Home EstudosSala de AulaHistoria Os anos de JK: 1. O Brasil de Vargas e o Brasil de JK

Os anos de JK: 1. O Brasil de Vargas e o Brasil de JK

by Lucas Gomes

O BRASIL QUE VARGAS DEIXOU

Quando se encerrou o segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954), o Brasil havia passado por uma série de mudanças estruturais que ganharam velocidade a partir da década de 1930. Essas mudanças diziam respeito principalmente às bases do desenvolvimento, ao modelo econômico adotado, à ênfase na industrialização orientada pelo Estado, à liberalização política e ao controle social e sindical.

Nas décadas de 1930 e 1940, fez-se a travessia do mundo rural para o mundo urbano industrial, com profundas repercussões em vários aspectos da vida do país. Uma das mais importantes, do ponto de vista político, foi a emergência do populismo como recurso de poder para autoritários e democratas, e a incorporação ao processo político de toda a população alfabetizada maior de 18 anos. A urbanização cresceu de forma acelerada, facilitando a expansão desordenada das cidades. O Brasil vivia o que se chamava então de um intenso processo de “modernização” política e econômica e sofria todos os impactos, positivos e negativos, daí decorrentes.

Juscelino Kubitschek chegou ao poder em uma democracia de massas regida por uma Constituição liberal, por um sistema partidário de âmbito nacional, por um Congresso valorizado, por eleições livres e periódicas e pela liberdade de imprensa. As liberdades políticas eram, no entanto, limitadas quando se tratava das organizações sindicais e de esquerda. Desde 1948 o Partido Comunista passara para a ilegalidade, o que não impediu, contudo, que seus quadros continuassem na cena política sob a chancela de outras agremiações partidárias. O novo presidente soube aproveitar esse clima de liberdades públicas para propor uma agenda otimista de governo, com o seu Plano de Metas, e cativar a opinião pública em torno de seu programa.

Do ponto de vista econômico e de planejamento, JK pôde se beneficiar de uma série de instrumentos já produzidos, que iriam facilitar a realização de suas metas. Em seus 19 anos de governo, e especialmente no último mandato, Getúlio promovera a criação de uma série de agências para estudar, formular e implementar políticas de desenvolvimento, sempre dentro de uma ótica que valorizava a ação do Estado, a iniciativa local e o nacionalismo. Entre esses empreendimentos figuravam o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE, hoje BNDES) e a Petrobras, e ainda vários outros, de caráter setorial ou regional, como o Plano Nacional do Carvão, a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, o Banco do Nordeste, que visavam o mesmo objetivo de promover o desenvolvimento econômico a partir do dirigismo estatal.


Material de divulgação de exposição comemorativa dos 50 anos do BNDES

 

Grande parte desse trabalho de planejamento foi elaborado pela Assessoria Econômica da Presidência da República criada por Getúlio em 1951 e comandada por técnicos de recorte nacionalista, como Jesus Soares Pereira e Rômulo de Almeida. Uma das tarefas desse grupo foi exatamente a de planejar a instalação de uma indústria automobilística para o país, o que se tornaria uma das marcas registradas da administração de JK.

A exemplo de Vargas, JK incentivou a formação de comissões técnicas que deram continuidade a estudos em andamento. Essas comissões ou grupos de trabalho tinham sido amplamente acionadas por Vargas como instrumentos para contornar a tradição clientelística do Brasil e facilitar a formação de bolsões de excelência capazes de lidar com questões de planejamento que exigissem decisões rápidas.

Nos anos 50 o país vivia sob a égide de uma ideologia prometeica, de crença no desenvolvimento, no progresso e na mudança. Este era um legado deixado por Vargas, do qual JK se apropriou com maestria. Juscelino adicionava ao desenvolvimentismo a ótica do otimismo e da tolerância política. E contava, na retaguarda, com um corpo institucional já formalizado e uma estrutura burocrática e estatal razoavelmente consolidada, que lhe permitiriam agir e decidir mesmo em momentos de crise política ou militar.

JK beneficiou-se de um aparelho de Estado já montado, com capacidade de planejar, taxar, executar, financiar e cobrar, para pôr em marcha um plano de governo que lhe daria notoriedade. Valeu-se do planejamento, que já era uma marca registrada no país desde os anos 30, e dos corpos técnicos que o Brasil havia formado. A par de tudo isso, soube dar legitimidade política às suas ações prestigiando as instituições representativas e domesticando os descontentamentos militares. Maximizou os recursos que o país tinha e criou fatos novos (como a construção de Brasília), sempre orientado pela visão estadocêntrica de desenvolvimento, tão predominante na época. Mas, como seu antecessor, também descuidou de uma pauta social que elevasse o Brasil a um patamar de desenvolvimento humano compatível com o dinamismo e a efetividade de sua máquina estatal.

JK rumo à presidência

A campanha para a presidência da República de 1955 nasceu sob o impacto do suicídio de Getúlio Vargas em agosto de 1954, que serviu de vetor para as forças políticas no embate eleitoral. O país, desde então, vinha sendo governado pelo vice-presidente João Café Filho. No cenário político, duas correntes se defrontavam: o varguismo, que ganhou novo alento com o gesto de Getúlio, e a oposição capitaneada pela União Democrática Nacional (UDN), que havia sido alçada ao poder e não dava mostras de querer deixá-lo. O confronto transformou a sucessão presidencial de 1955 num intricado jogo de xadrez, em que os lances decisivos foram a derrota da tese de uma candidatura de “união nacional”, a articulação da aliança entre o Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o apoio dos comunistas a Juscelino Kubitschek e a comprovação da falsidade da chamada Carta Brandi.

Os antigetulistas, que tinham como um de seus principais líderes o jornalista Carlos Lacerda, consideravam que a eliminação da herança de Vargas se faria através do lançamento de uma candidatura única que reunisse a direita e o centro, i.e., a UDN e o PSD. A idéia foi proposta por Etelvino Lins, preeminente liderança do PSD pernambucano antivarguista, e apropriada pelo presidente Café Filho, que se opunha à candidatura do governador mineiro Juscelino Kubitschek. Em dezembro de 1954, os chefes militares divulgaram um documento no qual apoiavam a candidatura de “união nacional”, além de rechaçar a possibilidade de uma candidatura militar. Juscelino retrucou às pressões militares com um discurso que foi publicado no Correio da Manhã, no qual afirmava a primazia dos partidos na decisão final.

