Com Os Becos do Homem, Jorge de Souza Araújo estreou na poesia.
Esse livro foi escrito desde o início dos anos 1970, durante o período
de ditadura no Brasil, e publicado em 1982. Nele o poeta oferece uma poesia
densa, reflexiva, engajada, “pois se funda em duas direções
políticas, a da inutilidade de certa ordem e a da incapacidade dos homens
dessa ordem”, como afirma Antônio Houaiss no prefácio do
livro.
Nesta obra, Jorge Araújo transita pelas redondilhas, pelo haicai, pelo
verso livre e pela metapoesia.
O autor lapidou seu estilo lendo Ferreira Gullar, Drummond, Bandeira, Jorge
de Lima, Baudelaire, Rimbaud, Verlaine e por isso possui um dos instrumentos
essenciais para o poeta na modernidade: dizer densamente aquilo que pretende
trafegando pelo indizível, mas sabendo sempre o que dizer, como no poema
“Acalanto”:
(…)
Os sentimentos do homem
os seres do homem
os pesares do homem
lançaram-se no abismo
do consumo das coisas
fora de sua alma
O que o homem hoje diz
não corresponde ao eco
de sua destinação
(…)
Só uma eiva salva o homem hoje
da condenação de si a si mesmo
porque Herodes de seu menino
avatar de sua história
Ao homem só resta reencontrar-se
nas retinas do mundo.
Fulgurante, seu verso é valioso, quase inesgotável, e convida
o leitor a voltar inúmeras vezes, pois é feita de inquietação
a sua poesia; poesia que consegue estabelecer uma ligação orgânica
de suas vivências e crenças pessoais com os anseios coletivos de
grande complexidade. Por isso não se pode pensá-la como destinada
a ser lida apenas em silêncio.
Os poemas de Os Becos do Homem foram feitos para serem ditos em voz
alta, nas praças, a plenos pulmões, para que todos possam conhecer
uma obra que vai fundo no sentimento humano, pois segundo José Maurício
Gomes de Almeida, a poesia de Jorge Araújo “assume integralmente
esta marca suja da vida”.
Acompanhe o poema “Presságio”:
Tempo haverá em que o medo
será artigo de quinta categoria
nas prateleiras do esquecimento
Então nos despediremos
da exatamência deste vil
relógio do tempo
a que nos vendemos hoje
e cruzaremos fartos de coragens
a fronteira doida do imenso vale
de nossa solidão
no exercício enfim da liberdade.
O poema retrata a ânsia do autor à espera de um tempo em que
os grilhões da ditadura seriam quebrados, pois o Jorge Araújo
socialista e humanista não tinha, naquele tempo, grandes motivos para
se animar com os rumos da abertura política no país, pois quase
todos os fatos corroboravam para a crença de que muita água ainda
passaria sob aquela ponte antes da tão almejada democracia. Essa veio
a acontecer em Janeiro de 1985 com a eleição de Tancredo Neves,
quase três anos depois de a obra vir a público.
Era um tempo de ânsia e de expectativa retratado no poema “Leitura
de Jorna”l:
Inquieto-me hoje
assim como ontem
e amanhã de igual forma
por essa multidão de sombras nos assuntos
dos jornais
essa procissão de sonhos nos assuntos
dos jornais
sem pouso nem porto certo
E se me arruíno e me intimido
e se me dou violenta surra moral
devo estourar os miolos
jogar-me da ponte sobre o mar
antes de virar a folha
dos assuntos dos jornais?
De mal a mal
na última página do primeiro caderno
dos assuntos dos jornais
desta terça-feira dia tal do ano tal
encontro algumas alternativas (enfim!)
o flamengo tem tudo para sagrar-se
campeão das nossas sempiternas esperanças.
O poeta pensa a própria poesia a partir dos instrumentos que possui
e assim questiona a sua condição ontológica em um espaço
que privilegia cada vez mais o valor utilitário das coisas. Por isso
leia o metapoema “Querido Lavoisier”:
Já em poesia
nada se transforma
tudo se cria
o nada transforma
o tudo em cria
na forma do poema
tudo há e nada havia
(no sobre
tudo se lia
no sabre nada se via)
mas transformar a poesia
– é tudo e nada, sabia?
Poesia de nada servia?
Poesia em tudo, seria?
Formas de tudo sorvia
Transe do nada sumia
– Lavoisier, sem folia
a poesia, noite e dia
seduz a melancolia.
Fonte: Gustavo Felicíssimo, para o Jornal Agora