Home EstudosLivros Os desastres de Sofia (Conto das obras Felicidade clandestina e A legião estrangeira), de Clarice Lispector

Os desastres de Sofia (Conto das obras Felicidade clandestina e A legião estrangeira), de Clarice Lispector

by Lucas Gomes

Este longo conto também alude, como no conto “Felicidade Clandestina”, a um livro
infantil: Os Desastres de Sofia, da Condessa de Ségur, grande sucesso na
França e no Brasil até meados do século XX. Também neste caso a alusão não parece
ser gratuita. Muitos elementos neste livro são de importância fulcral para a autora.
O nome da menina, por exemplo, que significa “sabedoria”, entra em choque com a
sua atuação dita “desastrosa” no mundo, narrada sob a forma de episódios onde a
efabulação conduz a uma inevitável “moral da história”, de cunho fortemente
religioso e repressor. Expressa por um adulto, em geral a mãe, que ocupa o lugar da
educadora, esses ensinamentos direcionam-se sempre ao julgamento e à condenação
dos atos da criança, desfiando os itens de uma cartilha de normas sobre a formação
de uma “menina exemplar”.

O conto “Os desastres de Sofia”, focaliza o ambiente escolar. A menina Clarice é
mais velha que Sofia, tem nove anos. Como Sofia, ela também trava uma disputa
com um adulto, não a mulher e mãe, mas um homem e professor. E como Sofia,
também sai derrotada, mas por razões diferentes. Enquanto a Condessa derrota a
criança com o seu modelo de adulto perfeito e ideal, Clarice mostra como o seu
esboço de criança imperfeita e rebelde acaba triunfando sobre o adulto falho e
incompetente que ela tenta corrigir, para que ele a ensine a contento. Sua vitória
é experimentada, portanto, como uma derrota: descobrindo-se mais forte do que o
adulto, a criança sente-se desamparada e aterrorizada num mundo sem regras e sem
certezas.

A relação professor-aluno é um tema de predileção, e mesmo recorrente na obra de
Clarice Lispector, desde o seu primeiro romance, Perto do coração selvagem.

Neste conto, a relação da menina Clarice com o professor é intensa. Começa como um
desafio de sua parte, que gera um aborrecimento da parte dele. As provocações da
criança vão aumentando, e a irritação do homem vai ficando maior e mais forte, como
num jogo de sedução erótica sem envolvimento sexual. Como diz Clarice: “Não o
amava como a mulher que eu seria um dia, amava-o como uma criança que tenta
desastradamente proteger um adulto, com a cólera de quem ainda não foi covarde e vê
um homem forte de ombros tão curvos”.

A crítica ao sistema educacional que diviniza um dos pólos do aprendizado e demoniza
o outro é tão forte que a própria Clarice recua: “Não, talvez nem seja isso. As
palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo
cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito.” Mas a dicotomia
está estabelecida nesses termos. O “santo” professor e a menina “prostituta”, disposta
a vender o seu amor por uma promessa de aceitação, ainda que precisando pagar por isso
o alto preço já pago pela Sofia da Condessa: a perda de si mesma. Para ser amada, a
menina Clarice, como todas as crianças em geral, “ávidas matérias de Deus”, pujante
de afeto em estado bruto, estava disposta a se entregar inteiramente, e nesta entrega
se perder para sempre. Ela aguardava, com esperança e total confiança, entrar no
mundo dos adultos, no qual pensava poder se libertar de suas angústias e medos
infantis. Daí a revolta contra o professor, um homem cujas fraquezas eram por demais
evidentes: “Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara,
mudara de profissão, e passara pesadamente a ensinar no curso primário”. Daí também
a atração por ele, como se intuísse que precisava arrancar a sua máscara para revelar
o desconhecido que ali se ocultava, a fim de que ele lhe revelasse a verdade que seria
a derrota de sua própria ilusão.

