrante terrífico. O herói de Assis Brasil, que ao longo de toda a sua vida perseguira o “ser artístico”,
primeiro na da pintura, depois na fotografia, sentiu-se derrotado. Rasgou e jogou fora a imagem, que
alguns meninos tentaram recompor, revelando a fragmentação da personagem. Com isso chegou-se ao cerne da
preocupação do autor: o sentido da vida e a questão da ética aplicada ao cotidiano.

Denominado pelo próprio autor de “exercício de essencialidade”, O pintor de retratos, ao
relacionar dois universos oitocentistas diferentes, o da Europa e o da América, centrado na biografia de
um homem, vem igualmente lembrar que foi o olhar estrangeiro o primeiro a interpretar o Brasil. O
desembarque dos europeus no Novo Mundo suscitou diferentes reações, desde o maravilhamento e o
entusiasmo com que Cristóvão Colombo celebrou o encontro com os indígenas, até os menos entusiasmados
alertas provenientes dos cronistas portugueses.

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