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O sertão vai virar mar, de Moacyr Scliar

by Lucas Gomes

Em O sertão vai virar mar, o autor, Moacyr Scliar, faz uma releitura e
revisão de um dos fatos mais marcantes de nossa história contemporânea: a saga
de Antônio
Conselheiro
e os trágicos acontecimentos de Canudos.
O autor, com muita propriedade e técnica literária, desenvolve um enredo, usando
adolescentes de uma escola para mostrar, de uma forma bem mais simples do que
a usada por Euclides da Cunha em Os
Sertões
, a grande tragédia ocorrida no sertão baiano.

Para esta releitura, Scliar narra a história de um grupo de alunos que vai promover o julgamento de
Antônio Conselheiro na semana cultural da escola e recebe o auxílio do professor de História, que lhe
apresenta o livro de Euclides da Cunha. Encantados pela maneira como o povo do sertão é descrito, os
estudantes “devoram” o livro.

O Sertão Vai Virar Mar é agitado por dois eventos que dão suspense à trama. Primeiro, os jovens
conhecem Zé, um menino misterioso que sabe tudo sobre Os Sertões. Em seguida, toda a cidade é abalada com
a chegada de Jesuíno Pregador, que arrebanha milhares de fiéis em uma favela. O fato logo chama a atenção
dos poderosos da cidade, que pressionam a polícia a reprimir o pregador.

Enquanto Euclides da Cunha, com seu português clássico, bem acima da média popular, faz uma descrição
jornalística rica em detalhes e pormenores, mostrando perfeitamente como é o sertanejo e seu habitat,
Moacyr Scliar, de uma maneira mais acessível ao público juvenil, narra os mesmos fatos, dando maior ênfase
à mensagem a se extrair da história, e menor destaque aos detalhes dos acontecimentos. Estas duas obras
escritas em épocas tão diferentes tratam da mesma trama de maneiras bem diversas, mas a adaptação mantém a
essência da original, conta a mesma história, só que contextualizada na realidade das personagens de O
sertão vai virar mar
. Nesta, o autor recria um beato com as mesmas características religiosas do beato
de Euclides da Cunha, inserido na época em que se passa a trama da história adaptada. Scliar ainda coloca
no enredo um filho adolescente do religioso, fazendo parte do grupo de estudantes que estudará e discutirá
Os Sertões durante o desenrolar da história.

Scliar, quando em O sertão vai virar mar, faz a releitura de Os Sertões, o faz com uma
linguagem e vocabulário bem simples, o que permite um entendimento claro do que foi este fato histórico,
tão relevante de nossa história. Scliar, em seu livro, de uma maneira bastante clara, criou um enredo
ficcionista que se assemelha ao de Os sertões e, no desenrolar da trama, conta a história de Canudos e seu
beato. As diferenças no vocabulário e na linguagem dos dois livros são enormes e podemos comprová-las em
passagens como:

Decorre isto de sua situação topográfica. A sublevação de rochas primitivas que se
alteiam aos lados, para norte e para leste, levanta-se como anteparo aos ventos regulares, que até lá
progridem e torna-se condensador admirável dos escassos vapores que ainda o impregnam…
” Cunha (2002,
p. 229)

No lugar chamado Buraco – uma enorme vila popular que tem mais de trinta anos, as casinhas até
hoje são humildes, as condições de vida, muito duras. Em outras cidades, bairros assim são o reduto de
traficantes, de criminosos. Não em Sertãozinho de Baixo…
” Scliar (2003, p. 11)

Estes dois pequenos trechos têm em comum, o fato de serem, nas duas obras as primeiras descrições do local
onde habitava o beato. Em Os sertões é uma descrição rebuscada e detalhada do Monte Santo ou Canudos
e seu posicionamento geográfico; já em O sertão vai virar mar é um relato claro e simples do lugar
chamado “Buraco”, bairro da cidade de Sertãozinho de Baixo, onde mora o beato da história contemporânea.
Neste aspecto e em muitos outros, as duas obras são radicalmente diferentes. Época, costumes, estilo de
vida; numa campestre, noutra urbano e outras divergências são contrapostos no livro de Scliar e
assimilados primeiro por suas personagens e depois pelos leitores infanto-juvenis que estão na mesma faixa
etária dos protagonistas do livro.

Se é certo que as duas obras têm suas diferenças, também é verdade que elas possuem
pontos importantíssimos em comum. As fortes denúncias de injustiças sociais são
marcantes nos dois livros. Euclides da Cunha foi ímpar ao retratar toda a trama
de Antônio Conselheiro, desde seus infortúnios no Ceará, onde fora um pacato professor
de escola primária, até o apogeu de seu ministério no sertão da Bahia. Os sertões
mostrou como o misticismo e o político se emparelham e se misturam em passagens
como:

“Pregava contra a República, é certo. O antagonismo era inevitável. Era
um derivativo à exacerbação mística; uma variante forçada ao delírio religioso
”
Cunha (2002, p. 190).

Quando o autor de Os sertões se embrenhou no interior, sua missão era fazer
um trabalho de cobertura jornalística sobre os conflitos em Canudos, mas acabou
retratando a vida do sertanejo, suas crenças, dificuldades, seu sofrimento, suas
carências físicas e morais. Poucos retrataram o sertão nordestino e seu povo como
Euclides da Cunha. Moacyr Scliar, relembrando as denúncias do grande jornalista,
também fez as suas: foram novas denúncias, mas sobre os mesmos problemas delatados
em Os sertões. Mudou-se o cenário, a época mas os problemas são os mesmos:
injustiça social, desigualdade na distribuição de renda, descaso do poder público
com relação às dificuldades do povo e muitos outros aspectos que vão aflorando
da trama de Moacyr Scliar, como fizeram anteriormente na de Euclides da Cunha.
O adaptador nos mostra “… O que me deixou indignado foi a maneira com que
os responsáveis pela obra nos trataram, a mim e aos outros. Nós éramos simplesmente
obstáculos que tinham que ser removidos. Mas aquelas terras, gente, eram a minha
vida, a nossa vida.
” Esta denúncia, como tantas outras são comuns tanto na
original, como na obra adaptada.

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