Dias antes da reunião do diretório nacional do PSD, Etelvino Lins apresentou uma lista tríplice da qual deveria sair o candidato pessedista: Gustavo Capanema, líder da maioria, Lucas Lopes e o próprio Juscelino. Contudo, os dois primeiros indicados não aceitaram a indicação. A candidatura JK foi aprovada por 123 votos contra 36, com a oposição dos diretórios de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Pernambuco.

JK, autêntica “raposa pessedista”, estava ciente da importância das bases locais para a viabilização de sua candidatura, principalmente das bases de Minas Gerais. Assim, tratou de assegurar a fidelidade do vice-governador, Clóvis Salgado, do Partido Republicano (PR). Depois de muitas idas e vindas, um acordo foi fechado em 8 de novembro, com o PR aceitando abrir mão da cabeça de chapa para o governo do estado e apoiando a candidatura de JK.


Convenção do PSD que homologou a candidatura de
Juscelino Kubitschek à Presidência da República.
10 fev. 1955. Juscelino Kubitschek (sentado).
(Crédito da foto: Ernani do Amaral Peixoto)

Em 10 de fevereiro de 1955, o PSD homologou a candidatura de JK, que obteve 1.646 votos de um universo de 1.925. Opuseram-se os diretórios dissidentes de Pernambuco, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e houve também defecções na Bahia e no Distrito Federal. Foi decidido que os diretórios dissidentes sofreriam intervenção. Ainda no mesmo mês, o Partido Social Trabalhista (PST) aprovou a aliança com o PSD.

Simultaneamente aos movimentos de JK, novos nomes anunciaram a intenção de concorrer, tais como o líder integralista Plínio Salgado, pelo Partido da Representação Popular (PRP), e Jânio Quadros. A UDN iniciou um verdadeiro périplo eleitoral. Primeiro, lançou Juarez Távora, que no dia seguinte desistiu de concorrer, ao tomar conhecimento de um acordo entre Jânio Quadros e Café Filho pelo qual a indicação do candidato a vice pertenceria a este último. Dias depois, Juarez reconsiderou sua decisão, mas tornou a renunciar à candidatura. A indecisão de Juarez levou os líderes udenistas e pessedistas dissidentes a lançar o nome de Etelvino Lins, que desistiu após a intervenção do diretório nacional do PSD nas seccionais de Pernambuco e do Rio Grande do Sul. Nereu Ramos, líder do PSD catarinense, diante da ameaça de intervenção, já havia concordado com a decisão da direção nacional do partido.

No cálculo de Juscelino, a aliança PSD-PTB era condição sine qua non para a vitória, assim como a indicação de João Goulart para vice-presidente. Nas palavras de Maria Victoria Benevides, “Juscelino e Jango, personificando a herança getulista, consagraram o ‘ponto ótimo’ da aliança PSD-PTB”.

Na ocasião da ratificação da aliança pelos petebistas, Luís Carlos Prestes, líder do proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB), declarou a intenção de firmar um acordo entre os comunistas e os petebistas. Pouco depois, o PCB divulgou um Manifesto Eleitoral apoiando oficialmente a chapa JK-Jango. Esse apoio repercutiu nos meios militares de tal forma que o ministro da Guerra, general Henrique Lott, veio a público condenar a aproximação de JK com os comunistas, fato negado pelo candidato pessedista.

A confirmação da união entre os pessedistas e os petebistas (apoiada pelos comunistas) assustou sobremaneira os antigetulistas. Juarez Távora mais uma vez reconsiderou seu afastamento do pleito e lançou sua candidatura pelo Partido Democrata Cristão (PDC), que recebeu o apoio do Partido Socialista Brasileiro (PSB). A UDN decidiu então dar apoio a Juarez Távora, indicando para vice Mílton Campos. O cenário eleitoral ficou completo com a apresentação da candidatura de Ademar de Barros, pelo Partido Social Progressista (PSP), tendo como vice Danton Coelho.

A definição das chapas não reduziu os conflitos e as ameaças à realização do pleito. Primeiramente, o pronunciamento do general Canrobert Pereira da Costa no Clube Militar, por ocasião do primeiro aniversário da morte do major Rubens Vaz (morto em 5 de agosto de 1954 no atentado da rua Tonelero, que na verdade visava Carlos Lacerda), causou furor nos meios políticos pelas críticas ao regime e ao abandono da candidatura de “união nacional”. Depois, a Tribuna da Imprensa, o jornal de Lacerda, divulgou uma carta, datada de 5 de agosto de 1953 e endereçada ao então ministro do Trabalho, João Goulart, mencionando contatos secretos que este teria mantido com Juan Domingo Perón, então presidente da Argentina, para implantar uma república sindicalista no Brasil. O suposto autor da carta, o deputado argentino Antonio Jesus Brandi, revelava também a existência de contrabando de armas argentinas para o Brasil. Para averiguar as denúncias foi aberto um inquérito policial militar (IPM), presidido pelo general Emílio Maurel Filho, que concluiu pela falsidade da Carta Brandi.

Mais uma vez a UDN tentou impedir uma possível vitória da chapa JK–Jango. Às vésperas do pleito, apresentou uma emenda constitucional transferindo para a Câmara dos Deputados a eleição presidencial no caso de o eleito não conseguir maioria absoluta, i.e., 50% dos votos+1. Não conseguiu, porém, aprová-la.

A eleição de 3 de outubro de 1955 foi uma das mais disputadas da história brasileira. Juscelino ganhou com uma das menores percentagens de votos válidos (33, 82%) até então dadas a um presidente da República. Além disso, o drama da campanha foi apenas o princípio de uma sucessão de ameaças à legalidade democrática, cujo ponto crítico seria o Movimento do 11 de Novembro, dois meses e meio antes do desenlace final: a posse dos eleitos, em 31 de janeiro de 1956.

Em sua campanha presidencial, JK seguiu à risca o que se convencionou chamar o “manual do bom pessedista”. Uma regra básica desse manual prescrevia a busca de apoio das bases locais. Na ótica pessedista, nenhum candidato teria sucesso no plano nacional se não trouxesse atrás de si seu município ou seu estado. Juscelino começou, assim, por conciliar com seus opositores em seu próprio estado, Minas Gerais, para conseguir ser indicado candidato do PSD e em seguida chegar à presidência.

