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O Presidente Negro, de Monteiro Lobato

by Lucas Gomes

O Choque das Raças ou O Presidente Negro

, foi o único
romance adulto escrito por Monteiro Lobato, e publicado em 1926 em folhetins
no jornal carioca “A Manhã”. Este livro tinha o subtítulo
Romance americano do ano 2228”.

É uma obra duplamente curiosa: primeiramente por se tratar de uma ficção
científica, gênero pouco cultivado entre os escritores brasileiros;
e em segundo lugar porque em sua trama retrata o debate científico e
intelectual vigente nas primeiras décadas do século XX.

Basicamente a história gira em torno de três personagens: Ayrton,
o medíocre funcionário de um escritório; Benson, o sábio
que cria o Porviroscópio, uma máquina capaz de mostrar os acontecimentos
futuros; e Miss Jane, a bela e inteligente filha de Benson.

Escrito em primeira pessoa, Ayrton revela a vida e as ambições
de um homem do período conhecido como entre-guerras. Vive o personagem
na cidade do Rio de Janeiro, então capital federal e revela as ambições
de um classe média típico.

O livro inicia com reflexões de Ayrton, dividindo o homem urbano, entre
os que possuem automóvel e os que não possuem. Já fica
bem evidente o poder e status que esse veículo revolucionário
proporcionaria – e os conflitos urbanos que igualmente adviriam da indústria
automobilística. Vale lembrar que o Brasil, em 1926, era um país
essencialmente agrário, vivendo ainda o pacto da política café
com leite. Somente em 1930, Getúlio assumiria o poder, reformando o Brasil,
tornando-o urbano. Os anos vinte do século passado assistiram à
grande revolução do rádio – que seria incrementado
no governo de Getúlio e atingira o apogeu no final dos anos 30, declinando
a partir dos anos 50, com o surgimento da televisão.

Monteiro Lobato prevê, curiosamente, alguns aspectos da tecnologia,
partindo das ondas de rádio: o sistema de votação, os jornais
diários, a comunicação imediata, tudo isso se faria por
ondas de radiação. Não consegue, portanto, imaginar a transmissão
da imagem. O homem não teria mais a necessidade de deslocar-se, pois
faria grande parte de suas tarefas diretamente de casa.

O livro, além da tecnologia, aborda aspectos raciais: a cisão
da América entre negros e brancos. No tom do livro, ficam evidentes ainda
as mazelas provocadas pela escravidão na cultura americana – mais
propriamente o ódio racial ainda pungente. Não contava Lobato
com os avanços revolucionários atingidos nos anos 60 desse século,
que culminaram na ascensão social e política do negro, representada
na eleição do presidente Obama.

Era também impossível para o autor prever a invasão latina,
que reconfigura a paisagem americana, à medida que as gerações
de latinos se convertem de mão de obra de baixa qualidade para profissionais
requisitados e importantes. Nesse sentido, a eugenia é desdobrada na
obra. Lembremos que a pureza ariana seria pedra de toque dos nazistas.

A América passaria, ao longo dos anos assinalados por Lobato, por um
processo de pureza, no qual as prostitutas, os tarados, os deficientes seriam
paulatinamente eliminados da sociedade, já no nascimento. Essa pureza
eugênica de Lobato não contava com a invasão latina que,
ao contrário, latinizou a cultura americana.

Á semelhança de 1984, de George Orwell, Monteiro Lobato prevê
o futuro com maior intervenção do estado. Ao contrário
de Orwell cujo estado é autoritário e ditatorial, o brasileiro
via a democracia, com eleições livres, ainda como método.
Os partidos políticos se intercalam no poder, o que possibilita a ascensão
do presidente negro. De qualquer sorte, o planejamento familiar, por imposição
autoritária do estado, é determinante nessa nova sociedade imaginada
por Lobato. Apenas as famílias autorizadas podem procriar, para manter
a pureza da raça. Os crimes, a pobreza, enfim, todos os problemas tidos
e havidos no mundo atual, são vistos na obra como decorrência do
problema racial, e apenas a eugenia poderá consertar isso. Essa era uma
idéia vigente na época, e muito bem exposta pelo autor.

A questão feminina igualmente é abordada no livro – a
mulher torna-se totalmente independente do homem, possui trabalho, status social
e igualdade em relação ao macho. É bom lembrar que em 1926
a mulher brasileira ainda não tinha direito ao voto, direito adquirido
apenas no pós-guerra.

