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O tesouro, de Eça de Queirós

by Lucas Gomes

Análise da obra

Eça de Queirós, romancista dos maiores, é também um contista que domina as artes de bem tecer uma narrativa breve.

Enredo

O conto O tesouro é uma história de astúcia e crimes. A ação concentra-se em torno de uma “viagem” de três irmãos pela floresta em busca de um tesouro perdido, tendo como tema principal a ambição desmedida e resumindo a moral da história ao sábio ditado popular “quem tudo quer tudo perde”.

Tal como Shakespeare, também Eça nos conta uma história com humor, imaginação e alguma poesia, e também algo de trágico e amargo. No entanto, por detrás do trágico, há um prazer do lúdico, da dimensão onde se pode desvendar, através das personagens, uma visão negra da humanidade e das relações entre os indivíduos.

Ação

– Introdução (dois primeiros parágrafos): apresentação das personagens e descrição do ambiente em que vivem.

– Desenvolvimento (até ao penúltimo parágrafo): descoberta do tesouro, decisão de partilha e esforços para eliminar os concorrentes.

Conclusão (dois últimos parágrafos): Situação final.

Se considerarmos a história dos “três irmãos de Medranhos”, estamos perante uma narrativa fechada ; ao invés, se nos centrarmos sobre o “tesouro”, teremos de considerar a narrativa aberta , dado que ele continua por descobrir (“…ainda lá está, na mata de Roquelanes.”).

Por sua vez, o desenvolvimento tem também uma estrutura de três fases: 1. A descoberta do tesouro e decisão de o partilhar; 2. Rui e Rostabal decidem matar Guanes; morte de Guanes; morte de Rostabal; 3. Rui apodera-se do cofre e morre envenenado.

A articulação das sequências narrativas (momentos de avanço) faz-se por encadeamento. Os momentos de pausa abrem e fecham a narrativa e interrompem regularmente a narração com descrições (espaço, objetos, personagens) e reflexões.

Personagens

Rui: Gordo e ruivo. Avisado, calculista, traiçoeiro.

Guanes: Pele negra, pescoço de grou, enrugado. Desconfiado, calculista, traiçoeiro.

Rostabal: Alto, cabelo comprido, barba longa, olhos raiados de sangue. Ingênuo, compulsivo.

Predomina o processo de caracterização direta, visto que a maior parte das informações nos são dadas pelo narrador. No entanto, os traços de traição e premeditação de Rui e Guanes são deduzidos a partir do seu comportamento (caracterização indireta).

As personagens começam por ser apresentadas coletivamente (“Os três irmãos de Medranhos…”), mas à medida que a ação progride, a sua caracterização vai se individualizando, como que sublinhando o predomínio do egoísmo individual sobre a aparente fraternidade.

Tempo

A referência ao “Reino das Astúrias” permite localizar a ação por volta do século IX, já que os árabes invadiram a península ibérica no século VIII (a ocupação iniciou-se em 711 e prolongou-se por vários anos, sem nunca ter sido concluída); por outro lado, no século X encontramos já constituído o Reino de Leão, que sucedeu ao das Astúrias.

A ação decorre entre o inverno e a primavera, mas concentra-se num domingo de primavera, estendendo-se de manhã até à noite. O inverno está conotado com a escuridão, a noite, o sono, a morte. E é no inverno que nos são apresentadas as personagens, envoltas na decadência econômica, no isolamento social e na degradação moral (E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos.). Por sua vez, a primavera tem uma conotação positiva, associa-se à luz, à cor, ao renascimento da natureza, sugere uma vida nova, enquanto o domingo é um dia santo, favorável ao renascimento espiritual.

A ação central inicia-se na manhã de domingo e progride durante o dia. À medida que a noite se aproxima a tragédia vai se preparando. Quando tudo termina, com a morte sucessiva dos irmãos, a noite surgindo (Anoiteceu.).

