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Os Lusíadas – O Velho do Restelo, de Luís Vaz de Camões

by Lucas Gomes

Análise da obra

Quando as naus de Vasco da Gama se despediam do porto de Belém, um ancião, o Velho do Restelo, elevando a voz, manifestou sua oposição à viagem às Índias. A sua fala pode ser interpretada como a sobrevivência da mentalidade feudal, agrária, oposta ao expansionismo e às navegações, que configuravam os interesses da burguesia e da monarquia. É a expressão rigorosa do conservadorismo. Certo é que Camões, mesmo numa epopéia que se propõe a exaltar as Grandes Navegações, dá a palavra aos que se opõem ao projeto expansionista. Portanto, O Velho do Restelo representa a oposição passado x presente, antigo x novo. O Velho chama de vaidoso aqueles que, por cobiça ou ânsia de glória, por sua audácia ou coragem, se lançam às aventuras ultramarinas. Simboliza a preocupação daqueles que antevêem um futuro sombrio para a Pátria.

Canto IV – Episódio O Velho do Restelo (oitavas: 90 a 104)  

90 

“Qual vai dizendo: —” Ó filho, a quem eu tinha
Só para refrigério, e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Por que me deixas, mísera e mesquinha?
Por que de mim te vás, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento,
Onde sejas de peixes mantimento!” —

91 

“Qual em cabelo: —”Ó doce e amado esposo,
Sem quem não quis Amor que viver possa,
Por que is aventurar ao mar iroso
Essa vida que é minha, e não é vossa?
Como por um caminho duvidoso
Vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento
Quereis que com as velas leve o vento?” — 

92

“Nestas e outras palavras que diziam
De amor e de piedosa humanidade,
Os velhos e os meninos os seguiam,
Em quem menos esforço põe a idade.
Os montes de mais perto respondiam,
Quase movidos de alta piedade;
A branca areia as lágrimas banhavam,
Que em multidão com elas se igualavam.

93 

“Nós outros sem a vista alevantarmos
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assim nos embarcarmos
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa. 

94

(O Velho do Restelo)
“Mas um velho d’aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C’um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:

95

—”Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C’uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!

96

— “Dura inquietação d’alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!

97 

—”A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D’ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?

98

— “Mas ó tu, geração daquele insano,
Cujo pecado e desobediência,
Não somente do reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano
Da quieta e da simples inocência,
Idade d’ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e d’armas te deitou:

99

— “Já que nesta gostosa vaidade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidades
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la quem a dá:

100

— “Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pela de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?

101

— “Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe?
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a fama te exalte e te lisonge,
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?

102

— “Ó maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas velas pôs em seco lenho,
Dino da eterna pena do profundo,
Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!
Nunca juízo algum alto e profundo,
Nem cítara sonora, ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória.

103

— “Trouxe o filho de Jápeto do Céu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu
Em mortes, em desonras (grande engano).
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
E quanto para o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos, que a movera!

104

— “Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande Arquiteto co’o filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte, estranha condição!” — 

Vasco da Gama, herói de Os Lusíadas (1572), de Camões, conta ao rei de Melinde (África) a história de seu país (cantos III e IV). Na parte final de seu relato, Vasco fala-lhe de sua própria viagem.

No início dela, situa-se um dos episódios mais célebres da obra:  O Velho do Restelo (canto IV, estrofes 94-104). O sentido do discurso atribuído ao Velho é bastante claro; não obstante, o episódio coloca alguns problemas quanto ao pensamento do poeta relativamente à questão tratada.  Os navios portugueses estão prestes a largar; esposas, filhos, mães, pais e amigos dos marinheiros apinham-se na praia (do Restelo) para dar seu adeus, envolto em muitas lágrimas e lamentos, àqueles que partiam para perigos inimagináveis e talvez para não mais voltar.

No meio desse ambiente emocionado, destaca-se a figura imponente de um velho que, com sua “voz pesada”, ouvida até nos navios, faz um discurso veemente, condenando aquela aventura insana, impelida, segundo ele, pela cobiça-o desejo de riquezas, poder, fama.  Diz o velho que, para ir enfrentar desnecessariamente perigos desconhecidos, os portugueses abandonavam os perigos urgentes de seu país, ainda ameaçado pelos mouros e no qual já se instalava a desorganização social que decorreu das grandes navegações.

Segundo parece, o velho representa a opinião conservadora (alguns diriam “reacionária”) da época – opinião da aldeia, do torrão natal, da vida segura, mas não heróica. Seria estranho que Camões se identificasse com esse tipo de atitude, pois, como observou J. F. Valverde, “não seria compreensível que compusesse uma epopéia para celebrar o que condenava como erro fatal”.  Mas, segundo se pode inferir de diversos elementos do discurso do Velho, assim como do resto do poema, a opinião expressa no admirável discurso não era inteiramente rejeitada por Camões, por mais que ele fosse empolgado pelo empreendimento marítimo de seu país.  Como o Velho do Restelo pensavam muitos naqueles tempos, assim como muitos pensam hoje em relação a assuntos semelhantes (como a conquista espacial ou a manipulação genética, por exemplo).

Gil Vicente, que tratou de assunto semelhante, em chave cômica, no “Auto da Índia“, poderia subscrever as palavras daquele “velho de aspecto venerando”.  O discurso do Velho contém uma condenação enfática da guerra, de acordo com o ponto de vista do Humanismo, que era antibelicista. Mas o Velho, como Camões, abre exceção (sob a forma de concessão) para a guerra na África (lembremos que o poeta, no início e no fim do poema, recomenda enfaticamente a D. Sebastião que embarque nessa aventura).

Sabemos que havia, na época, uma corrente de opinião em Portugal que condenava a política ultramarina do país, direcionada desde D. João 3º em favor da Índia, com o abandono das conquistas africanas.  Portanto, o Velho do Restelo não é propriamente uma voz discordante a que o poeta concede um lugar em seu poema, representando nele simplesmente os rumores do povo ou o ponto de vista de um partido adversário da empresa que o poeta se punha a celebrar.

A fala do Velho é também a expressão de idéias camonianas, divididas entre o Humanismo pacifista e o belíssimo dos ideais da Cavalaria e das Cruzadas, cujo espírito muito influenciou a visão camoniana da missão de seu país.

O discurso do Velho do Restelo corresponde a um gênero antigo da literatura, cultivado desde os primórdios da poesia grega. Trata-se do gênero conhecido pelos gregos como propemptikón, ou seja, “adeus a um viajante que parte”.

Elementos básicos para uma composição deste gênero são: 1º) o viajante (no caso, Vasco da Gama e os seus marinheiros), 2º) quem se despede (o Velho), 3º) a relação que os une (no caso, o fato de serem portugueses) e 4º) o cenário apropriado para a despedida (a praia do Restelo, com os navios a ponto de largar).

Neste tipo de poema há alguns assuntos constantes (lugares-comuns): os perigos e as in-conveniências da viagem, os perigos do lugar de destino, considerações sobre os motivos da viagem, a quebra de fé implicada na viagem etc. Uma das modalidades desse gênero inclui o que em grego se chamava skhetliasmós, isto é, uma reclamação ou lamentação, cuja finalidade é, condenando a viagem, persuadir o viajante a desistir de fazê-la.  Diversos desses elementos se encontram no discurso do Velho, organizados com formidável eloqüência, retomando virtuosisticamente e com novidade um gênero de poesia que remonta a Homero.

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