As eleições presidenciais de 1955 foram as mais concorridas das quatro eleições do gênero realizadas no período que vai de 1945 a 1960. E isso por três razões. Em primeiro lugar, o impacto do suicídio de Vargas gerou entre os antigetulistas o temor de que uma candidatura vinculada ao getulismo pudesse manobrar a opinião popular e lançar o país em aventuras políticas. Esse temor era agravado pelo fato de o vice da chapa de JK ser João Goulart, o Jango, fiel escudeiro de Getúlio e um dos pivôs da crise do governo, que chegara ao clímax em agosto de 1954 com o suicídio de Vargas. Em segundo lugar, a oposição a Vargas, em aliança com setores militares, julgou ser aquele o momento mais adequado para impor uma candidatura conservadora que extirpasse o velho populismo nacionalista. Em terceiro lugar, as dissidências partidárias foram a regra dentro dos três maiores partidos: PSD, UDN e PTB. Essas dissidências obrigaram o PSD, pela primeira vez, a fazer intervenções em diretórios estaduais (em Pernambuco e no Rio Grande do Sul) para impor a disciplina partidária.

Depois de várias tentativas visando a uma candidatura de “união nacional”, chegou-se a um elenco de alternativas que espelhavam bem o clima ideológico da época. À extrema direita havia a candidatura de Plínio Salgado; o centro-direita (UDN e seus aliados) apresentava a candidatura de Juarez Távora; o populismo urbano aparecia através da figura do paulista Ademar de Barros (PSP). Em meio a essa oferta, em 3 de outubro de 1955, JK, o ungido do getulismo e da aliança PSD-PTB, foi eleito com apenas 33,82% dos votos, o percentual mais baixo a eleger um presidente até então.

A disputa acirrada, as ameaças militares contra a candidatura de JK, explícitas ou veladas, obrigaram o candidato a pôr em prática uma campanha que não acusava opositores, não lamentava obstáculos, mas enfatizava suas intenções e sua capacidade como realizador. Era uma campanha “voltada para o futuro”, que se explicitava através de metas a serem alcançadas. Foram apresentadas 30 metas de governo, com seus respectivos custos e fontes de financiamento, “coroadas” pela “meta-síntese”: a construção de Brasília. O programa de governo foi sintetizado no lema “50 anos em 5”.

Vencida a eleição, de maneira apertada, começaram as tentativas para impedir a posse de JK, prolongando-se a crise política e militar que se desenhara com o suicídio de Vargas. A oposição udenista tentava impedir a posse alegando não ter o candidato obtido a maioria absoluta de votos e ter recebido o voto dos comunistas – os quais, de fato, explícita e publicamente o apoiaram. Os militares a todo momento entravam em cena, ou para apoiar JK, com o seu Movimento Militar Constitucionalista, ou para constrangê-lo. O calor do debate político acabaria por levar ao Movimento do 11 de Novembro, de que os udenistas sairiam derrotados.

O cenário de intolerância udenista e de ingerência militar direta em assuntos políticos, contra ou a favor de JK, conformava um momento extremamente crítico. Mesmo após a posse dos eleitos, acelerou-se a politização das forças armadas, através da pregação em prol do “soldado cidadão”, protagonizada pela Frente de Novembro, e das campanhas anticomunistas levadas a cabo pela Cruzada Democrática no Clube Militar. Aumentava também a insatisfação daqueles que, mais uma vez, ficaram privados do poder. JK iria responder a esses desafios conciliando, cooptando, produzindo confiança, empreendendo obras e gerando otimismo na sociedade.

Após o suicídio de Vargas, em 24 de agosto de 1954, e a posse do vice-presidente João Café Filho na presidência da República, os principais cargos da administração pública foram entregues a elementos próximos da UDN. Foi com o objetivo declarado de barrar uma conspiração tramada no interior do próprio governo, destinada a impedir a posse do presidente e do vice-presidente eleitos em outubro de 1955 – Juscelino Kubitschek e João Goulart -, que foi deflagrado o Movimento do 11 de Novembro. Segundo seus promotores, tratava-se de um “contragolpe preventivo”.

A tensão que se seguiu à eleição de Juscelino e de João Goulart, provocada pelo descontentamento da UDN e de setores militares com a vitória da aliança PSD-PTB, tornou-se especialmente aguda em 1º de novembro, por ocasião do enterro do general Canrobert Pereira da Costa, presidente do Clube Militar. Na cerimônia, o coronel Jurandir Mamede proferiu discurso no qual, depois de elogiar Canrobert por sua atuação no movimento contra Vargas, criticou abertamente os candidatos eleitos e pronunciou-se contra a sua posse.

Julgando a fala de Mamede um ato de indisciplina, o ministro da Guerra, general Henrique Lott, exigiu sua punição, mas não foi atendido pelo presidente Café Filho, que pouco depois se afastou de suas funções por motivo de saúde. A presidência foi ocupada interinamente por Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados e sabidamente próximo do esquema udenista.

Os acontecimentos se precipitaram no dia 10, quando o general Lott, descontente com a decisão de Luz de não punir Mamede, apresentou seu pedido de demissão. Em reunião dirigida pelo general Odílio Denis, comandante da Zona Militar Leste, os comandantes das guarnições do Distrito Federal e o general Olímpio Falconière, comandante da Zona Militar Centro, com sede em São Paulo, que se encontrava no Rio, decidiram ocupar pontos-chave da capital e forçar o governo a respeitar a disciplina militar. Voltando atrás no pedido de demissão, Lott aderiu ao movimento e passou a chefiá-lo. Na madrugada do dia 11 tropas interditaram o acesso ao palácio do Catete, ocuparam os quartéis de polícia e a sede da companhia telefônica e passaram a controlar as operações de telégrafo.

Como a situação lhes era francamente desfavorável, Carlos Luz, alguns ministros, Carlos Lacerda e o coronel Mamede, entre outros, embarcaram no cruzador Tamandaré e, às 9:00h da manhã de 11 de novembro, rumaram para Santos. A iniciativa fazia parte dos planos do brigadeiro Eduardo Gomes, ministro da Aeronáutica, de organizar a resistência em São Paulo. Sua estratégia foi frustrada pela ação do general Falconière, que partiu de carro para São Paulo a fim de garantir o sucesso do movimento na área sob seu controle. Detido por oficiais da Aeronáutica antigetulistas, Falconière foi autorizado a falar pelo telefone com o ministro Eduardo Gomes e declarou-lhe estar a caminho de São Paulo para defender a legalidade. Como ambos os lados alegavam estar fazendo exatamente a mesma coisa, Eduardo Gomes ordenou sua libertação. Assim, Falconière conseguiu chegar à capital paulista sem enfrentar reação, e o Tamandaré retornou ao Rio, num reconhecimento tácito, por parte de Carlos Luz e seus partidários, da vitória de Lott.

