Home EstudosLivros O vendedor de passados, de José Eduardo Agualusa

O vendedor de passados, de José Eduardo Agualusa

by Lucas Gomes

O romance, escrito por José Eduardo Agualusa e publicado em 2004, é uma imensa sátira política e social da Angola atual.

Em O Vendedor de Passados, Agualusa conta a história de Félix Ventura, um albino que tem como
profissão inventar passados gloriosos aos seus clientes.

Em um enredo que mistura “antigamentes” fictícios com realidades não menos verossímeis, o leitor acompanha
o drama de uma osga que convive dramaticamente com as lembranças da sua encarnação humana, a insistência
de um homem em perseguir e validar o passado comprado, e a agitação constante mas sutil de uma Luanda
habitada por valas de lixo, por loucos e por elites que o são por engano.

Uma idéia perigosamente interessante, extravagante, misteriosa… que mistura as metáforas e analogias
com o Mundo Natural.

Povoado de personagens pitorescos como a osga, um assombro, sempre atenta a tudo e a recordar o tempo
em que era humana.

Temática

No livro também surge um tema caro à literatura universal: a meta-literatura. Por exemplo, contar a
história de um escritor. Meta-literatura um tanto alterada em O Vendedor de Passados, porém
presente. O ofício de criar histórias e personagens de Félix Ventura para seus clientes é em muito
similar ao de um escritor.

O tema recorrente do autor está presente também nesse romance: a história de Angola, sua herança de
Portugal e a relações existentes entre todos os países ligados por esse idioma comum, a língua
portuguesa.

Enredo

Nesta história, um albino morador de Luanda, capital de Angola, elabora árvores genealógicas em troco de
pagamento. Uma atividade um tanto quanto estranha exercida por um esquisito personagem principal – o
vendedor de passados falsos, chamado Félix Ventura e uma lagartixa que, na verdade comanda toda a
narrativa.

Esta, uma osga, espécie de lagartixa, vai contar como um negro albino, Félix Ventura, fabrica histórias
de vida para seus clientes, ou seja, cria uma genealogia de luxo para quem o contrata.

São prósperos empresários, políticos e generais da emergente burguesia angolana que têm um presente e um
futuro próspero, mas falta-lhes um passado que não seja comprometedor. E arquitetar esse passado é uma
empreitada no qual, o personagem principal Felix se encarrega.

Dois seres, um albino e uma osga (lagartixa), vivem à sombra e compartilham vivências, sonhos e criações.
A osga busca na sua pretérita vida humana, vestígios de outra reencarnação, a fim de compreender suas
emoções e reconhecer os vestígios literários e a sua aguçada percepção.

A Osga tem um nome. É chamada de Eulálio por Félix, o homem que vende os passados. E ela ela quem vai
narrando a história.

O albino, Félix Ventura, busca a realização de um presente para si alicerçado nos alfarrábios que lhe
serviram de berço.

A relação da osga (Eulálio) com a sua casa é visceral. A osga percebe sua respiração, penetra-a em busca
do útero “O corredor é um túnel fundo, úmido e escuro, que permite o acesso ao quarto de dormir…
A casa é o seu universo possível e seguro, distante dos campos minados de Angola, onde são revelados os
segredos e fantasias que criam o presente para os que buscam novos passados. Também é o ambiente
protegido para o resgate da vida de Eulálio, um ser comum que viveu quase um século na pele de homem sem
se sentir inteiramente humano e que agora se lamenta desses quinze anos com a alma presa ao corpo de
lagartixa.

Felix está muito bem nessa empreitada, leva uma vida razoavelmente confortável até que uma noite essa
rotina é rompida com a chegada de um estrangeiro, fotógrafo de guerra, que quer um passado completamente
novo. De preferência que seja uma identidade angolana. Com o nome recente, José Buchmann, e uma fajuta e
fabulosa árvore genealógica, passa a buscar os personagens a fim de confirmar sua existência fictícia.

