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Os brutos, de José Bezerra Gomes

by Lucas Gomes

O romance Os Brutos, romance de estréia do norte-rio-grandense José Bezerra Gomes, publicado
em 1938, na década áurea do romance regionalista moderno, é uma obra que nasce
e se alimenta da contradição. Não porque o autor cometa algum lapso de composição,
mas porque parece ser exatamente esta a sua finalidade: expor o que há de mais
contraditório em sua aldeia.

O contexto ficcional de José Bezerra Gomes é a região do Seridó, a cidade de Currais Novos e
as plantações de algodão, onde o autor construiu seus personagens no universo deste sertão
norte-rio-grandense.

Naquela década de 1930, Currais Novos, como todo o Seridó, era um pólo de riqueza no Rio Grande do Norte.

Dois seridoenses — José Augusto e Juvenal Lamartine — descendentes da tradicional oligarquia algodoeiro-pecuária
sertaneja, haviam assumido o governo do estado recentemente. O primeiro de 1924 a 1928 e o segundo de 1928 a 1930.
Eles constroem estradas ligando a capital ao interior, para facilitar o escoamento da produção do algodão. O que,
segundo Humberto Hermenegildo de Araújo, em “Modernismo: anos 20″…, dá ao estado uma certa feição moderna, devido
à movimentação e conseqüências que esses fatos trazem.

Não obstante essa modernidade, Bezerra Gomes situa seu romance em uma aldeia “atrasada”,
colocando aí alguns poucos, mas significativos elementos caracterizadores da modernidade,
de par com outros que denotam seu atraso.

O elemento moderno é evidenciado em Os Brutos através do primeiro automóvel
da cidade, pertencente a seu Tota, comprador de “algodão na folha”, que ganha
muito dinheiro com esse negócio; e o atraso da aldeia, pelo “povo olhando admirado
para o carro”. Aqui convivem o moderno e o tradicional. Mas um moderno que só
se configura de forma externa, porque seu Tota vive em Natal e só aparece em Currais
Novos em suas viagens de negócios.

Já no tradicional, José Bezerra utiliza não o discurso propriamente dito, mas
um elemento da igreja — o sacristão — para problematizar esse discurso, mostrando
a sua contradição, e da própria sociedade que tradicionalmente é regida por ele.
Tradição que também se expressa na festa de Quinze de Novembro, encerramento das
aulas do grupo, quando uma mãe se orgulha do filho que declama o poema “A Pátria”,
de Olavo Bilac, visto pelos modernistas como símbolo do conservadorismo academicista.
Também está presente nos hábitos que as famílias abastadas tinham em mandar seus
filhos homens estudar fora:

“Os meninos que tinham ido estudar no Colégio Santo Antônio em Natal estavam voltando. Naquele ano de safra
só de Currais Novos tinham ido doze. Seu Aproniano tinha um filho que acabara o curso ginasial no Atheneu
e ia estudar Medicina na Bahia. Também estava sendo esperado um filho de seu Vivaldo, que vinha formado em
Direito”
(Os Brutos).

Além dos patriarcas, donos das fazendas, com suas grandes famílias, a exemplo de seu Totonho — avô do narrador da
estória — a quem pertence as Moradas, propriedade vasta a perder de vista.

Ao contrário de José Américo de Almeida e José Lins do Rego, que têm como temática a decadência da cultura
da cana-de-açúcar na Paraíba, Bezerra Gomes narra uma cultura em franca expansão. Ele conta a saga de uma
família ambientada num espaço e num momento dos mais produtivos, como fica patente no início do romance
(apesar de o curso da estória tomar outro rumo), onde um sujeito empolgado com o lucro da safra do algodão, dá
banho de cerveja em cavalo e acende charuto com nota de cem mil réis. Teria assim iniciado o romance do “ciclo
do algodão”, como José Américo de Almeida iniciou o ciclo da cana-de-açúcar e Jorge Amado, o do cacau, como
afirma Nei Leandro de Castro em Os Brutos: pioneirismo e atualidade, prefaciando a segunda edição.

Homem de idéias socialistas, em Os Brutos, romance de caráter social, como a maioria dos seus contemporâneos,
José Bezerra parece querer denunciar a contradição do capitalismo existente no negócio do algodão na região Seridó,
onde quem produz não fica com nada e quem dele se beneficia é uma pequena minoria. E o algodão que é um
influenciador da modernidade no Rio Grande do Norte, no entanto, não moderniza a região que mais o produziu,
pois não são criadas indústrias que o beneficiem, mas toda a produção e, conseqüentemente, a maior parte
das divisas, são exportadas para outras regiões, com a facilidade proporcionada pela “estrada grande” construída
pelos governadores e que, contraditoriamente, levará Segismundo e sua família para fora de sua região, em cima
de um caminhão.

