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Ópera dos Mortos, de Autran Dourado

by Lucas Gomes

Ópera dos Mortos

é um dos romances que melhor espelha a temática e o rigor
formal de Autran Dourado.

Cruzando as vozes dos diversos personagens em comentários e contrapontos, Autran
Dourado mostra que o título de seu romance não foi escolhido ao acaso. Como no
gênero musical a que faz referência, é a certeza de um fim trágico e as emoções
arquetípicas que percorrem esta Ópera dos Mortos, uma meditação sobre os
fantasmas do passado e, sobretudo, um exercício de virtuosismo narrativo.

Sua narrativa é um mergulho no passado da família Honório Cota a partir de um velho
sobrado que, em sua arquitetura barroca, já corroída pelo tempo, vai revelando o
destino de seus moradores, marcados pela tragédia, numa cidadezinha no interior de
Minas Gerais.

O senhor atente depois para o velho sobrado com a memória, com o coração,
adverte um narrador que aos poucos se confunde com a cidade onde reinava o coronel
Lucas Procópio Honório Cota. Homem valente, que impunha respeito pela força e
truculência, traços que passavam distante da personalidade de seu filho e herdeiro,
João Capistrano. Melancólico, em luta permanente para se livrar do fantasma do pai,
este fracassa na política — sua única chance de se impor na cidade, e passa o resto
de seus dias trancado no sobrado que ergueu como uma espécie de monumento à família.

Com o correr dos anos, o casarão vai se impregnando cada vez mais dos fantasmas dos
antepassados, que transformam tudo, de objetos a ambientes, em signos da morte. É
neste ambiente opressivo e desolado que Rosalina, filha única de Capistrano, vai viver
depois da morte de seus pais. Solteira, isolada do mundo e tendo como única companhia
a empregada Quiquina, que é muda, ela passa seus dias fazendo flores de pano e vagando
entre relógios parados e paredes carcomidas.

A rotina do sobrado vai ser alterada com a chegada de José Feliciano. Biscateiro, em
busca de trabalho de cidade em cidade, Juca Passarinho, como é chamado por todos, vai
aos poucos entrando no universo enigmático da casa e, principalmente, na vida da
austera Rosalina.

A obra é dividida em nove capítulos cujos títulos servem de temática ao desenvolvimento
dos mesmo; cada capítulo induz o leitor a uma leitura visual pelo interior e exterior
dos personagens e à medida que a narrativa se desenrola, o leitor vai recebendo
explicações sobre os acontecimentos anteriores e entendendo que, na verdade, são
os mortos que comandam essas vidas.

Percebe-se na narrativa que o sobrado é o ponto de referência para se retornar à
história da família Honório Cota uma vez que as suas ruínas contam o passado de
três gerações. Com dois pavimentos, a parte de baixo, austera e pesada, fora
construída pelo Coronel Lucas Procópio Honório Cota (pai). A parte de cima, leve e
elegante, fora construída pelo filho João Capistrano Honório Cota.

No sobrado decadente da família Honório Cota, restou a filha Rosalina, o imponente
relógio-armário parado na hora da morte de sua mãe, as flores de pano e a escrava
Quiquina que se encarrega de vendê-las pelas ruas da cidade por onde Rosalina
raramente aparece, sempre trancada entre as paredes sufocantes, as lembranças
da família, dos mortos e do passado.

A narrativa portanto, focaliza o íntimo de Rosalina, que assume as personalidades
contraditórias do pai e do avô, Lucas Procópio, herdando deles não apenas características
físicas e psicológicas. Do pai herda também o orgulho ferido de um fracasso político.
Todo o texto é organizado em torno da morte. Rosalina só nasce após sucessivos
abortos da mãe e ela própria perde o filho no desfecho da narrativa. Solitária,
vivendo apenas com Quiquina, que é muda, a protagonista se enclausura no sobrado
construído pelo pai.

Isolada das pessoas da cidade, Rosalina passa os dias fazendo flores de pano entre os
relógios parados. Após a morte da mãe, seu pai pára o relógio da sala sem nenhuma
explicação e Rosalina repete o gesto quando seu pai morre. No desfecho, Rosalina não
morre, mas, enlouquecida, é levada embora da cidade, o que pode ser considerada uma
forma de morte, pois Quiquina pára o último relógio da casa.

Para romper com o silêncio da casa (Quiquina é muda) entra em cena Juca Passarinho,
sonoro, falante (cujo nome é José Feliciano, ou seja, tanto o nome quanto o apelido
lembram felicidade). Desde sua aproximação da cidade, Juca pressente a tragédia que
causará sua ruína: tem pesadelos, a primeira visão da cidade é a voçoroca (sinal de
destruição) e o cemitério (sinal de finitude). De fato, o fim trágico, característico
de ópera, irá confirmar a suspeita de Juca. Transformando Rosalina e sendo transformado
por ela, suas vidas são esmagadas pela engrenagem. São os fantasmas de Rosalina que
tudo transformam em morte. A presença dos mortos na casa e na vida de Rosalina só é
possível através do culto dos vivos, ou seja, da própria Rosalina. É nesta dimensão n
egadora da morte que surge a importância do ritual.

Sozinha, reprimida por um amor que não deu certo, Rosalina que se embriaga todas as
noites, se envolve sexualmente com Juca Passarinho. Mesmo sob o olhar de censura de
Quiquina, eles passam a se encontrar com freqüência. Dividida em duas, pois à noite
Rosalina assume uma personalidade completamente diferente da aparência diurna,
confundindo Juca que se vê transformado (não tem mais a alegria do passarinho), ela
engravida. Resultado de uma união profana, o filho nasce morto.

Diante disso, Rosalina enlouquece e é levada para longe da cidade. Desta vez, numa
atitude antecipada no texto, Quiquina pára o último relógio da casa. As pessoas percebem,
então, que não seria mais possível uma reconciliação com a família Honório Cota.

AÇÃO / ESPAÇO / TEMPO

Predominam, em Ópera dos Mortos, as ações passadas no “sobrado”, centro da
solidão de onde emanam lembranças e sentimento de ódio, rancor e amargura. Além do
sobrado, temos a presença de outros lugares fechados: a cozinha de Quiquina, a sala
e o quarto de Rosalina, o cemitério da localidade. Qualquer transição da personagem
para outro território é vista como violação, transgressão. O sobrado é o “além” para
a gente da cidade e até mesmo para as suas moradoras. É sagrado para Rosalina e
Quiquina. Ele presentifica os mortos, uma vez que o seu valor é o não-tempo, ou seja,
o tempo em que não há avanço, progresso, sucessão. Em Ópera dos Mortos, a morte
está fortemente presente como a situação-limite, o evento que constitui uma determinação
insuperável da vida e não pode ser contornado ou transformado pela ação. No entanto,
a esta concepção existencial, contrapõe-se a deliberada decisão de Rosalina em negar
o tempo presente e o tempo futuro para ater-se ao tempo passado o que possibilita,
simbolicamente, a conservação daqueles que um dia viveram no sobrado. A presença dos
mortos se dá, portanto, segundo a manutenção de um vínculo interanímico, estratégia
que pressupõe o contato sem palavras entre vivos e mortos, para além do espaço e do
tempo. Espaço, tempo e indivíduo se equivalem, o que significa ver o homem, em sentido
ontológico, como um ser em contato com outros seres, consigo mesmo e com as coisas
que constituem seu mundo.