José Buchmann procura o seu passado e, à medida que vai sendo criado por Félix Ventura, o encontro com
algumas situações surpreendem com a possibilidade da coincidência com o absurdo.

A busca de sua suposta mãe, a aquarelista norte-americana Eva Mullher, a narrativa do corredor cheio de
espelhos e de sua povoada solidão no apartamento em Nova Iorque, a aquarela encontrada e o anúncio de
sua morte na Cidade do Cabo, tudo vai colorindo e recheando essa nova identidade.

Entre uma venda de passado e suas implicações, são apresentados os problemas de uma osga (fugir de
lacraus, e refrescar-se do calor) e seus sonhos. E temos ainda que contornar o problema de um narrador
animal que age como um ser humano sem uma nítida compreensão animal do mundo.

A lucidez da osga é admirável: A única coisa que em mim não muda é o meu passado: a memória do meu
passado humano. O passado costuma ser estável. Está sempre lá, belo ou terrível, e lá ficará para sempre.

Sua mãe, de Eulálio, aparece em seus sonhos (memórias da vida humana), fala sobre a realidade e o sonho
e aconselha: Nos livros está tudo o que existe, muitas vezes em cores mais autênticas, e sem a dor
verídica de tudo que realmente existe. Entre a vida e os livros, meu filho, escolha os livros.

Outra passagem interessante e que nos chamam a atenção: os inúmeros seres que precisam de uma trajetória
para legitimar as máscaras que vestem demonstram como os personagens históricos são imortalizados com
passados maquiados, enfeitados de fatos falsos, numa ficção memorialista.

Numa das biografias forjadas, Félix se destaca ao criar para um de seus clientes um livro de memórias de
um Ministro (A vida verdadeira de um combatente), que credita a este cliente, homem público, um conjunto
de fatos notáveis para confirmar o personagem idealizado e contextualizado com as suas pretensões
futuras.

Contudo, o aparecimento do mendigo Edmundo Barata dos Reis, comunista assumido, ex-agente e ex-gente nas
palavras do próprio, cria novos rumos para a narrativa.

Os personagens e seus duplos convergirão para um desfecho inusitado, consagrando a narrativa vertiginosa
e poética de José Eduardo Agualusa.

Temos também, para complementar, uma trama de amor: Félix Ventura, vendedor de passados, apaixona-se
por Ângela Lúcia, mulher que gosta de fotografar nuvens.

Trecho do livro

Félix Ventura estuda os jornais enquanto janta, folheia-os atentamente, e se algum artigo lhe
interessa assinala-o a tinta lilás com uma caneta. Termina de comer e então recorta-o com cuidado e
guarda-o num arquivo. Numa das prateleiras da biblioteca há dezenas destes arquivos. Numa outra dormem
centenas de cassetes de vídeo. Félix gosta de gravar noticiários, acontecimentos políticos importantes,
tudo o que lhe possa ser útil um dia. As cassetes estão ordenadas por ordem alfabética, segundo o nome
da personalidade ou do acontecimento a que se referem. O jantar dele resume-se a uma tigela de caldo
verde, especialidade da Velha Esperança, a um chá de menta, a uma grossa fatia de papaia, temperada com
limão e uma gota de vinho do porto. No quarto, antes de se deitar, veste o pijama com tal formalidade
que eu fico sempre à espera de o ver atar ao pescoço uma gravata escura. Esta noite o estrídulo da
campainha interrompeu-lhe a sopa. Isso irritou-o. Dobrou o jornal, levantou-se com esforço e foi abrir
a porta. Vi entrar um homem alto, distinto, nariz adunco, as maçãs do rosto salientes, bigode farto,
curvo e lustroso, como não se usa há mais de um século. Os olhos, pequenos e brilhantes, pareciam
apoderar-se de todas as coisas. Vestia um fato azul, de corte antiquado, que no entanto lhe ficava bem,
e segurava na mão esquerda uma pasta em cabedal. A sala ficou mais escura. Foi como se a noite, ou
alguma coisa ainda mais enlutada do que a noite, tivesse entrado juntamente com ele. Mostrou um cartão
de visitas. Leu alto:

“Félix Ventura. Assegure aos seus filhos um passado melhor”. Riu-se. Um riso triste, mas simpático: “É o
senhor, presumo? Um amigo deu-me este cartão.”