Detalhe importante, mas que passaria despercebido a um leitor desavisado, é o nome do romance: “Os Brutos”.

Termo que só é referido uma única vez, na voz de Branca — mãe de Segismundo — quando o repreende porque
não o quer misturado com os trabalhadores do Sítio Alívio, a quem ela chama de “brutos do oco do mundo”.

Brutos não são apenas os trabalhadores do Alívio, mas toda uma sociedade de brutos, de incivilizados. É a sociedade
recalcada pela tradição católica que cobra de João sacristão (homem da igreja!), uma prova de sua masculinidade,
mesmo que seja com uma prostituta. É o tio Lívio que mata Rica (sua amante) com uma facada no peito, por
ciúmes. São os que mataram um homem anônimo que Segismundo ver na feira esfaqueado e de boca aberta. É
o sujeito que dá banho de cerveja num cavalo e acende charuto com nota de cem mil réis, num ato de pura
brutalidade e exibicionismo.

Essa classificação que José Bezerra faz pode ser comparada ao que diz um personagem de M. J. Gonzaga de Sá,
destacado por Osman Lins, em Lima Barreto e o espaço romanesco: “Não são os de alma branda e sim os bárbaros
que governam o mundo, cuja organização desdenha o saber e a poesia”.

De acordo com esse pensamento, bruto também seria seu Tota que, agindo em conformidade com os desígnios do
capital, executa uma dívida e toma o Alívio da família de Segismundo, fazendo com que todos tenham que migrar
para o sul do país.

Dessa forma José Bezerra Gomes sendo homem de saber e sensibilidade de poeta, pois é também poeta, sintetiza, com
precisão, a sociedade curraisnovense de sua época, numa linguagem moderna que vai de encontro a essa sociedade
que não incorporou a modernidade. Modernidade que, se por um lado não é vivenciada pela sociedade em geral,
por outro, é captada pelo autor, porque teve outras vivências fora da aldeia, assim como os meninos referidos
no romance de Bezerra Gomes, que “foram estudar fora”. Estes, contraditoriamente — representantes dos
costumes de tradicionais famílias — são também aqueles que passam a exercer novas infl uências na aldeia. E, no
caso do autor, é ele que, através de seu romance, registra os elementos modernizantes, se instalando na sociedade
tradicional e com isso expõe o descompasso que há entre ela e a efervescência da modernidade que, há tempos,
ocorre em outras partes do mundo.

Estrutura do romance

Narrado em primeira pessoa, onde quem fala é simultaneamente personagem e testemunha dos fatos, o enredo de
Os Brutos desenvolve-se em uma sucessão de eventos organizados em sintéticos capítulos, podendo-se
dividi-lo em duas partes:

a primeira parte corresponde à descrição das experiências de vida de um menino, durante sua
estadia na casa do seu tio, em Currais Novos;
a segunda parte inicia quando Segismundo é levado de volta ao Alívio, sítio onde se localiza
a residência de seus pais.

Em Os Brutos, o foco narrativo recai sobre o olhar de um garoto desprovido de inocência e meio adulto. O
romance evolui sob o ponto de vista de um personagem que fala da posição de um observador, que se faz presente à
narrativa, mas sem grande atuação. Tal é a sua participação que somente no 17º capítulo é que o leitor
toma conhecimento do seu nome: “… os moradores só me conheciam pelo filho de Dona Branca. Os trabalhadores eram que
me chamavam de seu Segismundo, pelo meu nome”
. (GOMES, 1998, p. 45)5

O fato de Segismundo ser testemunha reflete a intenção de autenticar a narrativa. Porém, observa-se uma contradição,
pois esse tipo de narrador geralmente é manifestado através de um personagem maduro uma vez que sua
experiência é fator preponderante para tornar-se narrador. E, no entanto, isso não acontece em Os Brutos, pois
Segismundo tem muito mais a aprender do que a ensinar. Nesse sentido, o caráter clássico do narrador em estudo é relativizado:

Tio Lívio parou na porta de uma casa e entrou depois. Entrei também e me sentei ao
seu lado, nas cadeiras da sala, junto de uma mesa coberta com uma toalha de rendas
brancas e um espelho grande pregado na parede. Rica morava ali veio lá de dentro
rindo e tão criança eu devia ser que se compadeceu de mim:
– Não bote o menino a perder desse tamanho, homem mais em juízo.
(p. 18-19)

Esse personagem central a quem é delegada a função de contar a história deixa
nítidas marcas que atestam a sua presença. Conhecedor da vida de todos, ele assiste a
tudo, embora o seu comparecimento à narrativa não atinja um alto nível de
importância, pois em algumas passagens observa-se a sua participação no papel de
espectador. Assim sendo, em algumas ocasiões esse narrador tem a sua onisciência
comprometida.

