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O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira

by Lucas Gomes

Em 1979, Fernando Gabeira lançou o livro O que é isso, companheiro?, em
que buscou compreender o sentido de suas experiências – a luta armada, a militância
numa organização clandestina, a prisão, a tortura, o exílio – e no qual elaborou,
para a sua e para as gerações seguintes, um retrato autêntico e vertiginoso do
Brasil dos anos 60 e 70.

Relato lúcido, irônico, comovente, o livro se transformou num verdadeiro clássico do romance-depoimento brasileiro e foi filmado pelo
diretor Bruno Barreto.

A obra é a versão de Fernando Gabeira sobre o seqüestro do embaixador norte-americano
Charles Elbrick, em 4 de setembro de 1969, alguns meses após a declaração do Ato
Institucional nº 5, que suspendeu todos os direitos civis dos brasileiros em 1968,
em uma época em que o país se encontrava governado por militares.

O texto é narrado em primeira pessoa para explicitar que aquelas vivências pertenciam
a um eu real, sendo que a elaboração do eu discursivo permaneceu bastante rasa.
A opção pelo uso do “eu” garantiu uma visão mais pessoal dos fatos, mas circunscreveu
a narrativa politicamente engajada às aventuras de um indivíduo politicamente
engajado.

A obra é centrada na figura do próprio Gabeira, que optou por uma perspectiva
mais próxima da experiência do narrador, ainda que pensasse que essa experiência
foi comum a um grupo de pessoas. A partir da visão de um personagem, o livro se
propôs a informar sobre o golpe e os anos de ditadura. A subjetividade do
narrador foi posta em destaque, relativizando os fatos, deixando claro que essa
era sua visão e não uma visão absoluta.

O livro conta como o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) conseguiu realizar
talvez a maior façanha de uma organização tida como de esquerda, para se contrapor
ao período militar vigente. O seqüestro segundo a agrupação, foi a saída encontrada
pelos guerrilheiros para pressionar o governo a liberar 15 políticos esquerdistas
que estavam presos por motivos políticos.

Não é uma obra que defende irrestritamente as ações tomadas pelo MR-8 e sim uma
profunda reflexão não apenas sobre o regime militar, mas também os movimentos
sociais que existiam, e a postura da população perante as deúncias de tortura,
perseguição política e a censura dos meios de comunicação.

No livro, Fernando Gabeira está sempre questionando sua ação dentro do movimento,
ele fez críticas e mostrou clareza ao questionar o que estava errado no movimento
de esquerda brasileira. Isso não ocorreu porque ele apresentou superioridade em
relação aos outros e sim porque o livro foi escrito dez anos depois dos acontecimentos
narrados. Nos anos de chumbo, Gabeira pensava igual aos outros companheiros, que
desejavam fazer a sonhada “Revolução”.

A anistia do Governo do General João Baptista de Figueiredo, trouxera muitos ex-guerrilheiros
de volta ao país, entre eles, o escritor Fernando Gabeira. Com a anistia, os exilados
em outro país: jornalistas, ex-militantes de esquerda, escritores, tiveram a chance
de fazer com que suas vozes silenciadas por um longo período, fossem ouvidas novamente.
Com a liberdade de expressão, produzindo literatura, o escritor Fernando Gabeira
deu evidentes sinais de resistência ao regime militar implantado na época em que
foi obrigado a se exilar em outro país; as imposições políticas, os desagrados
de como esse regime impunha a cultura brasileira à censura; a violência contra
o povo que se manifestava nas ruas contra toda uma sociedade desigual:

No instante em que Aragão saia no seu carro preto, possivelmente Gregório Bezerra, o líder camponês pernambucano estava sendo atado
ao jipe do coronel Ibiapina e seria arrastado pelas ruas. O sapateiro Chicão estava tentando escapar, às pressas, de Governador
Valadares, onde os fazendeiros fuzilavam sem vacilar.
(p.23).

Na afirmativa acima, pode-se perceber que o escritor optou por traduzir os problemas da sociedade, substituiu a voz do sujeito
(ele, o escritor e jornalista), pela do oprimido (o líder camponês e o sapateiro), o povo, a massa que sempre esteve em desvantagem,
excluído pela sociedade dominante.

Nessa perspectiva, a literatura produzida por Fernando Gabeira alia-se aos sujeitos
(ele, o escritor e o povo) que manifestavam suas inquietações e necessidade de
ganhar visibilidade numa sociedade que lhes era injusta.

Numa outra passagem do texto, transcrita abaixo, é possível detectar a subjetividade do escritor:

Tudo era mágoa de quem não se conformava com o desfecho. O melhor talvez fosse tentar o que se passava. Goulart compreendeu que
estava perdido e resolveu ir para o Uruguai, certo de que o golpe era temporário, que mais tarde, seria chamado para ocupar
seu papel na vida política do país. Quem era eu para entender as coisas profundamente? Estava desarmado teoricamente, ressentido,
e não outro caminho na nossa frente, exceto prosperar e esquecer o baque que o país estava sofrendo
. (p.27)

Nessa passagem, o escritor relativizou os fatos, ele expressou a sua visão, não
passou para o leitor que é uma visão absoluta quando diz “Quem era eu…”. A linguagem
do escritor costurou todo um tecido que nos levou a refletir sobre os caminhos
e descaminhos da história recente do país.

Como já visto, o escritor optou em fazer sua narrativa em primeira pessoa,
para ir reconstituindo a memória daquilo que experenciou, que viveu dentro da
história política do país até 1968.