Não consegui pelo sotaque adivinhar-lhe a origem. O homem falava docemente, com uma soma de pronúncias
diversas, uma sutil aspereza eslava, temperada pelo suave mel do português do Brasil. Félix Ventura
recuou:

“Quem é você?”

O estrangeiro fechou a porta. Passeou pela sala, as mãos cruzadas atrás das costas, detendo-se um largo
momento em frente ao belo retrato a óleo de Frederick Douglass. Finalmente sentou-se numa das poltronas
e com um gesto elegante convidou o albino a fazer o mesmo. Parecia ser ele o dono da casa. Amigos
comuns, disse, e a voz fez-se ainda mais suave, tinham-lhe indicado aquele endereço. Haviam-lhe falado
num homem que traficava memórias, que vendia o passado, secretamente, como outros contrabandeiam
cocaína. Félix olhou-o desconfiado. Tudo no estranho o irritava – os modos doces e ao mesmo tempo
autoritários, o discurso irônico, o bigode arcaico. Sentou-se num majestoso cadeirão de verga, no
extremo oposto da sala, como se receasse ser contagiado pela delicadeza do outro.

“Posso saber quem é você?”

Também dessa vez não obteve resposta. O estrangeiro pediu licença para fumar. Tirou do bolso do casaco
uma cigarreira de prata, abriu-a, e enrolou um cigarro. Os seus olhos saltitavam de um lado para o
outro, numa atenção distraída, como uma galinha ciscando entre a poeira. Deixou que o fumo se espalhasse
e o cobrisse. Sorriu num inesperado fulgor:

“Mas diga-me, meu caro, quem são os seus clientes?”

Félix Ventura rendeu-se. Procurava-o, explicou, toda uma classe, a nova burguesia. Eram empresários,
ministros, fazendeiros, camanguistas, generais, gente, enfim, com o futuro assegurado. Falta a essas
pessoas um bom passado, ancestrais ilustres, pergaminhos. Resumindo: um nome que ressoe a nobreza e a
cultura. Ele vende-lhes um passado novo em folha. Traça-lhes a árvore genealógica. Dá-lhes as
fotografias dos avôs e bisavôs, cavalheiros de fina estampa, senhoras do tempo antigo. Os empresários,
os ministros, gostariam de ter como tias aquelas senhoras, prosseguiu, apontando os retratos nas
paredes – velhas donas de panos, legítimas bessanganas –, gostariam de ter um avô com o porte ilustre
de um Machado de Assis, de um Cruz e Sousa, de um Alexandre Dumas, e ele vende-lhes esse sonho singelo.

“Perfeito, perfeito.” O estrangeiro alisou o bigode. “Foi isso que me disseram. Eu preciso dos seus
serviços. Receio aliás que lhe vá dar bastante trabalho.”

“O trabalho liberta”, murmurou Félix. Disse-o talvez para provocar, para testar a identidade do intruso,
mas se era essa a intenção falhou, pois este limitou-se a fazer com a cabeça um gesto de assentimento.
O albino levantou-se e desapareceu na direção da cozinha. Voltou pouco depois segurando com ambas as
mãos uma garrafa de bom tinto português. Mostrou-a ao estrangeiro. Ofereceu-lhe uma taça. Perguntou:

“Posso saber o seu nome?”

O estrangeiro estudou o vinho contra a luz do candeeiro. Baixou as pálpebras e bebeu devagar, atento,
feliz, como quem segue o vôo de uma fuga de Bach. Poisou o copo numa pequena mesa, mesmo à sua frente,
um móvel em mogno, com tampo de vidro; finalmente endireitou-se e respondeu:

“Tive muitos nomes mas quero esquecê-los a todos. Prefiro que seja você a batizar-me.”