Não há neste conto, como nos outros, referências explícitas às ruas do Recife, mas
ao sobrado onde Clarice morou na Praça Maciel Pinheiro. Do colégio também não há
referências, exceto algumas descrições da ampla e arborizada área do recreio, mas
sabe-se que a autora estudou na escola pública João Barbalho e freqüentou o Ginásio
Pernambucano em Recife. A referência ao sobrado aparece como uma ruptura na evolução
temporal da narrativa. A autora interrompe o relato e salta quatro anos à frente da
história, mostrando a menina Clarice já aos treze anos, “toda composta e bonitinha
como um cromo de Natal”, desmoronando “como uma boneca partida” ao receber a notícia
da morte do professor. Após esse ligeiro flash, que mostra a importância do professor
na vida da menina, e conseqüentemente a importância do aparentemente banal episódio
que se vai narrar, o conto atinge o seu clímax, que também se relaciona, como em
“Felicidade Clandestina”, com uma revelação de ordem literária. Essa revelação é
feita através de um longo diálogo, tecido de maneira muito similar à técnica
cinematográfica da câmara lenta, no qual se assiste ao desmoronamento das máscaras
dos personagens. Assim, uma inesperada criança aparece sob a máscara do professor
e uma inesperada mestra aparece sob a máscara da criança.

A revelação do aprendizado é profunda. Descrita como um verdadeiro e desentranhado
parto, com vísceras expostas e tudo, o homem se percebe, com imprevista alegria,
como aprendiz e liberto, e a menina se descobre, com surpresa e pavor, como mestra
e libertadora. Os papéis tradicionais da relação educador-educando se invertem, já
não mais relacionados ao mero repasse/recepção de informações, que seriam esperados
na relação convencional, e os indivíduos envolvidos mergulham numa radical descoberta
de si mesmos.

Como vimos, a narradora gostava do professor gordo, grande, silencioso, feio.
Era atraída por ele. Mas infernizava as aulas. A menina fazia este jogo: amava-o
atormentando-o. Não estudava nem aprendia nada.

Tudo se passa em torno de uma redação. O professor solicita à classe que
reescreva “com suas próprias palavras” uma dessas histórias de cunho edificante,
que ele acaba de ler em voz alta, na qual um homem, após buscar um tesouro em
terras estrangeiras, consegue ficar rico no próprio quintal, através do seu
trabalho. A moral da história, portanto, recaía na clássica conclusão de que o
trabalho árduo era o único meio de se chegar a ter fortuna.

Para desafiar o professor, como de hábito, a menina escreve a sua composição
invertendo deliberadamente o final da história: “Não consigo imaginar com que
palavras de criança teria eu exposto um sentimento simples mas que se torna
pensamento complicado. Suponho que arbitrariamente contrariando o sentido real
da história, eu de algum modo já me prometera por escrito que o ócio, mais que
o trabalho, me daria as grandes recompensas gratuitas, as únicas a que eu
aspirava. Eu daria tudo o que era meu por nada, mas queria que tudo me fosse
dado por nada. Ao contrário do trabalhador da história, na composição eu sacudia
dos ombros todos os deveres e dela saía livre e pobre, e com um tesouro na mão”.

De que maneira aquilo atingiu o professor infeliz, “monte de compacta tristeza”
que trabalhava por obrigação, com indisfarçável aborrecimento, e que ocultava
um passado misterioso, não se pode saber. Mas certamente atingiu-o, a ponto de
ele, que jamais se alegrava e jamais se dirigia a ela, falar-lhe com atenção e
carinho, e esboçar o sorriso mais sacrificado que Clarice jamais terá visto na
vida, tal é a maneira como o descreve: “E bem devagar vi o professor todo inteiro,
vi que era muito grande e muito feio, e que ele era o homem da minha vida. Aquilo
que eu via era anônimo como uma barriga aberta para uma operação de intestinos.
Vi uma coisa se fazendo na sua cara, o mal-estar já petrificado subia com esforço
até a sua pele, era a careta vagarosamente hesitando e quebrando uma crosta, mas
essa coisa que em muda catástrofe se desenraizava, essa coisa ainda se parecia tão
pouco com um sorriso como se um fígado ou um pé tentassem sorrir, não sei. (…)
Até que o esforço do homem foi se completando todo atento, e em vitória infantil
ele mostrou, pérola arrancada da barriga aberta – que estava sorrindo”.

