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Os Lusíadas, de Luiz Vaz de Camões

by Lucas Gomes

Análise da obra

Publicado em 1572 sob a proteção do Rei D. Sebastião, o poema épico Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, tem como assunto central a viagem de Vasco da Gama às Índias (1497 – 1498). As perigosas viagens por mares nunca dantes navegados, o contato com povos e costumes diferentes, a exaltação do homem-herói (navegador, soldado, aventureiro, cavaleiro e amante) encontram, na euforia antropocêntrica do Renascimento, um instante oportuno para o sentimento heróico e conquistador, não apenas dos portugueses, mas de toda Europa quinhentista.

Obra de cunho enciclopédico, o poema narra, além da descoberta do caminho marítimo para as Índias, as grandes navegações portuguesas, a conquista do Império Português do Oriente e toda a história de Portugal, seus reis, seus heróis e as batalhas que venceram. Paralelamente a essa dupla ação histórica (a viagem de Vasco da Gama e a história de Portugal), desenvolve-se uma importantíssima ação mitológica: a luta que travam os deuses olímpicos (o “maravilhoso pagão”), contrapondo Vênus e Marte (favoráveis aos lusos) a Baco e Netuno (contrários às navegações).

Os Lusíadas fundem harmoniosamente os ideais renascentistas, imperialistas e nacionalista de expansão do Império, com a ideologia medieval, feudal e conservadoras; a mitologia pagã com o ideal cristão; o tom épico na exaltação dos feitos dos navegadores e guerreiros e o tom lírico do amor trágico de Inês da Castro; a objetividade e a subjetividade; o ufanismo e o espírito crítico; o espírito clássico com acentos maneiristas e antecipação barroca.

O poema divide-se em 10 cantos. Cada canto contém em média 100 estrofes ou estâncias. O canto III é o mais curto, com 87 estrofes; o canto X é o mais longo, com 156 estrofes. O poema todo compõe-se de 1.102 estrofes ou estâncias. Cada uma delas contém regularmente 8 versos (oitavas). O poema totaliza 8.816 versos, decassílabos (medida nova), predominando os decassílabos heróicos, com a 6ª e a 10ª sílabas tônicas. Há também alguns decassílabos sáficos, com a 4ª, a 8ª e a 10ª sílabas tônicas.

Os Lusíadas são o maior poema da língua portuguesa e a maior expressão de sua excelência literária. Camões soube elaborar uma linguagem suficientemente rica e maleável, elegante e sonora, com que exprimiu tanto os feitos heróicos e altissonantes, como as dolorosas súplicas de Inês de Castro diante de seus algozes ou o desconsolo do eu-poemático diante do “desconcerto do mundo” e da decadência de seu país.

Os Lusíadas tem cinco partes, como a tradição clássica impõe a uma epopéia:

1 – Proposição – É a apresentação do poema, a síntese do assunto. Ocupa as três primeiras estrofes. Evidencia algumas características fundamentais da obra: o caráter coletivo do herói, a valorização do homem (antropocentrismo), a sobrevivência do “ideal cruzada”, a valorização da Antigüidade clássica, o nacionalismo (ufanismo), sintaxe rica e complexa.

2 – Invocação das Tágides – É o pedido de inspiração às musas. Camões elege como suas inspiradoras as Tágides, ninfas do rio Tejo, “nacionalizando” suas musas.

3 – Dedicatória ao Rei D. Sebastião – É como menino ainda, como dádiva de Deus, que Camões apresenta D. Sebastião na dedicatória. O jovem rei assumiu o trono aos 14 anos, em 1568, e como a redação do poema consumiu mais de 12 anos, Camões não deixa de observar que ele é “novo no ofício” e disso abusam seus conselheiros. O fato do jovem rei ser exaltado como símbolo e esperança da pátria, não impede de o poeta critique as intrigas palacianas e a ambição de mando e de riqueza dos jesuítas e seus aliados.

4 – Narração – A narração de Os Lusíadas compreende três ações principais: a viagem de Vasco da Gama às Índias, a narrativa da história de Portugal e as lutas e intervenções dos deuses do Olimpo. São, portanto, duas ações históricas e uma ação mitológica que se alternam e se interpenetram no poema. A narrativa começa já no meio da aventura do herói, quando Vasco da Gama e os navegadores estão em pleno Oceano Índico, na costa leste da África, próximo ao Canal de Moçambique. A narrativa histórica termina com a partida de Calicute. Camões não narra o regresso a Lisboa. Os acontecimentos anteriores são relatados por discursos  dos protagonistas humanos (Vasco da Gama e seu irmão Paulo da Gama), e os acontecimentos futuros são anunciados por deuses  ou outras personagens com o dom da profecia. Nessa profusão de episódios históricos, mitológicos, proféticos, simbólicos, líricos, guerreiros e romanescos, Camões entremeia descrições de fenômenos naturais (a tromba marítima, o fogo-de-anselmo etc) e freqüentes dissertações poéticas sobre a moral, sobre a desconsideração de seus contemporâneos pela poesia, sobre o verdadeiro valor da glória, sobre a onipotência do ouro e da riqueza e sobre o destino de Portugal. É uma verdadeira enciclopédia de Portugal e do homem renascentista.