No campo político, a Câmara dos Deputados declarou Luz impedido para o exercício da presidência e designou o vice-presidente do Senado para o cargo. Empossado na presidência, Nereu Ramos reconduziu Lott à pasta da Guerra. A situação voltou a ficar tensa com a melhora do estado de saúde de Café Filho. A possibilidade do retorno à presidência de Café, também considerado envolvido nas articulações contra a posse dos eleitos, foi eliminada mediante a aprovação, pela Câmara e pelo Senado, de resolução que solicitava o seu afastamento. Em seguida, Nereu Ramos obteve a aprovação do Congresso para decretar o estado de sítio por 30 dias.

Em 7 de janeiro de 1956, o TSE proclamou os resultados oficiais do pleito, e no dia 31 seguinte Juscelino e Goulart tomaram posse.

O BRASIL DE JK

Situação e oposição: um equilíbrio delicado

Em comparação com outros períodos da nossa história, os anos JK podem ser considerados anos de estabilidade política. Durante o regime democrático que vigorou de 1945 a 1964, Juscelino foi o único presidente civil que iniciou e concluiu o mandato no prazo previsto pela Constituição. Sua política econômica, centrada no Plano de Metas, recebeu apoio da maioria do Congresso e das forças armadas. Ainda assim, JK teve de conviver ao longo de seu governo com alguns focos de instabilidade.

O lema “desenvolvimento e ordem” adotado nos primeiros dias de governo agradou às forças armadas. Ao mesmo tempo que atendeu a reivindicações específicas da corporação, tanto no plano dos salários como no de equipamentos, JK indicou militares para ocupar cargos de direção em empresas e agências estratégicas como a Petrobras e o Conselho Nacional do Petróleo. A decisão de manter como ministro da Guerra o general Lott, um homem sem partido e com uma folha de serviços impecável, também contribuiu para amenizar as divisões no interior do Exército. Mas isso não significa que não tenha havido problemas. Mesmo contando com o apoio da maior parte do Exército, JK enfrentou a oposição de alguns grupos militares, sobretudo da Marinha e da Aeronáutica. A movimentação desses grupos no período foi intensa, e um dos resultados foi a eclosão das rebeliões de Jacareacanga e de Aragarças.

No plano partidário, graças à aliança do PSD com o PTB, o governo obteve apoio para os seus principais projetos. Nessa aliança, o PSD era, sem dúvida, a força dominante. Era o partido que possuía o maior número de parlamentares e o maior número de ministros e que controlava a política financeira. Entretanto, ao PTB, o partido do vice-presidente João Goulart, também coube papel relevante. Controlando o Ministério do Trabalho e os órgãos ligados à Previdência Social, o PTB exercia forte influência no movimento sindical. Enquanto o PSD congregava setores dominantes do mundo rural, da burocracia governamental criada durante a ditadura Vargas (1937-1945) e da burguesia comercial e industrial, o PTB reunia lideranças sindicais, setores da burguesia industrial mais nacionalistas e parte dos trabalhares urbanos organizados. Mas, para o sucesso da aliança PSD-PTB, era necessário que os dois partidos não radicalizassem suas posições: o primeiro não podia acentuar o seu conservadorismo, e o segundo não podia avançar nas suas reivindicações reformistas e nacionalistas.


Periódico de oposição a Juscelino Kubitschek. Maquis.
Rio de Janeiro, n. 21, mar.1957 (capa).(Foto: FGV)

No Congresso, o grande opositor de JK era a UDN. O segundo partido mais importante do país não lhe dava trégua. Como arma de combate, a UDN contava com a imprensa antigetulista: o jornal Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, e o semanário Maquis, onde escreviam ilustres udenistas como Aliomar Baleeiro, Prudente de Morais Neto e outros. Além de especialista em denunciar escândalos e atos de corrupção, a UDN era obstrucionista, isto é, criava todas as dificuldades para a aprovação de projetos e mensagens enviados pelo governo ao Congresso.

Foi sobretudo no final do governo, a partir de 1959, que os setores oposicionistas ganharam mais fôlego. Enquanto, externamente, JK era pressionado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), internamente, era responsabilizado pela inflação crescente, decorrente dos gastos com Brasília, e pela entrada em massa do capital estrangeiro no país. Além de enfrentar greves e manifestações organizadas por estudantes e trabalhadores urbanos e rurais, o governo sofreu fissuras na sua principal base de sustentação política. Ou seja, as posições mais avançadas que passaram a ser assumidas pelo PTB, em defesa da extensão da legislação trabalhista ao campo e em apoio à reforma agrária, não agradaram o PSD, o que fragilizou a aliança entre os dois partidos.


Campanha de Jânio Quadros à presidência da República.
nov. 1959 (Foto: O Globo)

O processo de sucessão presidencial polarizou o debate político. Setores oposicionistas lançaram o Movimento Popular Jânio Quadros (MPJQ). Jânio era um político de grande popularidade, sobretudo em São Paulo, onde era governador. Embora não fosse udenista, foi lançado pela UDN como candidato à sucessão de JK. Acusando o governo de uso indevido do dinheiro público, Jânio prometia acabar com a corrupção e com a inflação. Seus comícios sacudiam o país. Para enfrentar a oposição, o PSD, apesar das dificuldades, retomou a aliança com o PTB e lançou as candidaturas do marechal Henrique Teixeira Lott a presidente e de João Goulart, mais uma vez, a vice. Mas, como Jango era um candidato forte, e como os votos para presidente e vice-presidente eram desvinculados, o próprio Jânio passou a estimular em todo o país a criação de comitês Jan-Jan: Jânio para presidente e Jango para vice. O movimento Jan-Jan ganhou as ruas, e Jânio e Jango ganharam as eleições.

