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Os gestos (Livro de contos), de Osman Lins

by Lucas Gomes

A obra Os gestos, de Osman Lins, reúne contos do autor, escritos
na década de 50. Em treze contos, o autor nos fala da angústia
e da impotência do ser humano. Numa linguagem sóbria e expressiva,
quase sem diálogos, desenvolve temas como a perda, o conflito de gerações,
a falta de afeto, a passagem do tempo, a passagem da infância para a adolescência,
a busca da liberdade.

Esses temas transmitem toda a insatisfação, o inconformismo
e a ansiedade da juventude, de um jeito tão vivo, com palavras tão
exatas, que sempre atingem e impressionam. A atualidade das histórias
e dos conflitos surpreende. Como acontece com a própria juventude, os
contos aqui apresentados nos passam um clima
de revolta não-explicada, o sentimento de personagens que desejam o mundo
mas ainda não conseguiram sair do quarto. O difícil instante da
adolescência.

Neste livro encontra-se o rigor formal característico deste autor –
artesão da palavra -, além de entrar em contato com os personagens
preferidos de Osman: crianças, velhos, pobres, doentes, mulheres flagradas
em ações cotidianas, todos inseridos num ambiente doméstico
opressor. Nos contos de Os Gestos, o silêncio representa a impotência
das personagens

Nestes contos, o autor apresenta um aspecto inusitado ao formato usual das
narrativas: uma abordagem predominantemente lírica da condição
humana, observável na forma como expõe os sentimentos, os relacionamentos
afetivos, e as limitações e incapacidades do ser humano perante
a vida. Para isso, Osman Lins utiliza-se largamente da análise do pensamento
das personagens, de seus fluxos de consciência mais íntimos, e
da análise de seus pequenos gestos, simples e singelos, mas carregados
de significado e sentimento, nunca fugindo do contexto da impotência do
ser humano frente às situações da vida, tema que marca
toda essa coletânea de contos. Aspectos que usualmente fogem às
narrativas, talvez por não possuírem uma suficiente carga dramática,
ou seja, ações e diálogos. Em Os gestos, Osman
já fugia de temas que podiam o acorrentar ao rótulo regionalista
(em Osman, a ação costuma ocorrer de dentro para fora).

Em resumo, são contos extremamente líricos que abordam detalhes
da interioridade humana. Detalhes que em geral escapam da percepção
comum, mas que foram captadas pela sensibilidade deste autor. Veja a seguir,
uma breve explanação de alguns dos contos inseridos nesta obra
de Osman Lins.

O conto que dá título à obra, Os gestos, mostra
que incomunicabilidade das personagens está presente em muitos textos
de Osman. O protagonista deste conto, por exemplo, o velho André, está
fisicamente enclausurado, vivenciando a impossibilidade das palavras e a ambigüidade
dos gestos incompreendidos. Passa a viver numa cama, cuidado pela mulher e pelas
duas filhas, para o ambiente externo, como se voltasse a ser uma criança
(“— Papai agora virou menino.” p. 15), mas sua mente
está lúcida, ele só encontra-se incapaz de expressar-se
verbalmente. E precisa adaptar-se apenas a traduzir tudo que lhe vai pelo mundo
interior através “só (d)os gestos, pobres gestos
p.5. Leia
uma análise deste conto
.

O conto “Reencontro”, como aponta o título, trata-se do relato
de um reencontro entre uma mulher, Zilda, e seu antigo amigo de infância,
cujo nome não é revelado. Zilda vai casar-se. Ambos não
se vêem, ela e o amigo, há muitos anos. Neste encontro, relembram,
cada um a seu modo e atribuindo valores bem diversos a cada memória,
as vivências partilhadas de infância. “O tesouro que eu
supunha comum, é unicamente meu – verifico. Apesar de havermos
vivido durante muito tempo as mesmas aventuras, cada um recolheu o que elas
continham de si próprio. Evocá-las, jamais repetirá o milagre
de fazer com que sejam um elo entre nós – se é que mesmo
naquele tempo estivemos unidos algum dia.
” (p. 31) Transparecem as
divergências de sentimento, as expectativas diversas, pois o homem do
relato alimentou diferente forma de afeto, não correspondida, nem revelada).
É insinuado, também, o momento da ruptura da amizade pueril, no
início da adolescência.