Félix insistiu. Precisava de saber, no mínimo, em que se ocupavam os seus clientes. O estrangeiro ergueu
a mão direita, uma mão larga, de dedos compridos e ossudos, numa vaga recusa. Depois baixou-a e
suspirou:

“Tem razão. Sou repórter fotográfico. Recolho imagens de guerras, da fome e dos seus fantasmas, de
desastres naturais, de grandes desgraças. Pense em mim como uma testemunha.”

Explicou que pretendia fixar-se no país. Queria mais do que um passado decente, do que uma família
numerosa, tios e tias, primos e primas, sobrinhos e sobrinhas, avós e avôs, inclusive duas ou três
bessanganas, embora já todos mortos, naturalmente, ou a viverem no exílio, queria mais do que retratos
e relatos. Precisava de um novo nome, e de documentos nacionais, autênticos, que dessem testemunho
dessa identidade. O albino ouvia-o aterrado:

“Não!”, conseguiu dizer. “Isso eu não faço. Fabrico sonhos, não sou um falsário… Além disso, permita-me
a franqueza, seria difícil inventar para o senhor toda uma genealogia africana.”

“Essa agora! E porquê?!…”

“Bem… O cavalheiro é branco!”

“E então?! Você é mais branco do que eu!…”

“Branco, eu?!”, o albino engasgou-se. Tirou um lenço do bolso e enxugou a testa: “Não, não! Sou negro.
Sou negro puro. Sou um autótone. Não está a ver que sou negro?…”

Eu, que permanecera o tempo todo no meu lugar habitual, junto à janela, não consegui evitar uma
gargalhada. O estrangeiro ergueu o rosto como se farejasse o ar. Tenso, alerta:

“Ouviu isto? Quem se riu?”

“Ninguém”, respondeu o albino, e apontou para mim: “Foi a osga.”

O homem levantou-se. Vi-o aproximar-se e senti que os olhos dele me atravessavam. Era como se olhasse
diretamente para a minha alma (a minha velha alma). Abanou a cabeça num silêncio perplexo:

“Sabe o que é isto?”

“Como?!”

“É uma osga, sim, mas de uma espécie muito rara. Está a ver estas listras? Trata-se de uma osga-tigre,
ou osga tigrada, um animal tímido, ainda pouco estudado. Os primeiros exemplares foram descobertos há
meia dúzia de anos na Namíbia. Acredita-se que possam viver duas décadas, talvez mais. O riso
impressiona. Não lhe parece um riso humano?”

Félix concordou. Sim, ao princípio também ele ficara perturbado. Depois consultara alguns livros sobre
répteis, encontrara-os ali mesmo, em casa, tinha livros sobre tudo, milhares deles, herdara-os do pai
adotivo, um alfarrabista que trocara Luanda por Lisboa poucos meses após a independência, e descobrira
que certas espécies de osgas podem produzir sons fortes, semelhantes a gargalhadas. Ficaram um bom
tempo discutindo sobre mim, o que me incomodou, porque o faziam como se eu não estivesse presente. Ao
mesmo tempo sentia que falavam não de mim, mas de um ser alienígena, de uma vaga e remota anomalia
biológica. Os homens ignoram quase tudo sobre os pequenos seres com os quais partilham o lar. Ratos,
morcegos, baratas, formigas, ácaros, pulgas, moscas, mosquitos, aranhas, minhocas, traças, térmitas,
percevejos, bichos do arroz, caracóis, escaravelhos. Decidi que o melhor seria fazer-me à vida. Àquela
hora o quarto do albino enche-se de mosquitos e eu começava a sentir fome. O estrangeiro levantou-se,
foi até à cadeira onde poisara a pasta, abriu-a e tirou lá de dentro um envelope grosso. Entregou-o a
Félix, despediu-se dele e avançou para a porta. Ele próprio a abriu. Acenou com a cabeça e desapareceu.

Posts Relacionados