A revolta de Jacareacanga

Entre outubro de 1955 e janeiro de 1956, os militares antigetulistas, ligados à UDN e liderados pelos ministros Eduardo Gomes, da Aeronáutica, e Amorim do Vale, da Marinha, sofreram sérias derrotas. A primeira foi quando viram Juscelino Kubitschek e João Goulart, apoiados pela aliança PSD-PTB, serem eleitos presidente e vice-presidente da República em 3 de outubro de 1955. A segunda, quando o Movimento do 11 de Novembro, liderado pelo ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Lott, depôs o presidente em exercício Carlos Luz, substituiu Eduardo Gomes por Vasco Alves Seco, Amorim do Vale por Antônio Alves Câmara, e garantiu as condições necessárias à posse dos eleitos. A terceira, quando os eleitos efetivamente foram empossados, em 31 de janeiro de 1956.

Poucos dias após a posse do novo governo, na noite de 10 de fevereiro de 1956, oficiais da Aeronáutica insatisfeitos, liderados pelo major Haroldo Veloso e pelo capitão José Chaves Lameirão, partiram do Campo de Afonsos, no Rio de Janeiro, instalaram-se na base aérea de Jacareacanga, no sul do Pará, e ali organizaram o seu quartel-general. Esses militares temiam uma represália do grupo militar vitorioso no 11 de Novembro e, por essa razão, não concordavam com a permanência, no governo JK, do ministro Vasco Alves Seco na pasta da Aeronáutica.

Dez dias depois do início da rebelião, os rebeldes já controlavam as localidades de Cachimbo, Belterra, Itaituba e Aragarças, além da cidade de Santarém, contando inclusive com o apoio das populações locais. Haviam recebido também a adesão de mais um oficial da Aeronáutica, o major Paulo Victor da Silva, que fora enviado de Belém para combatê-los.

Apesar de ter sido uma rebelião de pequena monta, o governo encontrou dificuldades para reprimi-la devido à reação de oficiais, sobretudo da Aeronáutica, que se recusavam a participar da repressão aos rebelados. Após 19 dias a rebelião foi afinal controlada pelas tropas legalistas, com a prisão de seu principal líder, o major Haroldo Veloso. Os outros líderes conseguiram escapar e se asilar na Bolívia. Todos os rebelados foram beneficiados pela “anistia ampla e irrestrita”, concedida logo depois pelo Congresso, por solicitação do próprio presidente JK.

A revolta de Aragarças

Apesar da anistia concedida por JK aos militares envolvidos na Revolta de Jacareacanga em fevereiro de 1956, o clima de insatisfação e de conspiração contra o governo continuou, sobretudo na Aeronáutica.

A Revolta de Aragarças, que eclodiu em 2 de dezembro de 1959, começou a ser articulada em 1957. A nova conspiração teve a participação do ex-líder de Jacareacanga, tenente-coronel aviador Haroldo Veloso, e de dezenas de outros militares e civis, entre os quais o tenente-coronel João Paulo Moreira Burnier, que foi o seu principal líder. O objEtivo era iniciar um “movimento revolucionário” para afastar do poder o grupo que o controlava, cujos elementos seriam, segundo os líderes da conspiração, corruptos e comprometidos com o comunismo internacional.

Partindo do Rio de Janeiro, com três aviões Douglas C-47 e um avião comercial da Panair seqüestrado, e de Belo Horizonte, com um Beechcraft particular, os rebeldes rumaram para Aragarças, em Goiás. Pretendiam bombardear os palácios Laranjeiras e do Catete, no Rio, e ocupar também as bases de Santarém e Jacareacanga, no Pará, entre outras. Na realidade, nem o bombardeio aos palácios, nem a ocupação das bases chegaram a ocorrer, e a rebelião ficou restrita a Aragarças. A revolta durou apenas 36 horas. Seus líderes fugiram nos aviões para o Paraguai, Bolívia e Argentina, e só retornaram ao Brasil no governo Jânio Quadros.

O movimento sindical urbano

Juscelino Kubitschek assumiu o mandato sustentado por uma aliança, então já consagrada, entre dois grandes partidos: o PSD e o PTB. Segundo analistas, a eleição de JK em 1955 pode ser considerada o “ponto ótimo” dessa aliança, que se iniciou com a eleição de Dutra em 1945 e fez água a partir da eleição de Jânio Quadros em 1960. Juscelino foi, eleitoralmente, o sucessor de Getúlio Vargas, cujo suicídio reverteu um quadro de ascensão política do partido da oposição, a UDN. Sabia, portanto, como todos na época, que só uma sólida união entre o pessedismo e o trabalhismo getulista poderia sustentar sua eleição e posse. A chapa PSD-PTB acabou por se materializar com a escolha de João Goulart, o Jango, para concorrer a vice-presidente ao lado de JK.

É preciso entender a grande importância política que o vice-presidente João Goulart assumiu no governo JK, particularmente no que diz respeito aos contatos na área trabalhista, em que era bastante experimentado por sua condição de ex-ministro do Trabalho de Vargas e de grande líder de seu partido, o PTB. Jango foi o principal contato e o mais importante negociador do governo com o conjunto das lideranças sindicais da época – uma função que teve que administrar com habilidade, sobretudo porque a UDN e seu maior expoente, Carlos Lacerda, jamais abandonaram os ataques e as denúncias de um crescente “perigo sindicalista comunista” que rondaria o país.

A manutenção da “paz e da tranqüilidade” dentro das regras democráticas foi assim uma conquista permanente do governo, para a qual as figuras de Juscelino e Jango muito contribuíram. Pode-se dizer que foi Jango, em grande medida, quem intermediou todos os conflitos que emergiram do mundo sindical e quem absorveu os desgastes inevitáveis, até certo ponto aliviando e preservando JK. Em sua atuação combinaram-se o estímulo à ação dos sindicatos e o controle de manifestações mais radicais que pudessem comprometer a ordem social.

De uma maneira muito sintética, pode-se dizer que os anos JK não foram infensos à ocorrência de agitações na área do trabalho organizado. Houve greves que mobilizaram sindicatos fortes como os dos ferroviários, marítimos, metalúrgicos, bancários e gráficos, em algumas importantes cidades do país. Nenhuma, contudo, com as dimensões dramáticas daquela conhecida como a “greve dos 300 mil”, ocorrida em São Paulo em 1953, ainda no governo Vargas. Nenhuma também como as que iriam ocorrer após setembro de 1961, quando Jango se tornou presidente da República, após a renúncia de Jânio. Ou seja, o que caracterizou os movimentos ocorridos durante os anos JK foi o fato de terem encaminhado demandas que, em geral, foram negociadas mesmo antes de chegar à Justiça do Trabalho. Mas houve greves importantes e muito tensas, como a chamada greve dos 400 mil, que aconteceu em outubro de 1957, no estado de São Paulo.