Os habitantes do sobrado, espaço central da narrativa em Ópera dos Mortos, são
chamados de A Gente Honório Cota. Honório vem de “honor” – honra, e a honra é defendida
pelos dois de maneira diferente. Apresentados logo após a descrição minuciosa do casarão,
Lucas e João serão vistos como a causa da vida conflituosa de Rosalina.

NARRAÇÃO

Ópera dos Mortos é um drama, tendo um narrador onisciente e distante que
fala a uma outra pessoa o que se passou com os moradores do sobrado daquela cidadezinha
do interior: Lucas Procópio (o avô), João Capistrano (o pai) e Rosalina, a filha,
são personagens centrais dessa ópera, que tem como personagens secundários
Juca Passarinho (o amante), Quiquina (a empregada) e seu Emanuel (o velho amigo
que trabalhara para seu pai), tão importante quanto os demais.

A figura do narrador é uma peça fundamental em Ópera dos Mortos. Os costumes da
gente da cidade pequena e a história de uma família vão servir de pano de fundo para uma
narrativa que, por vezes, assume características reais, como que para provar sua
verossimilhança.

O termo “univocidade” talvez não seja o mais apropriado para este tipo de narrador, mas é
o que faz referência à esta voz que controla a narrativa: a de alguém da cidade que toma
para si as vozes do povo local ao usar o termo “a gente”. Esse “a gente’ é a voz de um
ser único, mas de sentimentos múltiplos, que acabará por induzir o leitor à história de
suas memórias. É fato que os monólogos interiores de Rosalina, Juca Passarinho e Quiquina
tomam força sozinhos, mas o narrador amarra o corpo do romance ao iniciá-lo com suas
lembranças: E agora chega, não? Estou vendo que o senhor quer é gente. Paciência, só um
pouco mais, um gostinho só (…) Não fazem mais disto hoje em dia.
E como num teatro
anuncia-se, na última linha do primeiro capítulo a personagem principal:

(E então, silêncio. Rosalina vai chegar à janela). O leitor tem a sensação
de um deslocamento espaço-temporal ao ouvir a descrição memorialística do sobrado,
pois deseja voltar-se para ver se realmente Rosalina está à janela:

Se quiser, o senhor pode ver Rosalina, acompanhar seus mínimos gestos, como ela
acompanhava os passeantes, não com aqueles olhos embaciados, aquela neutralidade morna.
Mas veja antes a casa, deixa Rosalina pra depois, tem tempo.

Não se percebe que a relação ingênua entre o ouvinte e o narrador é denominada pelo
interesse em conservar o que foi narrado. E é isso que o narrador faz, prendendo o
leitor-ouvinte à teia dos acontecimentos. É a partir deste momento que o narrador
começa as construções de suas metáforas. O narrador, na verdade, vai bem mais além
do que apenas apresentar e encerrar a história dos personagens (a presença da opinião
pessoal e não só das memórias e fatual nos primeiro e último capítulos); ele serve de
guia e detentor da travessia de vida dos personagens. É ele quem invoca as passagens do
tempo: “Recue no tempo, nas calendas, a gente vai imaginando; chegue até o tempo do
Coronel Honório”; “De repente a gente voltava ao sobrado”, como que para indicar ao
leitor que, mesmo que os relógios da casa pare, o tempo não pára. Após dar direito
aos personagens para que se movam e contem sua história, o narrador chega ao final
da história voltando-se para o sobrado coo se não quisesse ter ou não tivesse
influência nos problemas de Rosalina. Enunciado e enunciação caminham juntos e o
passado torna-se presente.

Há duas grandes imagens no romance: o sobrado e o relógio. Construído pelo avô Lucas,
o sobrado é terminado pelo filho João; o relógio, do tipo armário, tem um pêndulo que
vai de um lado a outro, representando assim Lucas e João na vida de Rosalina. Rosalina
é dupla: sobrado e relógio, bem como o sangue do pai e do avô que corre em suas veias.
Juca Passarinho a escuta dizer: “Eu pensava que era igual a ele (o pai), não sou igual
a ele não, sou igual a ele, o outro (o avô)”.

Há todo um envolvimento mítico em torno desse sobrado chegando mesmo a ser personificado,
conforme lemos no texto:

…o reboco caído em alguns trechos como grandes placas de ferida, mostra mesmo as
pedras e os tijolos e as taipas de sua carne e ossos, feitos para durar toda a vida…
.

PERSONAGENS

Lucas Procópio Honório Cota – é o avô de Rosalina, que lhe deixará como herança
seu comportamento sexual livre. Vivia povoando a terra com filhos naturais. De caráter
intempestivo, temido por suas maldades e dureza. É interessante ver que o legado
(comportamento sexual livre) fica para a neta e não para o filho e o narrador nos
confirma porquê: “Não, João Capistrano não era do mesmo feitio do pai”; ele só se
parece com o pai:

Quando falava dos grandes planos que tinha para sua vida… e se exaltava a seu modo,
os olhos lumeando muito, as mãos magras ligeiramente trêmulas é que Quincas Ciríaco
cuidava vislumbrar nele a sombra do pai. mas era um Lucas Procópio em repouso, medido,
compassado, não aquele turbilhão de homem.

Lucas é Procópio, que em grego significa “o que progride, o que sonha”. Ele progride
ao construir a casa mais bela do lugar e fará ali o seu chão. Lucas é com o filho
João uma antítese. Quincas Ciríaco, o empregado do armazém, tem medo de ser filho
de Lucas, o “coisa-ruim” (uma vez que ele possuía todas as mulheres da cidade que
desejava) e diz: “Só mesmo sabendo é que a gente vê que aqueles sobrados são duas
casas”. Em verdade, é João Capistrano quem constrói a parte de cia do sobrado,
unindo-se ao pai, dando-lhe continuidade.

João Capistrano Honório Cota – “alto, magro, descarnado como uma ave pernalta de
grande porte”. Gostava das alturas: Se os balcões levavam grades de ferro batida,
se a cachorrada dos beirais era aparente de onde ficaria suspenso no ar para
cumprimentar o povo
. Capistrano, originado de capistro, significa cabestro,
mordaça e esse nome só serve para confirmar a vida controladora que legará à filha
Rosalina. A vida seguiria normal, não fosse a crescente raiva de João pelos habitantes
da cidade por conta de um briga política, que o levará a desprezá-los e mostrar-se
superior a eles. É essa superioridade que levará a filha à clausura no sobrado e a
impedirá de se relacionar com Juca Passarinho, uma vez que ele também é um habitante
de fora do sobrado.

O Sobrado seria a síntese de Lucas Procópio e Joäo Capistrano.