A ação estende-se do inverno à primavera e o seu núcleo central concentra-se num dia, desde a manhã até à noite. A condensação de um tempo da história tão longo (presumivelmente três ou quatro meses) numa narrativa curta (conto) implica a utilização sistemática de sumários ou resumos (processo pelo qual o tempo do discurso é menor do que o tempo da história). Nos momentos mais significativos da ação (decisão de repartir o tesouro e partilha das chaves, bem como a argumentação de Rui para excluir Guanes da partilha) o tempo do discurso tende para a isocronia (igual duração do tempo da história e do tempo do discurso), sem no entanto a atingir.

É possível também identificar no texto um outro processo de redução do tempo da história, que é a elipse (eliminação, do discurso, de períodos mais ou menos longos da história). A parte inicial da ação é localizada no inverno (…passavam eles as tardes desse Inverno…) e logo a seguir o narrador remete-nos para a primavera (Ora, na Primavera, por uma silenciosa manhã de domingo…).

Quanto à ordenação dos acontecimentos, predomina o respeito pela sequência cronológica. Só na parte final nos surge um recuo no tempo, quando o narrador abandona a postura de observador e adota uma focalização onisciente, para revelar o modo como Guanes tinha planejado o envenenamento dos irmãos, manifestando dessa forma a natureza traiçoeira do seu caráter.

Freqüentemente, o recuo do tempo permite esconder da narração pormenores importantes para a compreensão dos acontecimentos, mantendo assim um suspense favorável à tensão dramática.

Espaço

A ação é localizada nas Astúrias e decorre, a parte inicial, nos “Paços de Medranhos” e, a parte central, na mata de Roquelanes. Somente o episódio do envenenamento do vinho é situado num local um pouco mais longínquo, na vila de Retorquilho.

O paço dos Medranhos é descrito negativamente, por exclusão (…a que o vento da serra levara vidraça e telha…), e os três irmãos circulam entre a cozinha (sem luz, nem comida) e a estrebaria, onde dormem, para aproveitar o calor das três éguas lazarentas.

O fato de três fidalgos passarem os seus dias entre a cozinha e a estrebaria, os lugares menos nobres de um palácio, é significativo: caracteriza bem o grau de decadência econômica em que vivem. A miséria em que vivem é acompanhada por uma degradação moral que o narrador não esconde (E a miséria tornara estes senhores mais bravios que lobos.).

De igual modo, o espaço exterior, a mata de Roquelanes, não é um simples cenário onde decorre a ação. As descrições da natureza têm também um caráter significativo. A “relva nova de Abril”, manifestação visível do renascimento da natureza, sugere o renascimento espiritual que as personagens, como veremos, não são capazes de concretizar. Do mesmo modo, a “moita de espinheiros” e a “cova de rocha” simbolizam as dificuldades, os sacrifícios, que é necessário enfrentar para alcançar o objeto pretendido — são obstáculos que é necessário ultrapassar.

A natureza, calma, pacífica, renascente (…um fio de água, brotando entre rochas, caía sobre uma vasta laje escavada, onde fazia como um tanque, claro e quieto, antes de se escoar para as relvas altas.), contrasta com o espaço interior das personagens, que facilmente imaginamos inquietas, agitadas, perturbadas pela visão do ouro e ansiosas por dele se apoderarem, com exclusão dos demais. Enquanto isso as duas éguas retouçavam a boa erva pintalgada de papoulas e botões-de-ouro. Esse contraste tinha já sido posto em evidência antes, depois dos três terem contemplado o ouro (… estalaram a rir, num riso de tão larga rajada que as folhas tenras dos olmos, em roda, tremiam…). E, quando Rui e Rostabal esperam, emboscados, o irmão, um vento leve arrepiou na encosta as folhas dos álamos, como se a natureza sentisse o horror do crime que estava para ser cometido. Depois de assassinado Guanes, os dois regressam à clareira onde o sol já não dourava as folhas.

Simbologia

À leitura do conto ressalta de imediato a referência insistente ao número três, de todos os números aquele que carrega maior carga simbólica.