Além das greves, houve sobretudo a atuação dos sindicalistas, que se utilizaram do momento de distensão política e da posição estratégica e simpática do vice-presidente para conseguir ganhos materiais e simbólicos para os trabalhadores. Foi um período em que a presença dos sindicatos se afirmou no curso das negociações trabalhistas, com suas lideranças ganhando visibilidade e prestígio em função de uma conjuntura política e econômica favorável.

O movimento sindical brasileiro atravessava então uma fase de crescimento (em termos de número de sindicatos e de trabalhadores sindicalizados), que se iniciara quando da volta de Vargas ao poder, em 1951, e que entraria em declínio com a repressão desencadeada pelo movimento militar em 1964. Esse fortalecimento pode ser melhor dimensionado quando alguns aspectos do governo JK são lembrados nesse campo específico. Um deles diz respeito à aceleração do crescimento econômico e do número de empregos trazido pela política desenvolvimentista. Apenas para se ter uma idéia, o PIB do país passou de 20,4% em 1955 para 25,6% em 1960.

Outro aspecto se refere ao poder aquisitivo do salário mínimo, que após muitos anos sofrera uma elevação de 100% no governo Vargas, mas cujos reajustes ocorriam a cada três anos. Durante o governo JK, o prazo desses reajustes foi encurtando, até se chegar ao reajuste anual. O valor real do salário mínimo foi assim mantido, a despeito da inflação então ocorrida. Isso deu à classe trabalhadora urbana uma situação razoavelmente confortável, pois havia emprego e salário. Tratava-se de uma circunstância histórica que, sem dúvida, associava as possibilidades trazidas pela política econômica com a capacidade crescente de pressão dos sindicatos, onde as lideranças de esquerda (inclusive comunistas identificados como tais) ganhavam mais espaço, deslocando os antigos sindicalistas de uma grande e rica máquina sindical montada nos anos 1940.

Em todo esse delicado equilíbrio de forças, a importância do Ministério do Trabalho, controlado por Jango e pelo PTB, é muito significativa. Do ministério e de seu Departamento Nacional do Trabalho, que se desdobrava nas Delegacias Regionais do Trabalho, partiam as orientações e as negociações que garantiam que as reivindicações e greves tivessem um curso não explosivo. Havia assim uma espécie de condução negociada dos conflitos, que associava controle político com boas doses de liberdade sindical. Uma liberdade que se alimentou de recursos de poder que cresceram muito na ocasião, especialmente após a aprovação, em agosto de 1960, da Lei Orgânica da Previdência Social, projeto que estava no Congresso havia anos. Essa lei assegurou aos órgãos sindicais 1/3 dos lugares nos conselhos executivos que fiscalizavam todas as agências da Previdência Social, isto é, os poderosos Institutos de Aposentadorias e Pensões (os IAPs), que se organizavam por categorias profissionais. Não é difícil de imaginar a ampliação da área de ação e do poder que o direito a esse tipo de representação deu ao movimento sindical brasileiro.

A experiência do movimento sindical durante o período JK teria desdobramentos importantes. Eles podem ficar mais claros quando se observa a greve ocorrida em novembro de 1960, já no final do governo Juscelino, quando Jango (já reeleito vice- presidente ao lado de Jânio Quadros) recuou de seu habitual papel de intermediador, numa atitude de, digamos, prudência política. A greve foi claramente reconhecida como uma greve “política”, pois lutava pela “paridade” dos vencimentos concedidos a funcionários civis e militares, já que estes últimos haviam recebido aumentos salariais. Ela atingiu o setor de transportes ferroviários e marítimos, desencadeou uma forte repressão e pode ser pensada como um exemplo das tensões que começariam a ser vividas no decorrer da década de 1960. Essas tensões não só se avolumaram no espaço urbano, como se tornariam mais intensas ainda no setor rural.

Movimentos sociais no campo no período JK

Foi principalmente no governo JK que começou a ganhar evidência um dos mais novos atores na cena política brasileira, o campesinato. Até então restritos ao interior das propriedades, sujeitos à dominação dos grandes senhores, os camponeses começaram a se mobilizar, e a se organizar, lutando por direitos e por terra. É certo que esse processo se iniciou bem anteriormente, pelo menos nos anos 1940. Contudo, foi apenas na segunda metade da década de 1950 que passou a ter maior visibilidade, ocupando as primeiras páginas dos jornais, impondo-se ao debate político, projetando os camponeses nas cidades, nos centros de tomadas de decisão.

Na verdade, se isso se deu, o crédito se deve menos ao governo JK e mais à própria dinâmica dos movimentos sociais no campo. Apesar da presença e das pressões do PTB, seu aliado, JK, oriundo do PSD, partido de forte representação dos interesses agrários, experimentado nas turbulências que o ameaçaram até assumir o governo, optou por evitar tensões desestabilizadoras que certamente adviriam de qualquer medida que pudesse afetar as tradicionais relações de poder existentes no campo. Portanto, não se originou de seu governo nenhum movimento no sentido de efetivamente promover políticas destinadas a reformar a estrutura de propriedade da terra, base do poder dos grandes proprietários. De toda forma, deve-se destacar que uma de suas políticas, a de estimular o desenvolvimento regional do Nordeste via criação da Sudene, terminou por conferir, como um efeito não previsto, uma forte visibilidade a uma das organizações do campesinato, as Ligas Camponesas.


O organizador das Ligas Camponesas Francisco Julião, de
terno escuro, com Zezé da Galiléia, um dos líderes do
movimento. Pernambuco, 8 out. 1959 (Foto: O Globo)

As Ligas tinham suas origens na luta dos foreiros do Engenho Galiléia, em Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata de Pernambuco. Foi lá que a primeira Liga foi criada, em 1955. Desse pólo inicial, elas rapidamente se expandiram por vários municípios, chegando mesmo a estabelecer núcleos em outros estados. Foi no Nordeste, no entanto, que a sua atuação foi mais intensa. A sua projeção nacional, e também a de seu principal líder, Francisco Julião, foi embalada pela visão que se firmou do Nordeste, na década de 50, como região problema, caracterizada por calamidades climáticas como as secas, pela miséria, pela fome, por índices altos de mortalidade e baixos de saúde e educação, constituindo-se, enfim, em uma das representações do atraso. Essa percepção se difundiu por obra de um setor das elites locais, de políticos, de empresários, de religiosos e de intelectuais como Celso Furtado, que passaram a mobilizar recursos e a pressionar o governo para que fossem implementadas políticas que beneficiassem a região. A correção dos problemas do Nordeste era apresentada como um passo importante para aprumar o curso do desenvolvimento da nação como um todo. Foi desse movimento que resultou a criação da Sudene, em 1959.