José Feliciano (Juca Passarinho) – Tinha este apelido por causa das suas
características com o passarinho. Pousava aqui e alí. Não fixava residência
em parte alguma. Mas quando viu o sobrado resolveu pousar ali definitivamente.
Vivia procurando uma sombra e encontrou a do sobrado. Tinha medo do fogo em todos
os sentidos. Fogo para ele significava perigo de vida e quando ele se aproximou da
cidade viu uma voçoroca e se aterrorizou com o fogo que lhe pareceu diabólico:
Que é aquilo, seu Silvino? quase gritou, disse espantado José Feliciano apontando
o buracão enorme como o leito de um grande rio seco, que ia desde as margens da
estrada até se perder de vista, se confundindo com o vale, vermelho, negro. Ah,
disse Silvino, o senhor nunca viu uma voçoroca? Já vi aluvião, erosão virar voçoroca,
disse José Feliciano, mas deste tamanho nunca na minha vida.

Rosalina – Rosalina tem em sua vida um grande problema: sóbria, sente-se o pai,
João; embriagada, sente-se o avô, Lucas:

Quem sabe Lucas Procópio não morreu de todo, vivia ainda dentro dela? Ela semente
de Lucas Procópio. No canto mais escuro da alma onde brotava toda a sua força sombria.
Uma força que precisava ser libertada, queria ar livre. […] Sei, não sou Lucas
Procópio, de jeito nenhum. Era mais o pai, o homem reto, cidadão. Não lhe imitava os
gestos, a postura diante da vida? Sou igual a papai, sou ele não.

Rosalina, porém, sabe que “Sou de alma o coronel João Capistrano Honório Cota”, enquanto
que no corpo habita o espírito de Lucas Procópio. A personagem é composta de dualidades:
se é Lucas ou João, erotismo ou repressão. Ela é sobrado (duas partes, a de baixo, que
o avô construiu; a de cima, cuja obra o pai completou dizendo Não derrubo obra de meu
pai. Eu sou ele agora, no sangue, por dentro. A casa tem de ser assim, eu quero. Eu mais
ele
, e que o narrador apresenta ao leitor-ouvinte como uma obra do estilo Barroco, o
período das antíteses, do duplo, do céu e da terra, de cima e de baixo, de Lucas e João;
é relógio, no pêndulo que vai para lá e para cá, levando-a de menina a mulher; é o relógio
da independência, que o avô usava, e é relógio de ouro, que o pai usava. Rosalina é
uma mulher séria e reservada, ao mesmo tempo que se entrega para Juca, o forasteiro,
como se o espírito se encontrasse com o corpo e se fundisse na mesma substância.

Aos poucos, porém, vai surgindo uma outra Rosalina, uma terceira na construção imagética
da personagem. Depois de sua entrega, ela sente nojo de Juca, apesar da vontade de tocá-lo
novamente. É a repressão lutando com a libertação do desejo do corpo, movendo essa
engrenagem chamada Rosalina. Esse jogo de vai e vem provocará a aparição de uma outra mulher:
não duas mas três pessoas distintas numa só pessoa, ou melhor – duas Rosalinas que embora
se parecessem eram diferentes, a gente via, reparando bem, a primeira, a antiga, crispada
e dura, a segunda redonda e pacificada, tranqüila no remanso dos gestos, e uma Rosalina
solitária, sem encontro possível a não ser através do choque, da posse através do corpo,
não pelos olhos e pela mente, desesperada e noturna, que em nada se parecia com as outras
duas a não ser pelo fato de morarem no mesmo corpo.

É Juca quem faz a descoberta das três mulheres em uma, que se “arredondava a olhos
vistos”. Sim, Rosalina está grávida, o caçador sem munição acertou o alvo. Ele começava
a sentir a segunda (a solitária) “tão mansa, maternal” e muda seu comportamento. O
sexo traz a morte entre eles. Juca vai se afastando de Rosalina à medida que sente nela
a mudança, que sente que ela agora se comporta “feito uma fêmea de bicho não recebe
macho depois de prenhe”, como diz Quiquina. Esse afastamento se concretiza quando
Juca encontra as portas da casa fechada, antes ficavam apenas encostadas, para que
ele pudesse entrar à noite sem ser visto por Quiquina, e a luz do quarto (que fica na
parte superior do sobrado) está apagada: a fase João Capistrano voltou ao seu lugar.

Juca Passarinho é chamado pelo narrador de ‘caçador sem munição” porque ele nem sempre
tinha realmente munição para caçar codornas, meio de alimentação comum ao local. Sua
espingarda, símbolo de representação fálica, não lhe permite boa pontaria (devido ao
problema já citado anteriormente); apesar de atirar a esmo, acaba por acertar um outro
alvo, que é Rosalina. É o respeito e a submissão que ele devota a ela que vai permiti-lo
o direito de conhecê-la. A personagem, então, permite a inserção de Juca em sua vida.

Grávida, Rosalina se fasta de Juca e permite que somente Quiquina a veja em seu
“estado interessante”. No momento de seu parto, a gestante abandona seu lado Lucas
para ser João, Quiquina pensa: “Não grita para não dar parte de fraca, coitadinha.”
Ela não assume sua fraqueza nem nos momentos mais cruéis da dor do parto. Os
pensamentos de Quiquina são a realidade de Rosalina, embora a empregada tivesse
vontade de deixar o bebê morrer, para que a patroa volte a ser o que era antes, um
membro da gente Honório Cota.

O parto de Rosalina deveria negar a descontinuidade da vida, uma vez que ela
aconteceria num outro ser, mas o bebê está morto, embora não se saiba se a criança
nasceu morta, pois o narrador “fecha os olhos” e as janelas para o que acontece
após o parto, e a semente que estava no corpo desce à terra, ao lugar das
voçorocas que “engolem” a cidade com suas goelas vermelhas, sedentas de sangue,
confirmando que, se a vida é imortal, a continuidade do ser não o é. Caberá a Juca
Passarinho enterrar o fruto da “imundície” praticada por ambos nas noites no
sobrado:

Apanhou o embrulho e ficou olhando apalermado olhando Quiquina sem saber o que
fazer com aquele peso úmido e sujo. Indagava com os olhos o que devia fazer, embora
soubesse, porque não conseguia articular uma só palavra, como se ele é que fosse mudo.
Quiquina fez assim com as mãos, comas unhas, igual um cachorro cavando ligeiro um
buraco na terra. Depois voltou os olhos para debaixo do banco onde ele estivera sentado,
e ele viu a pá; sabia agora o que ela queria dizer.

Juca não suporta mais a cadeia sentimental em que vive e decide ir-se embora do sobrado
e da cidade. Ao fim da narrativa, o narrador traz o leitor de volta ao cenário inicial:
De repente a gente voltava ao sobrado. Atravessávamos finalmente a ponte, o sobrado
abria a porta para nós.
O cenário da ópera abre-se ao público, para que este possa
ouvir os acordes finais. Rosalina entoa uma cantiga em meio às noites de solidão, sem
Juca e sem o filho. É vista saindo do cemitério, à noite, vestida como uma noiva. É
preciso chamar seu Emanuel (que significa o que está conosco (Deus)), o amigo que
administra seus bens, para transformar em atitude a cantilena de Rosalina, cuja letra
ninguém é capaz de entender. Diz o narrador que “nestas horas a gente imagina, inventa
muito.”