Desde logo, são três os irmãos; e o três é também um símbolo da família — pai, mãe, filho(s). Mas aqui encontramos uma família truncada, imperfeita — nem pais, nem filhos, apenas três irmãos. Não há, aliás, a mais leve referência aos progenitores dos fidalgos de Medranhos, como se eles nunca tivessem existido. Essa ausência da narração é, de certo modo, um símbolo da sua ausência na educação dos filhos. Sem a presença modeladora dos pais (ou alguém que os substituísse), Rui, Guanes e Rostabal dificilmente poderiam desenvolver sentimentos humanos: vivem como “lobos”, porque — imaginamos nós — cresceram como lobos.

Eles próprios não foram capazes de constituir uma família verdadeira, do mesmo modo que os três, apesar dos laços de sangue e de viverem juntos, não formam uma família e sempre pela mesma razão: porque são incapazes de sentir o amor.

O tesouro está guardado num cofre . Um cofre protege, preserva, permite que o seu conteúdo permaneça intocado ao longo do tempo. A sua utilização é significativa do caráter precioso do conteúdo. Igualmente significativo é o fato de o cofre ser de ferro, material resistente, simultaneamente, à força e à corrupção.

Três fechaduras — novamente o número “três”! — preservam o conteúdo do cofre (Da curiosidade? Da cobiça? Da apropriação indevida?…), mas três chaves permitem abri-lo sem dificuldade. Note: nenhuma delas, só por si, mas as três em conjunto. O simbolismo aqui é evidente. Só a cooperação dos três proprietários permite aceder ao tesouro. É pela solidariedade, pela cooperação, pela convergência de interesses e esforços que é possível alcançar o “tesouro” por todos almejado. Foi apenas porque, momentaneamente, os três cooperaram, que lhes foi permitido contemplar o “tesouro”. E porque não souberam manter esse espírito de cooperação, não lhes foi permitido possuir o “tesouro”.

E quando Rui expõe a estratégia a seguir, o número “três” volta a aparecer insistentemente (…três alforges de couro, três maquias de cevada, três empadões de carne e três botelhas de vinho.), como que a sublinhar o irredutível individualismo que os vai conduzir à tragédia.

Por outro lado, o ouro, material precioso e incorruptível, é ele próprio símbolo de perfeição. Obviamente, para além do seu valor material, simboliza a salvação, a elevação a uma forma superior de vida, mais espiritual, menos animal. É esse o verdadeiro bem, o verdadeiro tesouro. Os fidalgos de Medranhos vivem mergulhados na decadência material e na degradação moral. Não se lhes conhece uma atividade útil, um sentimento mais elevado, um afeto. Vivem com os animais e como animais. Mas para eles, como para todo o ser humano, há uma possibilidade de redenção. O “tesouro” está ali, à sua frente, é possível alcançá-lo; mas, para isso, é necessário enfrentar dificuldades, largar a cobiça, vencer o egoísmo, criar laços de solidariedade e verdadeira fraternidade.

Frequentemente, na narrativa, a tragédia é anunciada antecipadamente por indícios, que as personagens ignoram, mas não passam despercebidos ao leitor atento. É o caso da cantiga que Guanes entoa ao dirigir- se à vila e continua a cantarolar quando regressa:

Olé! Olé!
Sale la cruz de la iglesia,
Vestida de negro luto…

A “cruz” e o “negro luto” são referências claras à morte que Guanes planeia para os irmãos. Mas ironicamente prenuncia também a sua própria morte. Nenhuma das três personagens é capaz de reconhecer esse sinal.

Outro indício trágico são as duas garrafas que Guanes trouxe de Retorquilho. Rui estranha o fato, mas não suspeita da traição. Se as personagens fossem capazes de interpretar esses indícios poderiam fugir ao destino. Mas são incapazes disso e é desse lento aproximar do desenlace e da incapacidade das personagens para o evitar que resulta a dimensão trágica da narrativa.

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