Juntamente com a percepção do Nordeste como região-problema, afirmou-se o diagnóstico de que na raiz de todas as suas mazelas encontravam-se o latifúndio e os proprietários tradicionais. Os latifundiários foram mesmo apontados como beneficiários das secas, acusados de canalizar em proveito próprio os recursos do antigo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS). “Industriais da seca”, tal foi o termo utilizado pelo jornalista Antônio Calado, do Correio da Manhã, para referir-se a eles.

Nesse contexto, a mobilização no campo passou a ser vista como resposta lógica, como conseqüência inevitável da situação existente, e, mais do que isso, como uma antecipação do que ocorreria no país como um todo, caso não se realizasse uma reforma agrária. Tal era o sentido dos versos do “Hino do Camponês”, composto por Francisco Julião ainda em fins dos anos 1950:

“Não queremos viver na escravidão
Nem deixar o campo onde nascemos
Pela terra, pela paz e pelo pão:
Companheiros, unidos venceremos.

Hoje somos milhões de oprimidos
Sob o peso terrível do cambão
Lutando, nós seremos redimidos.
A Reforma Agrária é a solução.”

As eleições de 1958 e o crescimento do PTB

Em 3 de outubro de 1958, transcorrida a primeira metade do governo Juscelino Kubitschek, realizaram-se eleições para governador em 11 estados, para a Câmara dos Deputados, para 1/3 do Senado, para as assembléias estaduais e para a Câmara de Vereadores do Distrito Federal. Essas eleições refletiram importantes mudanças socioeconômicas ocorridas no país. No âmbito regional, ficou patente a perda de espaço da oligarquia agrária que até então detinha inquestionavelmente o poder. No âmbito nacional, ficaram claros os problemas da tradicional aliança PSD-PTB, desequilibrada pela expansão do PTB.

A aliança PSD-PTB, vitoriosa nas eleições presidenciais de 1955, começou a apresentar dificuldades já na preparação das eleições de 1958, quando ocorreram apenas acordos locais. Concomitantemente a um início de afastamento do PTB em relação ao PSD, percebia-se uma aproximação maior do PTB com o PCB, que apoiava os candidatos nacionalistas, afirmando que a luta pelo nacionalismo era a questão política fundamental. Os inimigos eram todos aqueles que apoiavam o capital estrangeiro, então chamados de “entreguistas”.

O PTB teve um bom desempenho eleitoral, elegendo 66 deputados federais num total de 326. Para o Senado, num total de 21, elegeu cinco representantes. Para os governos estaduais, foram também eleitos cinco candidatos petebistas: Gilberto Mestrinho no Amazonas, Francisco das Chagas Rodrigues no Piauí, José Parsifal Barroso no Ceará, Roberto Silveira no estado do Rio de Janeiro e Leonel Brizola no Rio Grande do Sul. Todas essas candidaturas foram apoiadas por alianças do PTB com outros partidos, mas apenas no Amazonas e no Ceará delas fez parte o PSD.


Esq./dir.: (1º plano) Leonel Brizola, Oswaldo Aranha e
Roberto Silveira. (Crédito da foto: Oswaldo Aranha)

O delineamento de um quadro de maior complexidade interna no PTB, aliado à expansão eleitoral do partido, começou a acirrar as contradições com o PSD. O crescimento do PTB e sua penetração no campo, na medida em que solapavam as bases do PSD, subtraindo contingentes eleitorais e reduzindo a área de influência pessedista, evidenciavam a inviabilidade da antiga aliança.

Essa expansão do PTB decorreu, na verdade, de um trabalho de organização partidária que se estendeu ao nível municipal, permitindo a penetração do partido no campo. Outro fator importante foi a existência no país de uma estrutura sindical relativamente forte. A expansão do partido, entretanto, colocou para ele próprio um desafio, pois abriu espaço para o surgimento de novas tendências e para o acirramento dos conflitos internos já existentes.

O PSD, por seu turno, também enfrentava problemas internos. Embora as dissidências pessedistas se tenham reincorporado ao partido após a posse de Juscelino, os problemas nascidos na campanha eleitoral de 1955 não foram completamente resolvidos e iriam refletir-se nas eleições de 1958. A modificação da legislação eleitoral, que passou a exigir o retrato do eleitor no título eleitoral, diminuindo consideravelmente o “eleitorado fantasma” do interior, foi outra circunstância que acabou prejudicando o PSD. Finalmente, a ausência de Amaral Peixoto do comando do partido durante a campanha — desde o início do governo Kubitschek, Amaral ocupava o posto de embaixador em Washington — foi nociva ao desempenho eleitoral do PSD, pois acumularam-se as cisões nos estados.

Apesar de todos esses entraves, o PSD ainda conseguiu assegurar a maioria na Câmara dos Deputados, conquistando 117 cadeiras. Já no Senado seu desempenho foi mais fraco, pois apenas seis senadores pessedistas foram eleitos. Nos estados, os resultados foram ainda piores: o PSD só elegeu dois governadores, o de Goiás, José Feliciano Ferreira, e o do Espírito Santo, Carlos Fernando Lindenberg, este com apoio do PSP.

As eleições de 1958 interromperam o longo domínio do PSD em alguns estados brasileiros. Em Pernambuco, onde o partido governava desde 1947, o udenista Cid Sampaio, apoiado pelo PTB e pelo PCB, derrotou o pessedista Jarbas Maranhão. No Estado do Rio e no Rio Grande do Sul, o PSD perdeu para o PTB.

Um balanço final desse pleito indicava que a curto prazo a estabilidade do governo JK não seria abalada, mas que começava um processo de polarização política que teria sérios reflexos para o futuro da democracia no país.

JK e as eleições presidenciais de 1960

A conhecida frase de Ernani do Amaral Peixoto – “para Juscelino não existia 60, só 65” – define bem a atuação do então presidente da República nas eleições que iriam indicar o seu sucessor. Pode-se mesmo ir além e afirmar que, desde 1958, quando se realizaram eleições para o Legislativo e para os governos estaduais, JK já se movimentava no intuito de garantir sua volta ao governo do país. Como a possibilidade de reeleição em 1960 lhe era negada pela Constituição de 1946, a solução seria montar, com antecedência confortável, uma estratégia capaz de garantir em 1965 o objetivo sonhado.