É vestida de branco e com uma rosa branca no cabelo que Rosalina desce as escadas para
sair do sobrado. Sua superioridade está em outra esfera, dando “um sorriso meio
abobalhado, para ninguém”. Emanuel cumprimenta-a, como um vassalo a uma rainha,
como se ela ainda pertencesse à gente Honório Cota, mas sua engrenagem está parada:
ela está em longes terras, “os olhos vidrados com que não viam”, nem Lucas nem João,
apenas ela Rosalina, senhora do tempo que passou e que não mais voltará. Os mortos
comandam enfim, o mundo dos vivos e a vida de Rosalina, que se esvai na loucura dos
dias e na clausura de seu sobrado, seu mundo, seu universo, seu cosmos.

Vê-se, então que em Ópera do Mortos, o erotismo faz-se presente na vida de
Rosalina, mas é sempre traspassado pela profunda repressão que a personagem vive.
O que há entre Rosalina e Juca Passarinho é o movimento do ser dentro de si, uma
engrenagem em movimento. Ao sair de sua posição de “senhora” para a de “amante”,
Rosalina transgride o interdito de não se envolver com o que vem de fora do sobrado.
Essa transgressão vai lhe gerar uma angústia

Assim ficou muito tempo, até que pudesse se mover e abrir os olhos. De onde
vinha, onde estava, mesmo quem era? Eu, Rosalina, conseguiu pensar com dificuldade.
Eu, viva. À dor de viver, preferia estar morta, não ter acordado nunca. Eu, por quê?
Por que, como se procurasse uma conexão com o mundo e a existência. Eu, como uma
liturgia, um batismo: para começar a viver, para se livrar do vazio, da angústia,
do nojo no corpo.

E dúvida. No entanto, a transgressão sustenta o interdito, para dar prazer à
experiência interior. Sendo assim, ao se permitir estar com Juca Passarinho,
Rosalina confirma a ordem dos acontecimentos. Juca é o elo, a ponte entre ela e
a cidade e amá-lo à noite (depois de se embebedar com vinho Madeira, seu favorito)
faz com que ela volte a ser a reclusa durante o dia; nesta, o espírito do pai; naquela,
o do avô.

Rosalina faz flores de seda e papel crepom durante o dia e Quiquina as vende na rua.
Ela é o outro elo entre o sobrado e a vida que está lá fora, é a marca da continuidade
da vida perante o descontínuo do ser: ela é parteira. Leva as flores para vender, em
especial as rosas, as favoritas de Rosalina, pois combinam com seu nome. Enquanto
faz flores, a jovem esquece o mundo. Como o trabalho não absorve a mente de Rosalina
após sua entrega a Juca, há a liberação do corpo para a presença do erotismo; entretanto,
esse erotismo é ambíguo, pois pode ser repressão e permissão ao mesmo tempo.

Para haver transgressão é preciso haver o proibido. O vinho às escondidas, as rosas de
pano mais bonitas que ela guarda para si e o desejo por Juca Passarinho são os “proibidos”
de Rosalina. A repressão que a memória do pai falecido provoca nela (em nome da honra, são
a gente Honório Cota, ela deve ser melhor que os demais habitantes da cidade) funciona
mais quando ela tenta esquecer e disfarçar que esteve com Juca, depois que ele a
“conheceu”, no sentido bíblico da palavra. Juca pensa: “ela se guarda pra de noite,
pensava quando a via neutra e fria, entretida com as flores de pano.”

Rosalina, porém, abandona aos poucos o fazer suas flores e liberta o erotismo em sua
vida. O trabalho não é capaz de controlar o desejo, a sexualidade de Rosalina. Ao
mesmo tempo, as ações cedem lugar ao interior, ao plano do pensamento, quando é
impelida pelo instinto repressor, Rosalina chama seu envolvimento com Juca
Passarinho de “águas lodosas e enganosas que estão escondidas”. Liberdade e repressão
duelam nas entranhas de Rosalina; como as voçorocas simbolizam seu interior, o final
desse duelo surpreenderá a cidade.

Em Ópera dos Mortos, Autran Dourado em plena sintonia com a escritura moderna
do século XX utiliza símbolos para narrar uma história entremeada de acontecimentos.

O “Sobrado” representa na narrativa de Ópera dos Mortos um importante actante, visto
que ele está presente nos mais significativos momentos da história (conflito, clímax e
desfecho). Torna-se, portanto, de suma importância conhecê-lo, para que possamos entender
a narrativa. O sobrado é a memória da Gente Honório Cota, seu passado, seu presente e seu
futuro. É a casa da Ópera. A grande metáfora do romance.

Em Ópera dos Mortos encontra-se a radicalização da estrutura lúdica do barroco, o
que promove a isomorfia entre forma e conteúdo. Já no primeiro bloco tem-se uma teoria do
barroco, quando o narrador (coro) descreve o sobrado. As mudanças, os vários ângulos, a
ilusão, o jogo de movimento e repouso, fazem da obra também um meta-romance. Ao parodiar
o barroco, Autran Dourado une linguagem, estrutura e forma; para ele, o barroco não é
apenas um conceito histórico, capítulo da história da arte, mas alguma coisa viva e atuante,
que me estimula na elaboração da minha própria criação literária.

Observamos que o barroco é um estilo marcado pela tensão harmônica de contrários. Como
arte da contra-reforma, o barroco revela não a dúvida, mas a própria unidade dual do
ser humano: corpo/espírito, luz/sombra, sagrado/profano, antropocentrismo/teocentrismo,
entre outras. Há um forte apelo para os sentidos e para a experiência humana, por isso
Autran Dourado abre Ópera dos Mortos com a frase: “O senhor querendo saber, primeiro
veja”, isso é propiciado pelo jogo de contrários do barroco e o aparente exagero. Ao
observar as imagens barrocas, sejam elas literárias ou pictóricas, o espectador adquire
novos pontos de vista, novos horizontes, porque elas não podem ser interpretadas (não se
pode sabê-las) com o ponto de vista pré-existente.

Na linguagem literária, tal apelo se mostra nas imagens ambíguas produzidas pelas
metáforas e oxímoros, mas essas figuras surgem aqui como produtoras de significado, o
que vale dizer, de mundo, e não como mera ornamentação da linguagem.

Em Ópera dos Mortos a ambigüidade característica do barroco radicaliza-se, a
ponto de unirem-se casa e personagens barrocas (o sobrado e Rosalina). Os elementos do
barroco, parodiados pelo autor já na primeira parte são imagens que constroem que
construirão a casa:

Veja tudo, de vários ângulos e sinta, não sossegue nunca o olho, siga o exemplo
do rio que está sempre indo, mesmo parado vai mudando. O senhor veja o efeito, apenas
sensação, imagine; veja a ilusão do barroco, mesmo em movimento é como um rio parado,
veja o jogo de luz e sombra, de cheios e vazios, de retas e curvas, de retas que se
partem para continuar mais adiante, de giros e volutas, o senhor vai achando sempre
uma novidade. Cada vez que vê, de cada lado, cada hora que vê, é uma figuração, uma
vista diferente. O senhor querendo veja: a casa ou a história.