O processo inverso acontece com a menina, que, afogueada pela corrida e
sorridente pelo hábito, diante da transformação do professor sente-se recuar e
colar-se à parede, enquanto seu corpo inteiro vai-se reduzindo, como o do gato
da história de Alice no país das maravilhas, a um sorriso sem rosto. Acompanhamos
lentamente o seu processo de desaparecimento enquanto criança: o riso despreocupado
e confiante amarelando-se, artificial; uma gota de suor escorrendo lentamente pela
testa e pelo nariz até dividi-lo ao meio, e finalmente o seu completo
desaparecimento numa desusada, inusitada e madura seriedade.

A transformação atinge a ambos com inesperada violência. Enquanto a menina, num
insight precoce, percebe a sua missão no mundo como escritora, “Mas se antes eu
já havia descoberto em mim todo o ávido veneno com que se nasce e com que se rói
a vida – só naquele instante de mel e flores descobri de que modo eu curava:
quem me amasse, assim eu curaria quem sofresse de mim”, o professor se revela
desamparadamente feliz “como um menino que dorme com os sapatos novos”. Um tremendo
bem havia feito a composição de Clarice àquele homem, sem que ela desse por isso ou
tencionasse fazê-lo. Era à revelia de si mesma que suas palavras atingiam os outros
e os transformavam, e a consciência desse poder advindo de um estranho talento conduz
a menina à terrível conclusão: “Tudo o que em mim não prestava era o meu tesouro”.

A revelação para ela é tão forte que terá crises de vômito em casa. O que o
professor lhe ensinava, sem querer, era sério demais para ser apreendido com
tranqüilidade pelos seus nove esperançosos anos. A partir daí passava a saber
que não haveria segurança mais adiante, porque não havia uma verdade interditada,
na posse da qual sairia confiante pelo mundo dos adultos, ilusão que a escola e
a literatura infantil edificante se compraziam em reforçar: “Na minha impureza eu
havia depositado a esperança de redenção nos adultos. A necessidade de acreditar
na minha bondade futura fazia com que eu venerasse os grandes, que eu fizera à
minha imagem, mas a uma imagem de mim enfim purificada pela penitência do
crescimento, enfim liberta da alma suja de menina. E tudo isso o professor agora
destruía, e destruía o meu amor por ele e por mim”.

Ao lado dessa revelação, há outra relacionada com a sua profissão. A literatura
seria para ela uma penitência, o exercício de um apostolado onde se faria amada
para curar os que sofrem. Curar com as belas mentiras da invenção, avançando
lentamente para perceber que, muitas vezes, essas mentiras são mais verdadeiras
do que as verdades do senso-comum. O professor terá sido, talvez, o seu primeiro
contato com o efeito dessa sua irreverente escritura, nascente no mundo; daí a
sua importância para a menina e a importância desse episódio, tão longamente
rememorado, para a autora.

No final do conto, Clarice parodia a clássica história infantil de “Chapeuzinho
Vermelho”, também permeada de erotismo e admoestação às jovens sobre os perigos
relacionados ao crescimento, mas descreve os seres humanos, indistintamente,
como feras, feras que se interrogam assustadas. Na sua narrativa destituída de
maniqueísmos já não há a menina ingênua e o lobo malvado, apenas duas feras numa
relação de ódio e amor, cujas longas unhas tanto servem “para arranhar de morte”
como para “arrancar espinhos mortais”; cuja boca de fome tanto serve para “morder”
como para “soprar”; cujas mãos “ardem” e “prendem”. O caçador e o lobo, a santa e
a prostituta convivem em cada homem e em cada mulher, em todas as suas idades ao
longo da vida. Na conclusão do Chapeuzinho Vermelho de Clarice, portanto, as
duas feras olham intimidadas para as suas próprias garras, “antes de se
aconchegarem uma à outra para amar e dormir”.

No conto “Os desastres de Sofia”, Clarice se reporta à infância para falar,
com extrema poesia, da sua descoberta como escritora, homenageando com carinho
o mestre, que só atuou como tal quando procedeu como aprendiz, fazendo-a perceber
o poder das palavras: o de suavizar a dor de quem não ama, no sentido erótico e
esotérico que confere ao termo. Escrever como Clarice, invertendo a moral das
histórias, é um duro ato de amor, porque pode libertar, fazer desmoronar,
desentranhar o ser que se esconde sob as máscaras impostas pela sociedade e
reforçadas por todos os sistemas pedagógicos do mundo, e isso não se faz sem
medo e sem sofrimento.

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