Um dos primeiros movimentos nesse sentido foi a criação, em novembro de 1958, do Grupo de Ação Política (GAP). Formado por políticos e assessores muito próximos de JK – Vítor Nunes Leal, Armando Falcão, Eurico Sales, Renato Archer, Osvaldo Penido, entre outros -, o GAP, cujo objetivo declarado era avaliar a atuação do PSD nas eleições realizadas no mês anterior, foi sobretudo o lugar onde o presidente começou a discutir uma dupla possibilidade, intimamente ligada ao seu futuro político.

Em primeiro lugar, levantou-se a hipótese de o PSD não apresentar candidato próprio nas eleições presidenciais de 1960. Argumentava JK que seria melhor para o partido não concorrer, uma vez que, dada a difícil situação econômico-financeira do país, o próximo presidente teria que adotar uma política de austeridade monetária e de restrição fiscal que certamente lhe renderia forte impopularidade. Por que não poupar o PSD desse desgaste e deixá-lo livre para propor uma política de volta ao desenvolvimento e à prosperidade? Não era difícil concluir quem seria o candidato pessedista a levantar essa bandeira em 1965.

Para que essa parte da estratégia desse certo, seria preciso afastar todos os nomes do PSD que pudessem ter uma voz suficientemente forte dentro do partido para postular a candidatura presidencial em 1960. José Maria Alkmin e Ernani do Amaral Peixoto, candidatos em potencial, foram deliberadamente afastados das esferas centrais do poder e, por isso mesmo, viram-se incapacitados de articular suas candidaturas dentro do partido.

A segunda possibilidade discutida – talvez mais polêmica que a de o PSD não apresentar candidato – seria a realização de uma aliança com a tradicional adversária UDN em torno de um nome de “união nacional”. O preferido de JK era Juraci Magalhães, que havia buscado, durante o período em que fora presidente do partido oposicionista (1957-59), um entendimento com a Presidência da República, até mesmo favorecendo a aprovação da mudança da capital para Brasília. Como de costume, Juscelino pretendia matar dois coelhos de uma cajadada só. Mais importante do que desgastar politicamente os udenistas, que seriam obrigados a fazer uma política austera, e portanto impopular, era armar uma coalizão de centro-direita e, por conseqüência, isolar a esquerda, que estava em processo de crescimento eleitoral, como ficara demonstrado nas eleições.

O crescimento do PTB nas assembléias estaduais, capilarizando o poder de uma máquina política que se revelava muito eficiente nos centros urbanos, era uma das maiores preocupações de JK para 1965. Ser obrigado a compor politicamente com um PTB fortalecido em áreas sob o tradicional domínio do PSD o colocaria em uma posição pouco confortável para se firmar como cabeça de chapa frente a um vice petebista, tal como ocorrera em 1955. Ainda mais com o fortalecimento da ala esquerda do PTB, muito bem representada na Frente Parlamentar Nacionalista.

Afinal, nenhuma das duas hipóteses se concretizou, e o PSD lançou seu candidato, mais uma vez em aliança com o PTB. A apresentação do nome do general Henrique Lott foi bem vista por Juscelino, que não via chances nessa candidatura, apoiada pela Ala Moça do PSD e pela Frente Parlamentar Nacionalista, e percebia sua possível derrota como uma oportunidade para desgastar aqueles setores, que haviam resistido à sua proposta de “união nacional”. Do lado da UDN, Juraci Magalhães, tachado de líder dos “chapas-brancas” – como eram chamados os deputados que apoiavam os projetos do governo – acabou perdendo a indicação para Jânio Quadros, que era apoiado pela “Banda de Música”, com Carlos Lacerda à frente.

Postas as candidaturas, JK ocupou o lugar que avaliou ser o que melhor lhe caberia naquele momento: o de magistrado supremo da nação, a comandar, com a maior neutralidade possível, o processo eleitoral que indicaria seu sucessor. Como as candidaturas a presidente e a vice-presidente eram desvinculadas, os eleitores escolheram, para ocupar a presidência, o candidato da UDN, e a vice-presidência, o do PTB – ou seja, elegeram Jânio e reelegeram João Goulart, o Jango, atestando o êxito do movimento Jan-Jan. Passada a faixa presidencial para Jânio em 31 de janeiro de 1961, JK acreditou que teria bastante tempo – cinco anos – para preparar o caminho de volta. A história não foi bem assim: a bandeira do “JK-65”, já desfraldada, acabou sendo enterrada em 8 de junho de 1964, quando seu nome encabeçou uma lista de mais de 500 punidos pelo governo militar com a cassação dos direitos políticos.

JK e a politica da ex-capital

Criador de Brasília, símbolo maior da meta de “50 anos em 5”, foi contudo na cidade do Rio de Janeiro que Juscelino Kubitschek exerceu quase todo o seu governo. A então capital federal, “caixa de ressonância” das questões nacionais, com sua população alfabetizada e concentrada no meio urbano, representava um dos mais expressivos contingentes eleitorais do país. Por isso mesmo, seu futuro político era um tema do qual o presidente não queria e nem poderia ficar distante. JK sabia que, para fechar seu governo em 1961 e, sobretudo, para preparar a volta ao palácio do Planalto cinco anos depois, era indispensável ter uma política traçada para a ex-capital.

A política carioca era, no entanto, um grande desafio para JK. A começar pelo fato de que, nas eleições presidenciais de 1955, o eleitorado da cidade havia preterido seu nome em favor de outro candidato, o ex-governador paulista Ademar de Barros. Pode-se atribuir esse fracasso, em boa medida, à fragilidade do PSD diante do quadro de polarização político-partidária que marcava a política do Rio de Janeiro: de um lado, o PTB de Vargas; de outro, a UDN de Carlos Lacerda.

Não é, pois, difícil entender a preocupação, e conseqüentemente, a atuação de JK em relação ao futuro político da cidade que ia deixar de ser a capital do país em 1960. Para Kubitschek, mais importante do que a definição jurídica do estado da Guanabara dada pela Lei San Tiago Dantas, era a candidatura de Carlos Lacerda ao governo do novo estado. Tribuno implacável, dono de uma oratória demolidora, Lacerda fora figura de proa nos eventos que levaram ao suicídio do

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