O rio (repouso e movimento), o jogo de luz e sombra, de cheios e vazios, de retas e
curvas, constróem a casa, a habitação das personagens principais (lembramos que o
próprio sobrado é personagem).

Em Ópera dos Mortos observa-se que a riqueza simbólica é plena, porque se alarga
abrangendo toda a narrativa, desde a representatividade como signo à sua vasta significação
simbólica. Nos capítulos “Sobrado” e “Flor de Seda”, constata-se a intenção do narrador
ao nomeá-los, desenvolvendo-os com maestria e sensibilidade, revelando a importância de
ambos para a obra como um todo. “O Sobrado”, uma verdadeira “caixa” de segredos que
centrava o conflito, o clímax e o desfecho da narrativa, é o cenário ideal para a
apresentação da Ópera dos Mortos, visto que ele foi criado, meticulosamente, como um
símbolo, tanto da arquitetura barroca como da fusão dos Honório Cota. Um espaço físico que
também é personagem não se podendo deixar de notar a sua presença imponente e sombria. No
capítulo “Flor de Seda” nota-se a sensibilidade, a delicadeza e a sofisticação de Rosalina.
Uma mulher forte que desabrocha ao tornar-se frágil, ao acordar pra vida e sentir aflorar
os seus desejos, ao perceber que era a flor do sobrado e que ainda exalava perfume capaz de
seduzir e encontrar um homem. No entanto, para que esse rito de passagem aconteça, outros
elementos da narrativa têm importante significação na sucessão desses acontecimentos.
Primeiro, a “escada”, símbolo da unidade, entre os dois pavimentos do sobrado, uma ponte
de ligação entre o passado e o presente, às vezes o caminho da fuga; em segundo lugar, a
“janela”, uma espécie de fenda que permitia que um pouco do interior do sobrado fosse
revelado, isto sob a névoa da cortina na qual Rosalina se escondia; em terceiro lugar, as
“voçorocas”, imensas crateras que ameaçam engolir tudo, o símbolo da destruição; em quarto
lugar, “os relógios” instrumentos que simbolizam o tempo dos Honório Cota, e sonorizam o
espaço sombrio e misterioso do sobrado.

Sendo essa uma narrativa composta de símbolos, não se pode ter idéia exata de como ela
será interpretada, sentida. Pois esvaziada de sua carga significativa se transforma em
signo. Assim sendo vejamos uma dentre muitas possibilidades de leituras que essa “ópera
barroca” oferece.

1. O Sobrado

O habitar de Rosalina é feito em um jogo de contrários que compõe o sobrado. É a
partir desse jogo que Rosalina é. O sobrado é uma coisa que faz com que a quadratura
se manifeste em um jogo de movimento e repouso. Rosalina é a união permanente entre
Lucas Procópio e João Capistrano porque só como só como essa unidade dual pode ser.

O sobrado é também símbolo da linguagem, pois ao se habitar o sobrado, constrói-se a
linguagem, que é a casa do ser. Assim, a linguagem barroca não está em Ópera dos
Mortos
apenas com a função de descrever o sobrado. Não se trata de falar sobre a
casa, mas de construí-la com a única linguagem possível. Em outros termos, só a
linguagem plurissignificativa do barroco pode construir a história de uma personagem
plural como Rosalina.

Em Ópera dos Mortos o sobrado é uma espécie de espaço cênico onde acontecem os
grandes atos da ópera. É o local onde a narrativa começa e termina.

O narrador convida o leitor para que o veja com a memória e com o coração. Revela que
o sobrado, além da sua beleza barroca, tem uma história e um significado profundo.
Estique bem a vista, mire o casarão como num espelho, e procure ver do outro lado, no
fundo do lago, mas além do além, no fim do tempo.
O sobrado representa a Gente
Honório Cota, os seus triunfos e derrotas, as noites de festas e as noites de solidão.
Um verdadeiro referencial memorialístico dessa gente. Cada detalhe dele conta um pouco
da história dos Honório Cota, relata os momentos ali vividos. O reboco caído em alguns
trechos como grandes placas de ferida
mostra a decadência dessa família com as suas
feridas à mostra para toda a cidade. O sobrado é o estigma Honório Cota fincado no centro
da cidade como marco de orgulho e grandeza, sisudez e vulnerabilidade. Assim pode-se
dizer que quando o espaço é dominante, a temporalidade é virtual, e que, quando o tempo é
dominante, a espacialidade é virtual. Rosalina, assim como seu pai, Coronel João Honório
Cota, também se sentia como o sobrado, o ser abrigado sensibiliza os limites do seu
abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos
sonhos. Rosalina estava fincada ali, sem comunicação com nenhuma pessoa da cidade,
exceto Quiquina, sua antiga ama, que era muda, e Emanuel, homem que cuidava dos seus
negócios e filho do único amigo de seu pai, que a via apenas uma vez no ano para deixá-la
informada de como andavam os seus bens. Ela preservava o orgulho da família não se
mostrando a ninguém, permanecendo além das paredes do sobrado, conservando assim a
grandeza da mágoa da sua gente.

Estava radicalmente fechada para o mundo desde a sua adolescência, quando seu pai morrera.
Sofria a vulnerabilidade da sua dolorosa e imensa solidão. Fechou-se no sobrado assim como
Des Esseintes, personagem do romance simbólico À Rebours de Huymans que fechou-se em
seu quarto e tapou os ouvidos ao som do insistente exterior.

Rosalina, tal como o sobrado, era sólida, intransponível, mesmo em declínio. Enquanto o
sobrado tinha uma arquitetura barroca, ela apresentava uma personalidade conflitante,
fragmentada e contraditória. O narrador convida o leitor para que veja a casa como era
e não como é ou foi agora. Ponha tento na construção, pense no barroco e nas suas mudanças,
na feição do sobrado, na sua aparência inteira, apartada, suspensa…
. É preciso que o
leitor visualize a imagem do sobrado para melhor compreender a sua dimensão simbólica e
a íntima ligação deste com os Honório Cota. E o devaneio se aprofunda de tal modo que,
para o sonhador do lar, um âmbito imemorial se abre para mais além da mais antiga memória.