5 – Epílogo – Contém as lamentações e críticas do poeta, suas exortações ao Rei D. Sebastião e os vaticínios sobre as futuras glórias portuguesas. São as doze últimas estrofes do poema. Contrastando com o tom vibrante e ufanista do início, o tom agora é de pessimismo, desencanto e de crítica à decadência do país e aos portugueses de seu tempo, esquecidos dos valores nacionais. É uma clara premonição da derrocada de Portugal, submetido em 1580 ao domínio espanhol, e da retratação do Império do Oriente. Há ainda o sentido de desabafo de Camões, que se queixa da incompreensão e das privações pelas quais parece ter passado em seus últimos anos de vida.

Enredo dos Cantos

Canto I e II – Após as partes introdutórias e a rápida apresentação dos navegadores em pleno Oceano Índico,  narra-se o Consílio dos Deuses no Olimpo. Convocados por Júpiter, os deuses irão deliberar sobre o destino dos novos argonautas. Baco é contrário aos portugueses, pois teme que eles superem seus feitos no Oriente. Vênus, e depois Marte, toma a defesa dos lusos. Júpiter encerra o consílio, decidindo a favor das navegadores. Baco, inconformado, resolve agir. Assumindo a formas humana de um velho sábio, instiga o governador de Moçambique contra os portugueses, põe a bordo da esquadra um traidor, falso piloto, arma ciladas em Quiloa e Mombaça. Graças às intervenções de Vênus, das nereidas, de Mercúrio e à coragem e astúcia de Vasco da Gama, os portugueses chegam a Melinde, terra de muçulmanos que, por obra de Mercúrio, enviado por Júpiter, a pedido de Vênus, tinham se tornado simpáticos aos portugueses. Durante os perigos e provações, o capitão roga a proteção da Providência Divina e agradece por ela ao Deus cristão, mas quem atende às suas preces é Vênus, divindade pagã, meiga e sedutora, deusa do amor, que convence Júpiter a ajudar seus protegidos. Paganismo e cristianismo juntos, sem qualquer constrangimento.

Nota: Essa ação mitológica, a disputa entre Vênus e Baco, tem o propósito de elevar os navegadores à condição de semi-deuses. Numa clara alegoria, os portugueses, senhores do amor e da guerra, protegidos por Vênus e Marte, triunfam sobre os oceanos (Netuno) e sobre seus adversários no Oriente (Baco).

Canto III – Após Camões invocar a inspiração de Calíope, musa grega da poesia épica, Vasco da Gama começa a contar ao rei Melinde a história de Portugal. Principia pela localização geográfica do país no mapa da Europa: “Eis aqui quase cume da cabeça / De Europa toda, o Reino Lusita no / Onde a terra se acaba e o mar começa / E onde Febo repousa no Oceano” (Lus., III. 20). Fala das origens de Portugal, do primeiro herói, Viriato, o Pastor da Serra da Estrela, que resistiu à dominação romana. Na Guerra de Reconquista, que os povos já cristianizados moveram contra árabes invasores, no século XII, surge o Reino de Portugal e a Primeira Dinastia, a Casa de Borgonha. O terceiro canto contém a história de todos os reis dessa dinastia, destacando-se seu fundador, Afonso Henriques de Borgonha. vencedor da Batalha de Ourique, contra os árabes, ao lado de Egas Moniz, símbolo nacional de lealdade e honradez. Ainda sob a Dinastia de Borgonha, no reinado de D. Afonso IV, ocorre o episódio de Inês de Castro, aquela“que depois de ser morta foi rainha”.

Canto IV – Vasco da Gama prossegue a narrativa da história de Portugal, concentrando-se na Segunda Dinastia, a Casa de Avis. Fala da Revolução de Avis (1383 – 1385), de seu grande herói, D. Nuno Álvares Pereira, da Batalha de Aljubarrota e de D. João I, Mestre de Avis, que funda o Estado Nacional Português, consolida a centralização monárquica e inicia a expansão ultramarina, com a Tomada de Ceuta, em 1415. A partir do reinado de D. Manuel I, o Venturoso, Vasco da Gama começa a narrar os episódios preliminares de sua viagem. D. Manuel tivera um sonho profético: os rios Indo e Canges, sob forma de dois anciões, profetizam os sucessos e perigos que os portugueses enfrentariam no Oriente. Estimulado por esse sonho, D, Manuel I pede a Vasco da Gama que monte uma esquadra para concretizar a profecia. Na partida das naus da praia de Belém, um ancião, o Velho do Restelo, faz uma enfática advertência contra as navegações portuguesas.