Nesse sentido, percebe-se uma tensão no foco narrativo, pois o narrador em
primeira pessoa, que vivencia os fatos, também assume uma postura ou ponto de
vista oposto, ao narrar como quem simplesmente toma lugar na platéia. É essa tensão
que caracteriza o texto de José Bezerra Gomes enquanto fazer artístico da
modernidade, tendo em vista que esta se apresenta sob o prisma do paradoxo e da
ambigüidade.

Enquanto máscara verbal do autor de Os Brutos, Segismundo utiliza duas
perspectivas de narração (segundo o desígnio do autor). A narração em primeira
pessoa, a qual leva-o a ter seus horizontes limitados, pois nada parece saber da
história. Assim como, observa-se também que o narrador passa a maior parte do
tempo contando fatos de outros, como se narrasse em terceira pessoa. Nesse sentido
ele parece tudo conhecer da história, inclusive os detalhes.

Dessa forma, através da visão “com” (primeira pessoa protagonista) o
narrador age sob a ação da refração, do olhar-se. Seu campo encontra-se restrito,
tendo em vista a impossibilidade de desviar o foco de si. Quando em terceira pessoa,
o narrador adquire uma maior mobilidade podendo situar-se em dois campos de
visão: “por detrás” ou “por fora”.

Segismundo tem o turno em suas mãos ao longo da história e em poucas
situações o divide com outra pessoa. Daí o fato da narrativa conter pouquíssimos e
descontinuados diálogos. Entretanto ele não torna o enredo cansativo, visto que a sua
preocupação está em relatar dramas pessoais (como o dele e o da sua família),
algumas vezes picantes, outras vezes comoventes, vividos por personagens que
fatalmente seriam confundidas com pessoas reais. A sua atuação dá-se de forma
periférica, visto que ele não interfere na natureza da narrativa, como também não faz
uma análise apurada dos acontecimentos. Seus comentários são superficiais, pois sua
preocupação está em retratar as ações, os dramas ficcionais.

Encoberto e protegido pelo narrador, o autor, enquanto manejador de
disfarces, materializa suas impressões do mundo em seres imaginários, porém vivos
no contexto literário. Ele reproduz falas, gestos, atos, pensamentos, episódios de vida,
juízo de valor:

Meu avô ia até o alpendre e gritava por Deusdado… Pai Totônio mandava então
buscar o seu cavalo na cocheira e ele mesmo o selava (…)
Mandava chamar os moradores e os reunia ali:
– Bando de preguiçosos… Ganhando sem fazerem nada… Pensam que já morri,
mundiça? Estão enganados…
(pág. 56)

Dessa forma, as atitudes dos personagens frente à visão do narrador são
determinadas pela leitura que a consciência criadora tem das pessoas reais. Porém
não se deve sair em busca de explicações plausíveis na análise da obra literária, nem
tirar conclusões forçosamente pautadas em coincidências.

Enquanto representações sociais e manifestações estereotipadas da relação
sujeito-mundo, os personagens agem, sentem, pensam e falam conforme o sopro de
vida que lhes foi dado. O sujeito portador da representação, ainda que fruto do
imaginário, é resultado de uma imagem intercambiada entre experiência e
intervenção social.

No romance, observa-se o entrecruzamento de tipos humanos, os
quais se encontram em constante movimentação. Inexiste a pretensão de
reconstituição do real, porém não se pode negar a presença de elementos verossímeis,
já que eles se fazem presentes à obra.

Esse é um romance de costumes feito ao molde da narrativa de reminiscências.

Esse tipo de narração esteve em voga entre os modernistas. José Lins do Rego, Guimarães Rosa e o próprio Mário de Andrade
escreveram sob a ação de reminiscências. Essa tendência de retratar situações cotidianas é fator de excelência da proposta
modernista, pois é através de escritura como essa, que se pode apreciar a diversidade cultural registrada em diferentes obras.