Dessa forma, percebe-se que “o sobrado”, construído em estilo barroco, valorizando os
contrastes entre claros e escuros era a perfeita arquitetura para abrigar tantos conflitos
entre o ser e o não ser, tantas antíteses sentimentais que habitavam aquele espaço imaculado
e santo, sacro e profano, compostos de importantes detalhes e significantes arestas. João
Capistrano fazia questão de que o sobrado fosse a união de dois tempos, duas gerações, duas
histórias. Quando da sua construção, a casa era um só pavimento que retratava muito bem a
alma do seu construtor, Lucas Procópio, homem da terra, inabalável, rústico e forte. No
tempo de Lucas Procópio a casa era um só pavimento, ao jeito dele: pesada, amarrada ao chão,
com as suas quatro janelas, no meio da porta grossa, rústica, alta.
. Com a morte de
Lucas Procópio, seu filho, João Honório Cota, mandou construir um outro pavimento que fosse
a continuação do primeiro, não queria que se percebesse diferenças entre ambas, mas que
apresentasse uma unidade de linhas, cores, que o sobrado tivesse uma só feição. Ele não
queria a dissociação entre memória e imaginação. Não queria também descaracterizar a obra
de seu pai, queria fazê-la crescer, ostentá-la e uni-la à sua. Não quero mudar tudo,
disse. Não derrubo obra de meu pai. Eu sou ele agora, no sangue, por dentro. A casa tem
de ser assim, eu quero. Eu mais ele. […] Eu quero uma casa só, inteira, eu e ele juntos
pra sempre.
. O sobrado era uma espécie de palco com uma permanente apresentação, um
espetáculo que reverenciava o passado que é a memória, enquanto a mobília com seus
significativos ornamentos compõe o cenário que mantém as personagens em atuação na
Ópera dos Mortos. Assim, o sobrado era um espaço sagrado. Longe de ser indiferente,
o espaço num romance exprime-se, pois, em formas e reveste sentidos múltiplos até
constituir por vezes a razão de ser da obra. Ele passa a ser não apenas o espaço físico
onde habitam as personagens, mas apresenta-se como espaço de angústia quando Rosalina
sente pesar a solidão, questiona o seu estado de abandono e convive com os conflitos;
como espaço psicológico quando ele, através da sua imagem, e do seu significado, faz com
que Rosalina recorde o seu passado. O espaço, quer seja “real” ou “imaginário”, surge
portanto associado, ou até integrado, às personagens, como o está à ação ou ao escoar do
tempo. O narrador atento a essas possibilidades, mais uma vez, chama a atenção do leitor
para sua metáfora maior, o sobrado. O espaço por ele criado meticulosamente para ser o
símbolo principal da sua narrativa.

Veja tudo, de vários ângulos e sinta, não sossegue nunca o olho, siga o exemplo do
rio que está sempre indo, mesmo parado vai mudando. O senhor veja o efeito, apenas sensação,
imagina; veja a ilusão do barroco, mesmo em movimento é como um rio parado; veja o jogo de
luz e sombra, de cheios e vazios, de retas e curvas, de retas que se partem para continuar
mais adiante, de giros e volutas, o senhor vai achando sempre uma novidade. Cada vez que vê,
de cada lado, cada hora que vê, é uma figuração, uma vista diferente. O senhor querendo,
veja: a casa ou a história.

2. A Escada

A escada, em Ópera dos Mortos, é uma ponte de ligação que une os dois pavimentos
do sobrado, o térreo (a parte antiga) e o andar de cima (a parte nova) que representa
a parte superior do sobrado e que dá a ele uma postura nobre e imponente. É dentro
desse espaço que Rosalina se divide e faz da escada a ponte que a conduz para
a travessia da sua existência. É por essa escada que ela, no ritual de descê-la
ou subi-la, apresenta as mais importantes decisões da sua vida.

Para o povo da cidade o ato de descer as escadas está associado ao poder. Quem desce vem
do andar superior, logo, reina. Rosalina descia as escadas, toda a sua figura bem maior
do que era, a cabeça erguida, digna, soberba, que nem uma rainha…
. Mantendo o mesmo
mistério da descida ela sobe ritualisticamente deixando apenas um rastro de silêncio. A
gente viu tudo em silêncio de igreja: Rosalina subia de novo as escadas, direitinho como
desceu.
. Quando o seu pai morreu, o coronel João Capistrano Honório Cota, depois de muito
tempo sem ter contato com o povo da cidade e sem receber esse povo no sobrado, Rosalina só
apareceu uma vez no velório, foi ao descer a escada para colocar o relógio de ouro que o pai
usava na parede ao lado do outro. Descia a escada, todo mundo de olho nela.. Depois,
num outro momento significativo da sua vida, Rosalina usou a escada para fugir dos braços
de Juca Passarinho quando já se entregava a ele. Quando ele procurou Rosalina, viu-a no
meio da escada, correndo fugia
. Temos aqui a escada como elemento de fuga, uma ponte
de ligação também entre o corpo (térreo) e o espírito (o andar de cima). Rosalina se refugiava
no andar de cima do mundo e de suas tentações. O andar de cima era para ela a redoma do seu
espírito. Seu quarto, o seu mais íntimo recanto. Por meio dessa admirável divisa, a casa e
o quarto são marcados por uma intimidade inolvidável. Com efeito, haverá imagem de intimidade
mais condensada, mais segura de seu centro que o sonho do porvir de uma flor ainda encerrada e
recolhida em sua semente? Perturbada com o que sentia por Juca Passarinho e envergonhada de
quase ter concretizado totalmente a sua paixão, chegou a pensar em nunca mais usar a escada
para não fundir a Rosalina introspectiva à Rosalina expansiva que desabrochava. E se não
descesse, se não descesse nunca mais?
. A escada era o passaporte dos seus conflitos, só
queria transpô-la quando se sentia forte, segura, senhora de si, sem os arroubos da paixão.
Recomposta, ela desceu.. Essa mesma escada conduzia Rosalina embriagada pelo vinho e
pela paixão ao andar de cima onde finalmente ela resolve abrir o seu quarto para viver
intensamente a sua paixão nos braços de Juca. O vinho, a sensualidade e a paixão foram os
ingredientes afrodisíacos que deram a Rosalina coragem para conduzir pela escada o seu amante
e ter com ele uma noite dionisíaca. …toda noite, como num ritual, quando subiam a primeira
coisa que ele fazia era soltar-lhe os cabelos.
. No entanto, quando Rosalina depois de
todas as transgressões que fizera, abrindo o seu quarto, o seu mundo, o seu corpo, perde o
domínio sobre todas as Rosalinas, sobe pela última vez permanecendo no mundo da ilusão, no
mundo lúdico dos loucos e desce quando tem que deixar o sobrado para ir para um sanatório,
mas pensando que vai viver um sonho ou mais uma ilusão. Antes de terminar de percorrer
ritualisticamente toda a escada, quando estava no último degrau ela parou, talvez estivesse
se despedindo do sobrado e dos seus mortos, não se sabe, mas foi ainda na escada que ela
proferiu sua última palavra no sobrado, encerrando ali o seu “solo” naquela ópera. Quando
Rosalina chegou no último degrau da escada, parou, disse qualquer coisa baixinho… ninguém
ouviu.
.

3. A Janela

Era da janela que Rosalina tinha uma comunicação passiva com a cidade. Uma comunicação
pelo olhar. Da janela, por trás da cortina, ela observava a cidade e o povo que andava
pelas ruas. Assim, através de uma camada protetora, Rosalina filtrava instantâneos da vida
lá fora.