Canto V – Vasco da Gama conclui a narrativa de sua viagem até Melinde. Fala da partida da esquadra, do Cruzeiro do Sul, descreve o fogo-de-santelmo, depois uma tromba marítima na costa da Guiné, e a aventura cômica de Veloso. Perto da África do Sul, na travessia do Cabo das Tormentas, os portugueses defrontam-se com o Gigante Adamastor, monstro disforme que simboliza a superação do medo do “Mar Tenebroso” e o domínio do homem sobre as crendices medievais e sobre a natureza. De volta a Melinde, Vasco da Gama conclui o seu relato elogiando a tenacidade portuguesa. Encenando a primeira parte da epopéia, Camões retoma a palavra para lamentar o descaso dos portugueses pela poesia.

Canto VI – Enquanto os portugueses rumam em direção às Índias, Baco desce ao palácio de Netuno e incita os deuses marinhos contra a esquadra de Vasco da Gama. Novamente Vênus e as nereidas salvam os navegadores. A bordo da nau capitânea, o marinheiro Veloso entretém seus companheiros com a narrativa cavaleiresca de Os Doze de Inglaterra: doze portugueses, liderados pelo Magriço, vão à Inglaterra resgatar a honra de doze donzelas inglesas ultrajadas por doze cavaleiros bretões. Os navegadores avistam Calicute, e o narrador medita sobre o sentido e valor da glória.

Canto VII e VIII – Vasco da Gama faz contato com as autoridades de Calicute. O samorim (= rei) determina ao catual (= governador) que receba os navegadores. Vasco da Gama desembarca na Índia, visita o samorim e oferece a amizade dos portugueses, em nome de D. Manuel. O catual colhe informações sobre os recém-chegados e, em visita à esquadra, indaga Paulo da Gama acerca do significado das figuras desenhadas nas bandeiras lusas. O irmão do comandante assume a narrativa e conta os feitos dos heróis da pátria (Viriato, D. Afonso Henriques, Egas Moniz, D. Nuno Álvares e outros). Os muçulmanos tramam contra os cristãos portugueses e envenenam as boas relações com o samorim. Novas ciladas. Vasco da Gama é feito prisioneiro. Negocia com o catual sua liberdade, em troca de mercadorias européias. O poeta encerra o oitavo canto com dissertação sobre o poder do dinheiro.

Canto IX e X – Ainda em Melinde, na partida das naus, dois feitores portugueses que vendiam mercadorias em Calicute são retidos em terra para retardar a partida das naus e permitir que fossem alcançadas e destruídas por uma esquadra muçulmana. Em represália, Vasco da Gama retém a bordo vários mercadores indianos. Trocam-se os feitores portugueses pelos mercadores orientais, o samorim manda devolver as fazendas que os portugueses pagaram como resgate pelo capitão, e os navegadores, cumprida sua missão, iniciam a viagem de regresso a Lisboa. Os historiadores registram ter sido uma viagem acidentada, mas Camões encerra aqui a matéria propriamente histórica do poema. O longo episódio da Ilha dos Amores pertence já ao plano mitológico, fantástico. É o congraçamento entre os homens e os deuses, a elevação dos navegadores à esfera da imortalidade.

Vênus decide premiar os navegadores e, numa ilha paradisíaca, reúne as nereidas (ninfas marinhas), feridas por Cupido com suas setas, para que ardam de amor pelos portugueses. Estes, deslumbrados com o espetáculo divino, passam a perseguir as ninfas que se deixam alcançar e se entregam, entre gritinhos de prazer. É a mais clara manifestação do pan-erotismo, da idéia de que não há pecado sexual.

Oh! Que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vênus com prazeres inflamava,
Melhor é exp’rimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode exp’rimentá-lo.
(Lus., IX, 83)

Após um banquete oferecido por Tétis e pelas ninfas, uma delas, Sirena (ou sereia), anuncia as futuras conquistas portuguesas. Tétis conduz Vasco da Gama a uma elevação e mostra a ele a Máquina do Mundo, réplica em miniatura do sistema solar, segundo a teoria geocêntrica de Ptolomeu, e que somente os deuses podiam contemplar. Descobrindo o orbe terrestre, Tétis aponta os lugares onde os portugueses ainda se farão presentes. Aí, sem que se dê particular importância, fala-se do Descobrimento do Brasil.

Mas cá onde mais se alarga, ali tereis
Parte também, com pau vermelho nota;
De Santa Cruz o nome lhe poreis;
Descobri-la-á a primeira vossa frota.
(Lus.. X, 140)

Na estrofe 144 do 10º canto, os portugueses estão de volta a Lisboa. Segue-se o epílogo do poema.

Nota: A obra Os Lusíadas passaram pela censura inquisitorial, desafiando o espírito da Contra-Reforma, as convenções moralistas e repressoras da corte, orientada pelos jesuítas. A publicação deveu-se ao empenho de alguns admiradores de Camões: D. Manuel de Portugal, Dona Francisca de Aragão (amiga íntima da rinha), os dominicanos, a quem não deviam desagradar as críticas do poema aos jesuítas. O censor da obra, o frei dominicano Bartolomeu Ferreira, não só aprovou a obra como também a elogiou.

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