O autor de Os Brutos utiliza-se de dois recursos característicos da época (neorealismo de 30):
a aproximação da ficção com o real e o compromisso com a veracidade dos fatos:

A doença de Tio Lívio tinha subido para a cabeça e o ciúme tomado conta de seu coração. Vivia brigando com Rica,
desconfiado de que a puta o traía com Jesus e a matou dormindo com uma facada no peito.

(…)

A casa de Rica no Aterro estava repleta de povo que tinha vindo olhar a morta. Assim num canto da sala, chorava
Ondina, chorava Chica Xenxém, chorava Maria dos Homens, choravam juntas todas as mulheres do Aterro.
Haviam trazido o corpo para o meio da sala e estava estendido numa esteira de carnaúba no chão.
(p.35)

Amplamente explorados pelas obras regionalistas, esses recursos são os responsáveis diretos pela verossimilhança
expressa nos romances que se incluem nessa categoria.

Trata-se de uma narrativa personativa, visto que um único personagem detém a autoridade sobre o discurso e o mantém
ora em torno de si próprio, ora sobre terceiros. É através dos seus olhos que o leitor vê o mundo ficcional.

O enredo de Os Brutos assinala a presença de uma célula dramática central (o
drama pessoal de Sigismundo), onde ao seu redor desenvolvem-se pequenas intrigas
formando um anel periférico de situações tragicômicas, que em algumas ocasiões
adquirem proporções acima do elemento centralizador do romance.

O ponto de vista do autor implícito sobre a narração de Segismundo denota a
criação de personagens tipos, expostos num jogo de relações que põem em questão
valores sociais como: honestidade, fidelidade, lealdade, solidariedade etc.

É inegável o fato de que o autor de Os Brutos cria uma história empolgante,
por isso sua leitura não é tediosa, porém o seu leitor sente a falta de um desfecho
mais coerente e substancioso. Observa-se certa dificuldade do narrador em
estabelecer ligação entre as histórias que se cruzam (Seu Tota, Jesus, Tio Lívio, João,
o Barão e a esposa etc), e isso torna a narrativa incompleta e fragmentada. Em
algumas situações ele perde o fio da meada, por exemplo: quando a narração é
transferida para a zona rural, Sigismundo esquece-se completamente de Jesus, do Tio
Lívio, Tio Abdias e Tia Maria etc; ou seja, ele não finaliza satisfatoriamente a
participação desses personagens.

Dois mundos paralelos se apresentam na narrativa de José Bezerra Gomes: o
ambiente citadino em contraste com o agrário. Por um lado, está a cidade e seus
atrativos, as intrigas, as convenções sociais, os costumes interioranos. Por outro lado
tem-se a paisagem e os problemas do campo, também retrato do Brasil atrasado que
desde o final do século XIX corre em busca do bonde dos tempos modernos. Essa
problemática posta pelo autor, que, aliás, não constitui uma inovação estética,
representa o fio condutor da escritura de Os Brutos. É a presença do grotesco que
nomeia o romance: os brutos eram os empregados da fazenda que trabalhavam de sol
a sol no eito na construção de um açude:

– Não quero você misturado com essa cabroeira. São uns brutos do oco do mundo que
não têm o que dar.
Não me queria na companhia deles que me podiam botar a perder.
(pág. 45)

Uma gente bruta, sem instrução e ignorante divide o mesmo espaço ficcional
com doutores, comerciantes etc; o texto apresenta personagens divididos em classes
sociais bem distintas.

Numa narração sucinta com o emprego de uma linguagem simples, sem
períodos longos ou palavreados difíceis, o narrador encaminha a história à reflexão
sobre os dramas existenciais de seus personagens, o problema da seca, a vida sofrida
do homem do campo, o poder dos homens e o papel da mulher na sociedade
patriarcal, assim como a questão do abandono da terra em virtude da seca e da falta
de recursos.

Enquanto registro histórico, essa obra reflete um resgate da cultura
nordestina. Nela percebe-se a inserção de elementos pertencentes ao mundo externo
à narrativa, tais como: o advento da modernidade e as transformações ocorridas nas
pequenas cidades do interior do Brasil; os dramas do sertanejo e sua luta constante
com a terra. Enquanto manifestação literária ela exprime uma visão particular que
traz consigo memória, vivência e crítica social.

Foi através da ficção de José Bezerra Gomes que o sertão do Seridó norte-rio-grandense foi apresentado ao Brasil.

Fontes: PREÁ, Revista de Cultura, RN | Vilma Nunes da Silva, Professora da Faculdade do Seridó (RN)

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