Rosalina conhecia o Largo do Carmo palmo a palmo, desde sempre olhando detrás
das cortinas a igreja, as casas fronteiras, a Escola Normal, a estrada. Os olhos vazios
e mornos miravam o silêncio coalhado da praça, a solidão do descampado às três horas da
tarde, o céu de verão sem nuvens, o sol estorricando a terra, reverberando nas paredes
brancas, os burricos peados junto ao cruzeiro, os jacás vazios esperando os donos – […] –
alguém que entrava no Largo, […] e ela o seguia com a vista, a atenção neutra dos
desocupados, até que dobrava a esquina ou se perdia de vista no fim da rua.

O povo via Rosalina somente quando ela aparecia na janela, mas era uma visão sombria, a
cortina, feito uma tênue membrana, não, deixava que o povo a visse nitidamente e ainda a
protegia contra os olhares curiosos. O próprio narrador direciona o olhar e a curiosidade
do leitor em relação a Rosalina, adverte que é necessário antes ver o sobrado, o espaço
existencial dela.

Se quiser, o senhor pode ver Rosalina, acompanhar os seus mínimos gestos, como ela
acompanhava os passeantes, […] Mas veja antes a casa, deixa Rosalina pra depois, tem tempo.

Para Rosalina a janela era uma espécie de olho do sobrado, através dela gostava de olhar,
porém quando via que estava sendo observada logo desviava o seu foco. A cidade vivia em
constante expectativa, o povo estava sempre atento a uma aparição de Rosalina. E então,
silêncio. Rosalina vai chegar na janela
. Tal como se fosse uma celebridade que
satisfaz a curiosidade do público com a sua rápida aparição. Rosalina se isolava por trás
da cortina para além da janela. Aquele parecia ser o seu casulo intransponível, ela não
gostava de ser vista, mas apreciava ver o povo da cidade, afinal essa era a imagem mais
viva que a sua visão vislumbrava. Amanhã, da janela do seu quarto, escondida detrás da
cortina, ia ver a procissão sair
.

4. Flor de Seda

Fazer flores era a única ocupação de Rosalina desde que se fechara dentro do sobrado.
As flores tão bonitas que ela fazia. Pra divertimento, era rica, não carecia.
Tinha, no seu silêncio permanente, como única forma de expressão, fazer flores de papel
crepom e seda. Eram essas flores a única coisa sua que o povo da cidade podia ver, pegar
e lembrar dela, isso devido a Quiquina, sua empregada antiga que as vendia na cidade.
Quiquina cuidava da venda das flores. Quem contratava, marcava os preços. Essas
flores, símbolo das virtudes, sobretudo de Rosalina, eram para a cidade, também, símbolo
de comunicação, pois era através delas, das suas cores e formas, que eles imaginavam
Rosalina que há mais ou menos quatorze anos não viam. Rosalina era, para o povo, a flor
do sobrado, uma rara flor, vista poucas vezes. Era através das flores que fazia que ela
indiretamente participava dos eventos sociais da cidade. As suas flores, todos os anos,
ornamentavam o andor de Nossa Senhora do Carmo, o que dava a ela um certo orgulho. …o
andor de Nossa Senhora do Carmo especialmente preparado […] Queria ver as flores de papel
e de pano, aquelas flores que só ela sabia fazer tão bem.
Assim, ela fabricava flores
para festas de cidade grande, as flores de laranjeira quando tinha casamento (as que ela
menos gostava de fazer), os lírios de primeira comunhão etc. O ofício de fazer flores era
também para Rosalina uma forma de atenuar a pesada carga que carregava ao longo dos anos.
O fato de se tornar a guardiã da memória dos seus ancestrais e enclausurar-se em casa tal
como os mortos no túmulo aumentava o peso da vida (que) está em toda forma de opressão;
acaba por aprisionar cada existência em suas malhas cada vez mais cerradas. Por isso o ato
de fabricar flores, atividade tão delicada, representa a saída que Rosalina encontrou para
suavizar o enorme peso que era a sua vida. Ela, apesar de toda uma existência conflituosa,
movida pela vivacidade e inteligência, sabia que para contrapor tamanho peso era necessária
a leveza, uma leveza consciente. Confirma-se assim em Rosalina a busca da leveza como
reação ao peso do viver.

5. Rosalina

Rosalina, como personificação do sobrado (e da linguagem que ele simboliza) é também
metáfora ou imagem da memória dos mortos que compõem o sobrado. Rosalina é quem mantém
Lucas Procópio e João Capistrano presentes para a cidade que deseja esquecê-los, mas
não pode. A cena do enterro de João Capistrano mostra que Rosalina, contrariando o desejo
da cidade, não enterrou seus mortos:

Foi assim que Rosalina fez, todos os gestos medidos: viu o pai no caixão, o
corpo coberto de flores, cruzou os dedos como quem ia rezar mas não rezou. Súbito se
voltou para onde tinha vindo. A gente viu tudo em silêncio de igreja: Rosalina subia
de novo as escadas, direitinho como desceu.

Rosalina não enterrou o pai, não cumpriu o ritual esperado pela cidade. Essa foi uma
das formas de mantê-los presentes, pois o sobrado é Lucas Procópio e João Capistrano,
mas Rosalina é a memória dos dois. Entende-se assim porque Autran Dourado compara, na
sua Poética de Romance: matéria de carpintaria, os mortos de Rosalina aos mortos
de Antígona. A lei de Rosalina é a lei dos deuses (“Não esqueço, ninguém deve esquecer”)
que se opõe à lei da pólis. Enterrar João Capistrano significaria enterrar sua briga
com a cidade, mas para Rosalina isso significaria tirar a dignidade do pai, assim como
não enterrar Polínices significaria, para Antígona, tirar a dignidade do irmão.

A questão da memória está visceralmente ligada à do tempo. São símbolos do tempo em
Ópera dos Mortos os relógios e as voçorocas, como já citado.

6. Relógios

Os relógios, embora parados referem-se à dinâmica do tempo. Para Autran Dourado, o
tempo não é concebido como mera sucessão de passado, presente e futuro, mas uma ciranda,
uma roda.

O primeiro relógio que pára em Ópera dos Mortos é o comemorativo da
independência que João Capistrano pendura na parede da sala do sobrado no início de
sua briga política, depois o relógio armário, quando da morte de sua esposa, Dona
Genu e, por fim, o relógio de ouro, parado por Rosalina no dia da morte de João
Capistrano. Os relógios parados permanecem presentes para marcar o tempo contínuo
dos mortos. Mesmo mortos, continuam a operar, marcam tanto a vida do sobrado e de
Rosalina como a da cidade. Mesmo em todo seu isolamento Rosalina e o sobrado participam
da vida da cidade. Isso pode ser observado em várias passagens pela fala do narrador,
como no segundo bloco, quando conta ao observador sobre a chegada do relógio armário ao
sobrado:

E vinha gente de longe regalar a vista (…) deliciar os ouvidos com a música
prateada das pancadas finas, aquela música que mais tarde, quando o relógio parado, ia
marcar as horas do nosso remorso.