Ao falar do futuro, Monteiro Lobato dá vazão a toda a sua criatividade
e, por que não dizer, preconceito. Imagina um futuro onde os jornais
não serão mais lidos no seu formato tradicional, em papel, mas
em monitores luminosos existentes em cada casa (sim, a Internet está
aí!); onde a roda virará peça de museu e onde a eugenia
estará presente no cotidiano das sociedades, moldando pessoas saudáveis
e ordeiras. Ao falar da sociedade estadunidense, Lobato, através da personagem
Miss Jane, falará de uma eleição para a presidência
dos Estados Unidos em que os candidatos serão um conservador branco,
uma mulher com ideais feministas e um negro (isto lembra alguma coisa?). Em
O Presidente Negro esta eleição acontece no ano de 2228,
em nosso mundo real as atuais prévias eleitorais nos Estados Unidos têm
como candidatos um conservador branco (John McCain), um negro (Barack Obama),
e uma mulher (Hillary Clinton); cenário bastante próximo àquele
pintado por Lobato no romance que publicou em 1926.

No romance os personagens são mantidos na década de 20 do século
passado. O aparelho que reúne as condições mundiais atuais,
equaciona-as e permite ver numa tela o que ocorrerá na data e local selecionados
pelo usuário. O princípio nada mais é do que a lei de causa
e efeito. Todavia, sabe-se lá por que motivo, Lobato fez seu Professor
destruir a máquina antes de morrer, de forma que na maior parte do romance
é Miss Jane quem relata o que viu, e isso tornou a narrativa um pouco
cansativa.

As previsões apresentadas no texto mesclam-se entre as viáveis
e as puramente fantasiosas. Entre as primeiras encontra-se o trabalho à
distância, que faria muitas pessoas trabalharem em casa e enviarem à
empresa o serviço pronto mediante meios eletrônicos; jornais eletrônicos
com noticiário em tempo real; eleições rápidas e
mediante votos enviados à distância. Já as fantasiosas abrangem
o desdobramento do homem, de modo que o indivíduo pudesse ouvir coisas
distintas com os dois ouvidos e ver coisas diversas com os dois olhos e movimentar-se
de forma diferente com cada perna e cada braço; a substituição
do povo francês pelo mongol; a criação do Teatro Onírico,
mediante a fixação dos sonhos em telas; a anexação
do Canadá ao território dos Estados Unidos. É também
imaginado o Intermundane Herald, um jornal que permitiria aos espíritos
virem buscar notícias de seus familiares.

Monteiro Lobato também previu que o então atual Brasil seria
dividido. Uma parte se tornaria independente para então anexar a Argentina,
o Paraguai e o Uruguai e formar a avançada e eficiente República
do Paraná. Na outra parte, a ocupação principal seria discutir
“sistema de voto e a colocação dos pronomes da semi-morta
língua portuguesa”.

O principal do romance, no entanto, refere-se aos Estados Unidos. Duas principais
questões, a feminista e a racial, cujos conflitos agravaram-se no palco
da eleição presidencial de 2228, como já citado, disputada
pelo candidato branco Kerlog, pela feminista Evelyn Astor e pelo negro Jim Roy.

O feminismo é o aspecto menos preocupante. Lobato destila nas teorias
feministas vindouras sua implicância com as teorias & feministas pretéritas.
Estas, segundo ele, deixaram de ser mulheres, mas não conseguiram tornar-se
homens. A tese central é de autoria da fictícia Miss Elvin, segundo
quem a mulher não é a parceira natural do homem, mas outra espécie
de vaga semelhança com o Homo sapiens, por ele sequestrada em
tempos recuados. Promovida a cisão sexual, a raça branca perdeu
a eleição e a doutrina foi abandonada tanto por necessidade política,
quanto pela saudade das mulheres de seus parceiros.

A outra questão é o embate racial, relevante o suficiente para
servir de subtítulo ao romance. Se a humanidade fosse dividida em raças,
e estas fossem constrangidas a conviver num território comum, duas seriam
as saídas: a miscigenação ou a seleção. A
solução brasileira, na realidade e na ficção, foi
a miscigenação, criticada por tirar de cada raça o que
ela teria de melhor e torná-la instável. Nos Estados Unidos fictícios,
a opção foi pela seleção, pela eugenia. As teses
eugênicas prosperaram nos meios brancos e negros. Na prática, os
casais deveriam passar por vários testes antes de serem autorizados a
procriar. Caso alguma criança insistisse em nascer com um defeito físico,
ela seria descartada. Se o transtorno fosse mental e tardiamente manifestado,
a saída estaria na castração.