No conto “A partida”, um neto, na véspera de sua partida
do interior para a capital, na casa da avó, por quem foi criado com extremo
amor e zelo, ao ponto quase de sufocá-lo de cuidados (“…a
afeição de minha avó incomodava-me. Era quase palpável,
quase como um objeto, uma túnica, um paletó justo que eu não
pudesse despir.
” p. 49), silenciosamente se despede. Entre o sofrimento
de ter que abandonar a avó e o desejo de uma vida melhor na cidade, estão
a ansiedade para partir e a saudade antecipada, que deixam um clima tenso e
angustiante no ar. São os últimos momentos, os últimos
olhares e os últimos gestos que antecederam sua partida. Uma clara motivação
autobiográfica pode ser denotada neste conto: Osman, cuja mãe
morreu no parto, foi criado pela avó, e deixou-a, na cidade de Buíque,
quando partiu para Recife, em busca de uma vida melhor. Este conto virou um
curta-metragem, pelas mãos da cineasta pernambucana Sandra Ribeiro. Leia
uma análise deste conto
.

Em “Cadeira de balanço”, a personagem Júlia Mariana
está grávida. É uma gestação sob riscos,
que requer muitas restrições alimentícias e muito repouso;
mas ela precisa cumprir os afazeres domésticos, cuidar do marido, Augusto,
que dela já se afasta, talvez, pelo estado alterado do corpo da esposa,
inchada, indisposta, com as veias aparentes… Júlia Mariana só
se consola quando está na cadeira de balanço do marido, onde pode
descansar o corpo pesado e sofrido de uma gravidez complicada. Uma tarde, não
consegue cumprir seus afazeres e pensa (todo o conto é o pensamento da
personagem) que, quando morrer, Augusto sentirá o valor dela; depois,
se arrepende, porque são muitas as mulheres disponíveis e outra
ocupará seu lugar. É assim, perdida nos pensamentos e sem concluir
suas tarefas domésticas, que o marido a encontra, no “ritual
de chegada
” (p. 93), quando volta do trabalho, e, sem uma palavra,
apenas com o gesto de tocá-la no ombro, faz com que ela saia da cadeira
de balanço para que ele sente e leia o jornal.

Em O Vitral, Matilde, a protagonista, de certo modo, cultua as fotografias,
como algo que retém um pouco das alegrias sentidas em certos momentos,
como um júbilo. Antônio, o marido, já pensa de modo bem
diverso. É calado e mais ensimesmado; para ele: “Não
é possível guardar a mínima alegria (…). Em coisa alguma.
Nenhum vitral retém a claridade.
” (p. 152). São já
um casal mais velho e sem filhos. Matilde mantém os rituais de comemorações
de datas e de registros fotográficos, mesmo após compreender:
Compreendera que tudo aquilo era inapreensível: enganara-se
ou subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo. ‘Que
este momento me possua, me ilumine e desapareça – pensava. Eu o
vivi. Eu o estou vivendo.
’” (p. 152) E o conto se conclui com
Matilde sentindo-se trespassada pela luz solar, como acontece com um vitral.

O conto “Elegíada” fala da perda de autonomia. A solidão
e a dor “cansada, vasta e desalentada” (p. 164) de um homem
que, já velho, fica viúvo. No último momento, com o corpo
da esposa morta, ele pensa a saudade, tem a última conversa “em
silêncio
” com a mulher e relembra que, agora, todos os fatos
e gestos vividos terão a mesma dimensão de profunda importância
(desde as datas festivas, os eventos como o casamento, o nascimento dos filhos,
até os gestos mais triviais). A saudade do silêncio partilhado,
a compreensão um do outro pelos gestos, a profunda solidão de
ver-se sem a companheira.

Em “Os olhos”, há a confissão de um crime, mas não
a sua descrição.

Em “Conto enigmático”, talvez possa também ter havido
um crime.

A obra Os Gestos segue uma linha de tom realista, com cenas vazadas
por fortes doses de lirismo que em alguns momentos tende ao expressionismo.
Doentes, crianças, um discurso feito em face de um morto, o triste reencontro
de dois amigos de infância: são cenas fechadas, que se passam na
intimidade dos personagens e registram a impossibilidade do amor e questões
ditadas pela morte. A melancolia e o pessimismo são marcas desses contos.

Nessa obra vemos alguns recursos de que Lins vai se valer depois, como experiências
com discurso indireto livre e com as combinações possíveis
de um enredo.

Em todas as histórias deste livro, imperam o silêncio e a força
dos gestos. São personagens em momentos de ruptura, ou em que a aparente
banalidade esconde o quanto de profundidade e lirismo há naquelas vidas
relatadas.

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