Observamos que, no momento da narração, o relógio já estava parado, mas sua música
ainda se fazia ouvir.

Os relógios, mesmo parados, estão em movimento, mostrando que passado, presente e
futuro não se sucedem, mas se imbricam:

Foi quando o coronel João Capistrano Honório Cota morreu. Tudo foi de novo,
igualzinho relógio de repetição.
(…)
Tudo repetido, a gente assistia tudo de novo pra trás. De novo se voltava feito
numa fita-em-série onde o herói ficou em perigo e a gente não sabia como é que ele
vai sair para continuar suas cavaleiranças. A gente esperava que a cena se repetisse
para ter uma outra solução mais conforme, não a que ficou parada, sugerida.

Entretanto, a cena não tem solução, pois isso significaria parar a roda do tempo.

A morte de D. Genu marca o início do silêncio entre o sobrado e a cidade, e a de
João Capistrano o estabelecimento desse silêncio, mas o silêncio não cessa a
comunicação, pois o sobrado determina, em certos aspectos a vida da cidade, como
já observado.

Os relógios também se imbricam na personalidade de Rosalina, o que não é nada mais
nada menos que o imbricamento das questões do tempo, da linguagem e da memória:

Mas ela não podia mexer nos relógios, não devia nunca mexer naqueles relógios.
Os relógios eram um quebranto, parados eles batiam como de noite aquele coração penado
no meio da casa (…).

O tempo aqui é como um rio: mesmo parado continua em movimento. Rosalina não pode mexer
nos relógios porque não pode mexer no tempo, mas como memória pode fazer com que
aquilo que já não é retorne a ser, pode tornar o tempo uma ciranda que gira permanentemente
e que se transforma também no tempo da cidade. O sobrado, símbolo da linguagem, é o que
guarda esse tempo-ciranda e, em seu silêncio, fala à cidade.

7. Voçorocas

O trabalho do tempo, que transforma as coisas em ruínas é simbolizado pelas voçorocas.
Elas provocam estranhamento em que as vê porque traz à tona aquilo que é a única certeza
do homem, mas que lhe é absolutamente desconhecido: a morte. A dificuldade de encarar as
goelas de gengivas vermelhas das voçorocas é a dificuldade de encarar a finitude humana,
o limite. Por isso elas assustam tanto Juca Passarinho, sempre alegre e falante: elas o
colocam de frente para o nada e provocam a experiência do silêncio:

Já vi aluvião, erosão virar voçoroca, disse José Feliciano, mas deste
tamanhão, nunca na minha vida!
Desta vez não mentia, não exagerava no elogio. Tinha até medo de olhar aquelas
goelas de gengivas vermelhas e escuras (…). Que coisa mais medonha, seu Silvino.
Parece que não acaba mais essa começão de terra. Coisa do diabo, mais parece esta
fome toda de terra.

As voçorocas remetem, assim como os relógios, remetem à dinâmica do tempo: são a
própria presença do passado, do que já não é naquilo que é (presente), mas não
indicam futuro a não ser a morte, a destruição. Não há futuro para a cidade, assim
como não há futuro para Rosalina. Trata-se de uma cidade marcada pelo trabalho (ópera)
dos mortos, que Rosalina / memória cuidou de manter presentes tanto para si como
para a cidade. Tudo é determinado pelo sobrado e seus mortos. Mesmo em ruínas, é o
sobrado que se mostra ao narrador e a partir dele desenrola-se a narrativa. As
voçorocas estão para a cidade assim como os relógios estão para o sobrado: “O sobrado
era o túmulo, as voçorocas, as veredas sombrias”.

Observações gerais

O narrador de Ópera dos Mortos também contribui para a concepção de tempo
como ciranda, continuidade e contigüidade. A obra é narrada sob vários focos narrativos,
o que implica dizer que não há um, mas vários narradores. Por ser segundo o autor,
uma obra mais trágica do que romanesca, destacamos aqui o narrador coral, que
interpreta os eventos à moda do drama ático. Já no primeiro bloco, observa-se a
presença do coro, como nos parênteses do fragmento abaixo:

Um recuo no tempo pode se tentar. Veja a casa como era e não como é ou foi agora.
Ponha tento na construção, pense no barroco e nas suas mudanças, na feição do
sobrado, na sua aparência inteira, apartada, suspensa (não, oh tempo, pare as suas
engrenagens e areias, deixe a casa como é, foi ou era, só pra gente ver, a gente
carece de ver; impossível com a sua mediação destruidora, que cimenta, castradora);
esqueça por um momento os sinais, os avisos surdos das ruínas, dos desastres, do
destino.

Principalmente a partir do capítulo “A Semente no Corpo, na Terra” (Rosalina grávida),
quando, ainda segundo Autran Dourado, Rosalina fala, mas sem discurso, só presença,
tem-se o discurso do coro. É ele que interpreta as muitas Rosalinas, que Juca
Passarinho não consegue entender:

Mas o corpo era o mesmo, com dificuldade ele via o mesmo corpo onde as duas
se alternavam. O corpo sem a noite continuava a existir? Era possível só a luz, a
escuridão total?
Ele [Juca Passarinho] se perdia em pensamentos absurdos, não esses, outros – feitos
de imagens concretas (…) mas que desses pensamentos se aproximava na sua luta
incessante de querer entendê-la para repousar em duas Rosalinas(…) que tinham de
comum entre si o traço de união, o corpo…
(…)
E de repente descobriu com espanto: ela era três e não duas. A dona Rosalina que
existia entes de sua chegada ao sobrado e continuou a existir até aquela noite (…),
a Rosalina das noites em fogo e sangue, em fúria consumida, e a dona Rosalina diurna
de agora, perto de quem humildemente ele ficava (…) Essas distinções eram demais para
ele, homem simples.

E assim o agregado desiste de entendê-la e passa a aceitá-la, mas é o coro quem
interpreta, porque um narrador onisciente seria contraditório com a concepção de
linguagem dessa obra que barroca que dialoga com a tragédia. Se a tensão harmônica
dos contrários é a base da narrativa, não pode haver certezas absolutas exclusivas
de um narrador.

Ópera dos Mortos interpreta as questões linguagem, memória, ser e tempo em
uma perspectiva deliberadamente ambígua. A obra recusa os conceitos maniqueístas e
concebe a unidade na dualidade. A linguagem barroca e trágica revela a imanência
recíproca das questões abordadas em sua originalidade. Nesse sentido é um “acontecer
poético” e cria mundo, mas não um mundo paralelo ao chamado “real”. O mundo
magistralmente criado em Ópera dos Mortos é real naquilo que tem de
inaugural: a paródia de elementos barrocos e trágicos interpretando originalmente
as questões que inquietam a humanidade desde seus primórdios.

Fontes:
Denilson Albano Portácio – Universidade Federal do Ceará)
Laura Goulart Fonseca – doutoranda em Ciência da Literatura, Teoria
Literária, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Marilúze Ferreira de Andrade e Silva – Departamento das Filosofias e Métodos – FUNREI
Carla Aparecida Alves Bento, Mestranda em Literatura Brasileira – Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ)

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