(…) As pessoas estão seguras de si, estão tranqüilas, mas quando partem para o exílio estão tristes também. Bastava surpreender
qualquer um deles distraídos para captar um olhar vazio, uma cabeça que se abaixa… Mas aquilo era o Brasil, eu não era um personagem
e havia muito o que fazer para estar à altura dos amigos que partiam
(p.39)

Na afirmativa acima, temos a recordação individual do escritor. Um homem narrando
sua história, a história de um grupo em que também ele se inscrevia na grande
história dos exilados, por causa do autoritarismo da época.

Com o passar dos anos foi possível detectar a experiência pela qual havia passado
o escritor, que foi nos situando em suas lembranças dentro do movimento histórico.Era
o indivíduo que constatou naquele momento que na pirâmide social daquele período,
estava em posição inferior e que acabou sendo “expulso” de seu próprio país.

Ao fazer a leitura da obra O Que é Isso Companheiro? é possível compreender
que ao longo da narrativa alguns aspectos da constituição da memória coletiva
de um grupo e individual do escritor. Trata-se de uma narrativa de cunho memorialista,
realista de uma história recente do país e também o que chama a atenção é o lugar
por excelência onde a vida se protifica.

A escrita de Fernando Gabeira permitiu a ocupação de vários lugares – auto, protagonista,
narrador – o escritor dentro da obra objetiva traça relações entre memória, narração
e escritura/literatura. Ao mesmo tempo em que narra, o narrador se dobra sobre
o ato de recordar, enquanto recorda e escreve, vai passando a limpo os fatos que
viveu.

Na obra destaca-se o uso abundante do condicional. Minimizando assim o caráter
fatual do texto e jogando com o potencial, com aquilo que poderia acontecer. Esse
recurso foi usado, por exemplo, nas cenas de tortura para não descrevê-las diretamente,
evitando o excesso de minúcia que nos romances-reportagem promovem uma verdadeira
retórica do horror. Outra característica do estilo de Gabeira são as frases curtas
e o tom informal, que devem muito ao discurso jornalístico, além do uso freqüente
da segunda pessoa para aproximar o leitor. Essa última opção está relacionada
à necessidade didática de informar uma geração que não vivenciou a ditadura. No
seguinte trecho, Gabeira dirige-se a seu provável leitor:

O amigo (a) talvez fosse muito jovem em 64. Eu mesmo achei a morte de Getúlio um barato só porque nos deram um dia livre na
escola. Um golpe de Estado, entretanto, mexe com a vida de milhares de pessoas. Gente sendo presa, gente fugindo, gente perdendo
o emprego, gente aparecendo para ajudar, novas amizades, ressentimentos…

O relato de Gabeira dá margem a heroicização do personagem-narrador, uma vez que
a história gira em torno de um acontecimento real, como já visto, que foi
o seqüestro do embaixador americano por um grupo de jovens militantes. O heroísmo
só foi amenizado porque a narrativa contou o fracasso de uma empreitada política
e tendeu a relativizar as convicções que guiavam o narrador naquela época. Evidenciou-se
com freqüência as fraquezas do projeto, as fraturas dos grupos, a ingenuidade
dos militantes. Em O que é isso, companheiro? a perspectiva do narrador
é a de um indivíduo com vivências, idéias, sentimentos particulares e, principalmente,
com críticas a respeito de seu papel na história:

Como é que um intelectual pode se negar tão profundamente? Passava os dias lendo jornais, fazendo planos para matar Eduardo e
limpando ad nauseam meu revólver Taurus 38 que jamais disparei contra ninguém, mas que mantinha em um estado impecável, como se me
esperassem, a cada manhã, fantásticas batalhas campais, ali naquele apartamento de Ana, onde o único vestígio de luta eram as camas
desarrumadas com a agitação dos nossos sonhos.

A prosa de Gabeira distancia-se do neonaturalismo dos romances-reportagem por
não aderir a uma versão unificada da situação política dos anos 70. O livro não
segue a tendência principal do romance-reportagem que seria o de produzir ficcionalmente
identidades lá onde dominavam as divisões, criando uma utopia de nação e outra
de sujeito, capazes de atenuar a experiência cotidiana da contradição e da fratura.
Por sua vez, o risco de uma visão mais centrada no personagem-narrador era o de
que se anulasse a pluralidade de vozes, reduzindo tudo à perspectiva de um único
indivíduo.

O livro de Gabeira não é uma exceção no que diz respeito ao caráter monológico
dos textos autobiográficos de ex-exilados ou militantes políticos, em que se destaca,
por exemplo, o fato de que os outros personagens não terem nenhuma profundidade
subjetiva, nenhuma independência em relação à figura central do narrador. E a
própria subjetividade do narrador não é explorada muito além de suas implicações
referenciais.

O narrador autobiográfico centrou seu relato nas experiências vividas por ele
próprio em um período do passado que a distância temporal lhe permitiu abordar
com olhar crítico, mas não colocou em questão a possibilidade de narrar tais experiências.
Se, por um lado, a narrativa autobiográfica ao estilo de O que é isso, companheiro?
consegue expor o caráter contraditório dos acontecimentos, por outro, evita o
problema de como representar, nos limites da linguagem, uma experiência traumática.
Diante de determinadas situações traumáticas – como foram as grandes guerras ou
as ditaduras nos países latino-americanos – os escritores se confrontaram com
o silêncio, desconfiados da linguagem como meio de comunicar a experiência. O
narrador autobiográfico, pelo contrário, acredita na possibilidade de comunicar
uma experiência que sirva de lição para gerações futuras, mas seu relato acaba
transmitindo ao leitor uma redução do trauma à vivência privada do narrador.

Fonte parcial: Sônia Regina dos Santos, Pós-Graduada da Universidade Católica de Petrópolis

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