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O recado do morro (Conto de Corpo de Baile), de Guimarães Rosa

by Lucas Gomes

O recado do morro

é um dos sete contos que compõe o volume Corpo de Baile,
de Guimarães Rosa. Trata-se de uma espécie de alegoria da formação do Brasil.
É uma narrativa mais longa, quase uma novela, que descreve uma viagem de ida e
volta pelo sertão, partindo de uma região central de Minas em direção ao norte
até o Rio São Francisco, quando indica o ciclo do retorno. Caminham em tropa um
naturalista estrangeiro, um religioso e um letrado – ilustrações dos desbravadores
do país. À frente deles, dois homens do interior mineiro, conhecedores da região
e do sertão, servem como guias. A trama irá opor os dois homens simples, por meio
de uma emboscada de morte, que trará àquele espaço uma nova configuração.

A história ilustra o mundo sem lei. No sertão, vigora a regra, e não a lei – a regra da aliança e da
vingança. Para o autor, estão em jogo ali novamente os destinos da civilização e da cidadania brasileira.

O recado do morro, os personagens-viajantes se deslocam pelo interior de Minas e por vários
campos do saber, ao mesmo tempo em que recontam e decifram antigas estórias, relatos da loucura e mitos
anônimos. Nesse conto, uma rede de narradores é estabelecida para passar adiante uma estória que, ao
final, ainda é a mesma embora já seja outra. O recado do morro, ouvido por Gorgulho, é contado para seu
irmão Catraz, que o reconta para o jovem Joãozezim, que o narra para Guégue, o guia que se orienta por
referências móveis.

A partir daí, o recado vira boato e pode ser ouvido no discurso apocalíptico de
Nômini Dômini, nos números inscritos pelo Coletor na parede da igreja, ou na letra
cantada ao violão por Laudelim, até que se torna compreendido por seu destinatário,
o guia Pedro Orósio, que sempre ouvira as diversas variações da mesma história
sem atinar para o fato de que isso era um aviso de sua própria morte. Constituído
pelas relações cooperativas e desarmônicas entre saber e não-saber – entre aquele
que sabe e aquele que não sabe, entre o que cada personagem sabe e as formas como
o sabe e o compartilha -, o conto opera com formas e temas não-excludentes, que
podem ser verificados pelos freqüentes processos de tradução capazes de dar sustentação
a uma poderosa estrutura fractal e em rede.

Apropriando-se de saberes das áreas de Matemática, Medicina, Biologia, Lingüística e da tecnologia de
seu tempo, o conto também recorre aos diferentes saberes do sertanejo, construindo um incessante processo
tradutório entre esses diversos campos. Os saberes acadêmicos, artísticos, religiosos, populares, e
também os não-saberes, presentes em todas essas instâncias, são articulados numa rede discursiva que é a
própria literatura de ficção.

Retomando variadas tradições discursivas – literárias e extraliterárias – o conto lhes permite uma
cooperação desarmônica, criando a tensão narrativa que preside todo texto ficcional.

O conto realiza uma inter-relação entre os relatos dos habitantes do lugar
e a estória dos que habitam a obra do autor. Parte deste conto se passa em Buritizeiro,
na vertente do Formoso.

As descrições da paisagem, do lugar, das veredas, dos chapadões e do povo sertanejo se fundem com a
memória dos habitantes do lugar:

Neste conto um pequeno grupo de viajantes estrangeiros via a cavalo pelo sertão para fins de
investigação. Os dois guias do país, os vaqueiros Pedro e Ivo, são inimigos ferozes. Pedro é um Casanova
campesino, que já roubou a muitos colegas as boas graças das suas moças. Presságios sinistros acompanham
a expedição. No seu trajeto encontra um velho alienado, que pretende ter ouvido uma mensagem do monte
próximo. O velho já não consegue lembrar-se do conteúdo da mensagem, apenas recorda, que falava de um
rei. Pedro não dá ouvido ao palavreado do velho, mas a enigmática mensagem vai dando que falar no sertão
e os viajantes ouvem-na com freqüência, em fragmentos confusos. O pressentimento inarticulado de um ato
de violência vai aumentando, quando Ivo, no fim da viagem, convida o seu odiado rival para uma festa de
reconciliação. Na noite da festa os investigadores e seus companheiros reúnem-se numa pequena taberna,
um dos convivas recita uma balada popular, a história do jovem rei, que na viagem de peregrinação a
Belém é atacado e assassinado pelos próprios vassalos. Torna-se clara então a mensagem do monte. Ivo e
seus cúmplices arrastam o Pedro embriagado, e ficamos a saber que não se trata de reconciliação, mas de
um ato de vingança traiçoeiro. Mas eis que esta expectativa é repentinamente contrariada: sussurrando os
versos da balada, Pedro de relance compreende a intenção dos seus companheiros, atira-se a eles e
consegue pô-los em fuga.

Nessa novela, o Morrão torna-se “belo como uma palavra” e porta-voz de um recado para a personagem
principal, Pedro Orósio, guia de uma comitiva que parte de Pirapora para Cordisburgo.

À medida que a comitiva avança sertão adentro, o recado vai sendo passado de boca em boca a personagens
excêntricos: bobos, loucos, lunáticos, fanáticos religiosos e um menino, até chegar aos ouvidos do músico
Laudelim, que transforma a mensagem numa canção. Traduzido para a música, o recado é então compreendido
por Pedro Orósio, a tempo de receber o aviso do Morro sobre as intenções de seus falsos amigos.

O morro da Garça, em Minas Gerais, assume papel de destaque no conto, ao enviar
mensagem de morte à personagem principal do conto, captada por um visionário sertanejo
e afinal percebida a tempo por tal personagem.

Com a poesia que lhe é peculiar, Guimarães Rosa transformou o Morro da Garça,
a paisagem sertaneja, as estórias e os costumes do povo do sertão em obra de arte,
fazendo do espaço físico, cenário para seus personagens, lugares imaginados, “mais
ou menos como a gente vive”. O conto retrata o desdobramento de uma história,
contada e recontada sete vezes. No conto o vaqueiro Pedro Orósio faz uma viagem
pelo sertão e alguns de seus companheiros preparam uma cilada para matá-lo. Ele
só escapa porque o morro lhe manda uma mensagem construída ao longo de uma semana
(de sete etapas). Pedro com pedra, Orósio como oros (montanha), também conhecido
como Pê-boi, pé na terra. Da terra recebe o recado. Durante a viagem, percorreu
as fazendas de Apolinário, Nhá Selena, Marciano, Nhô Hermes, Jove, Dona Vininha
e Juca Saturnino. Em companhia dos Vaqueiros Helio Dias Nemes, João Lualino, Martinho,
Zé Azougue, Jovelino, Veneriano e Ivo Crônico. Assim enfilerados, dá pra perceber
o que no texto vem diluído: a alusão aos dias da semana (tais como são nomeados
em outras línguas) e aos deuses aos quais são dedicados: Apolo / Sol; Selene /
Lua; Marte, Mercúrio / Hermes; Júpter, Vênus, Saturno / Cronos. O que acontece
em cada fazenda tem a ver com cada deus dominante (beleza, festa, guerra, comércio
/ mensagem, poder e fartura, amor, tempo). Mas a terra escapa. O recado é decifrado
por Pedrão Chãbergo (chão e berg, rocha em alemão).

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