Quem a eugenia excluiria do meio social sadio? Basicamente, o pobre, o doente
e o vadio, mas a sociedade perfeita obteve a eliminação, entre
outros, dos histéricos, dos criminosos natos, dos místicos e dos
gramáticos. Fortalecida em corpo e inteligência, a população
norte-americana obteve avanços incríveis em todas as áreas.
Embora a população ariana fosse sempre superior, a negra tornou-se
um incômodo crescente, a ponto de se procurar um meio de evitar conflitos.
A chamada solução branca seria o envio compulsório dos
negros norte-americanos para o Vale do Amazonas. A solução negra,
a divisão territorial. Neste impasse, chegou a ocasião da eleição
presidencial. Estando a raça branca cindida pelas feministas partidárias
de Miss Elvin, a candidatura de Jim Roy prosperou e ele foi vitorioso. Diante
do inusitado, o elvinismo é abolido e a raça branca reunificada.
Um conselho racial decide por uma medida drástica oculta pela sugestão
de alisamento do cabelo dos negros.

O Presidente Negro foi escrito no período entre guerras, e é
provável que Lobato tenha reavaliado o que escreveu ao saber das atrocidades
ocorridas menos de vinte anos depois. Pode-se dizer que ele brincou com fogo
e não gostou de saber que queima. Se foi leviano uma vez, dificilmente
seria de novo. Em 10 de novembro de 1947, ele assinou o prefácio para
o já esquecido livro Afinal, quem somos?, de Pedro Granja.

No mundo tão evoluído como o apresentado pelo escritor, é
justamente a questão racial que deveria ficar para trás. O contrário
também é válido: Lobato pode ter querido dizer que o ser
humano é tão tacanho, que apesar da passagem dos séculos
e do avanço cultural e tecnológico, fica entretido com questões
sobre qual raça ou sexo é melhor, qual deve prevalecer, qual deve
ter quotas reservadas em universidade etc. E tais extremos serão alcançados
se agora não for dado um basta nessas trivialidades. Afinal, como ele
explicou no começo do romance, o futuro nada mais é do que a combinação
de fatos presentes.

Paralelamente a esta narração, o romance focaliza o amor de Ayrton
por Jane, e a missão literária do moço: escrever um romance
daquilo que lhe narrava.

Trecho:

XII – A Simbiose Desmascarada

(…)
Do outro lado o senhor Kerlog, presidente em exercício e candidato à
reeleição, só via possibilidade de êxito se obtivesse
o concurso de Jim, como sucedera no pleito anterior.
As melhores estatísticas davam ao Partido Masculino 51 milhões
de votos, ao Partido Feminino 51 e meio e à Associação
Negra, contados os votantes de ambos os sexos, 54 milhões. A próxima
eleição dependeria pois exclusivamente da atitude do grande negro.
– Mis Evelyn Astor! – exclamei. – Lindo nome. Já me estou simpatizando
por essa criatura, que talvez esteja no meu próprio calcanhar. Havia
de ser linda, não?
– De fato, nessa criatura habilíssima, rica de todos os dotes da inteligência,
da cultura e da maquiavélica sagacidade feminina, se juntava um elemento
perturbador, novo no jogo político presidencial: a sua rara beleza física.
Embora, graças á vitória de eugenia, fosse regra a beleza,
em vez de exceção como hoje, mesmo assim a formosura de Miss Evelyn
Astor se destacava de modo obsedante. Ninguém a defrontava sem sentir-se
envolvido por uma aura de harmonia transfeita em força de dominação.
Em todas as épocas as mulheres dotadas de beleza sempre dominaram, atrás
dos tronos como favoritas, na sociedade como cortesãs, no lar como boas
deusas humanas, mas sempre por intermédio do homem – o désposta,
o amante, o marido, detentores em sua qualidade de machos de todas as prerrogativas
sociais. No futuro a dominação da beleza feminina não se
fará mais por intermédio do macho. Era da Harmonia, a beleza se
tornará uma força pura, como pura expressão que é
da harmonia.
Nesse ano de 2228 já a mulher vencera o seu estágio de inferioridade
política e cultural, conseqüência menos duma pretensa inferioridade
do cérebro, como dizia Miss Elvin…
– Mis Elvin?
– Esperre. Menos de uma pretensa inferioridade de cérebro do que de uma
organização cerebral diversa da do homem e, portanto, inapta a
produzir o mesmo rendimento quando submetida ao mesmo regime de educação.
Miss Elvin… Como está assanhado o senhor Ayrton! Não se contentou
com a mulher futura que já lhe dei, Mis Astor, e que outra?
Que ilusão a de Miss Jane! Eu queria apenas, de todas as mulheres passadas,
presentes e futuras, uma só – a que me falava naquele momento, tão
alheia às emoções burbulhantes em meu coração…

Créditos: Colégio Orfeu | Ricardo de Mattos – Digestivo
Cultural | Viegas Fernandes da Costa, Historiador e escritor, autor
de Sob a Luz do Farol (2005) e De Espantalhos e Pedras Também
se Faz um Poema
(2008) | Curso Pré-Vestibular Objetivo
(Florianópolis)

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