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O vestido, de Carlos Herculano Lopes

by Lucas Gomes

O Vestido

, romance baseado em um dos mais conhecidos poemas de Carlos Drummond de Andrade, “Caso
do vestido”, que tem 150 versos distribuídos em 75 estrofes. O romance serviu de argumento ao filme
homônimo de Paulo Thiago.

O romance bebe totalmente da fonte drummondiana, mas não abre mão do vôo próprio.
Para situar a história da mulher que conta às filhas como e por que entregou o
marido amado nos braços de outra mulher, o escritor mergulhou no universo que
melhor conhece: o meio rural mineiro, longínquas paragens onde, nos anos 50, a
realidade retrógrada resiste à entrada em cena de alguma modernidade trazida pelos
anos dourados que engatinhavam.

Conflitos agrários, disputas de terras e lavras, ranças machistas e feudais se mesclam a casos de amor e
ciúme, de posse e desejo, de vingança e violência. Se no poema de Drummond a voz preponderante era a da
mãe que responde às filhas, no romance crescem e ganham contornos de complexidade, além de Ângela,
protagonista original, também a mulher que veio de longe, Bárbara, a sedutora fatal, que acaba
sucumbindo, igualmente vítima das armações do amor; o marido, Ulisses, homem apaixonado e visionário,
que sonha enriquecer e se livrar da pecha de derrotado; o oponente dele, Fausto, namorado de infância
rejeitado por Ângela, poderoso, calculista, vingativo.

Ao situar personagens e situações num contexto específico, de virada de década, marcada pelas
contradições do momento histórico, Carlos Herculano ganha, para a trama de amor imaginada por Drummond,
uma contextualização enriquecedora, mormente devido às novas personagens que surgem e ajudam a dar
veracidade àquela história.

A obra tem um tom “épico”, que se contrapõe e ao mesmo tempo completa o tom
“teatral” do poema no qual se inspirou. O fio narrativo de O Vestido
é tenso, a leitura não pode parar, não exatamente pela expectativa de um desfecho
surpreendente, pois já se sabe o que vai acontecer. O leitor é preso pelo ritmo,
pelo tom de urgência, simétrico à tensão drummondiana, geradora da rapidez e
agilidade dos diálogos, no registro de um segredo contado num mínimo tempo que
antecede à chegada do pai, diante do qual a mãe e as filhas têm que se calar.

No início de do romance, o tom poético está mais próximo de Drummond e a figura do poeta não se deixa
esvanecer, para, depois, pouco a pouco, se criar um distanciamento, pois outra história se conta
preenchendo as lacunas da primeira. O tom poético não se perde, apesar de a segunda história ser mais
narrativa: se o poema de Drummond é dramático, com um cenário teatral, no segundo texto, de Carlos
Herculano, predomina a narrativa, à qual, entretanto, não falta a modulação poética, que não deixa o
leitor esquecer do texto de origem. Mais exatamente, uma prosa atravessada por um tom poético, dentro de
uma estrutura mais épica do que teatral com um seu cenário ampliado em relação à primeira. Rapidamente o
tom de segredo, estabelecido num espaço estreito, de âmbito doméstico, fechado, se abre para um espaço
geográfico que abrange cidades e se estende por uma paisagem rural que remete a uma história real de
lutas de cobiça e poder: exatamente como o cenário de alguns livros do romancista Carlos Herculano
Lopes, como A Dança dos Cabelos e Sombras de Julho.

Carlos Herculano situa a ação do romance nos anos 40, no Vale do Jequitinhonha, uma das regiões mais
belas e mais pobres do Brasil.

A narradora, como no poema, é a própria mulher abandonada. O texto atinge, em
alguns momentos, clímax de enorme emoção. Herculano consegue mergulhar no tom
poético, até mesmo solene, do poeta, numa linha coerente com os versos inspiradores,
muitos dos quais repetidos quais refrões ou mantras, num cantochão que anuncia
tragédia. Como em seus romances anteriores, o escritor emociona pela habilidade
em captar o sentimento feminino e reproduzi-lo no tom exato.

O romance retrata o encontro entre duas almas mineiras de tempos e lugares diversos,
irmanados, porém, pela palavra poética franca e madura.

Trecho do poema “O caso do vestido”, de Carlos Drummond de Andrade

Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.

Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós,

e afastou de toda vida,
se fechou, se devorou.

…………………………………

Trecho de O vestido

I

Minhas Filhas, vocês dizem, esse vestido, tanta renda, esse segredo! Mas fiquem sabendo, que a
mulher que o usava, eu nem sei por onde anda, e se está morta ou viva, pois há muito não tenho
notícias. Esse vestido, então, é apenas uma lembrança de sofrimentos passados, de coisas que hoje já
estão a sete palmos enterradas, e se às vezes voltam, em frias noites de insônia, são apenas sombras,
e nada mais. Dela não guardo mais ódio, e nem sei se cheguei a tê-lo, já que a moça, a coitada, não
passava de uma perdida, e em todo o seu ser, hoje eu vejo, só existia o sofrimento, daquela que apenas
pensava, em preencher seu vazio, mesmo que para isso, em qualquer cabeça pisasse. Mas se vocês
insistem, e de tudo querem saber, eu vou então lhes contar, e da história desse vestido, aqui vocês
vão se inteirar: Bárbara foi uma mulher que uma vez, no início de um mês de setembro, apareceu por
aqui. Veio trazida por Fausto, de quem era conhecida. E o vosso pai, no dia em que ela chegou, foi
com ele, que era seu primo, busca-la lá na estação, pois ainda havia o trem, que só depois eles
tiraram. Ela era uma moça bonita, diferente; vestia saias ousadas, que quase não cobriam os joelhos;
tinha uma boca jeitosa, bem talhada e carnuda, e também usava cabelos curtos, igual ao que eu, na
época, só tinha muita vontade, mas não coragem de ter. Dizem que quando desceu do trem, de óculos
escuros e, naquele dia, com uma calça bem justa, que mais realçava suas formas, todos os olhares se
voltaram para ela, enquanto Fausto e vosso pai pegavam as suas malas. A sua simpatia, não há como
negar, a todos contagiava, e sobre ela, que também era atriz, e até em jornais já havia saído, há
muito Fausto vinha falando. Elogiava a sua beleza e os bons modos, além de outros atributos, que agora
não vêm ao caso e que ela, no tempo certo, quando viu que estava na hora, soube usar com maestria.
Mas dentro do carro, e depois de pedir a ela que falasse sobre Belo Horizonte e das coisas que estavam
acontecendo por lá, Fausto também já convidava ao vossopai para uma recepção que, à noite, em sua
casa, ele e sua mãe iriam oferecer em homenagem à recém-chegada, que com um sorriso agradeceu, dizendo
que não merecia. Espero você e Ângela, Fausto ainda disse, quando o deixou aqui na porta da nossa
casa, e o vosso pai, ao se despedir, ganhou um olhar daquela moça, que outra vez, como havia
acontecido na estação, voltou a deixá-lo encabulado, fazendo-a passar a mão no bigode, como era seu
costume, quando aflito se sentia. Mas minhas filhas, escutai palavras de minha boca, pois algumas
horas depois, quando havíamos acabado de almoçar, o vosso pai, fazendo um certo mistério, mas se
mostrando muito atencioso comigo, me levou até o nosso quarto, onde beijou o meu pescoço, a minha
boca, e após acariciar também os meus cabelos, como até gosta de fazer, abriu devagar a porta do
guarda-roupa e tirou bem lá do fundo uma caixa de papelão redonda, que ali, e sem que eu soubesse, há
muitos dias estava guardada…

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