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Os melhores contos de Lima Barreto, de Lima Barreto (Organização de Francisco de Assis Barbosa)

by Lucas Gomes

Análise da obra

A obra de Lima Barreto é uma crônica autêntica dos subúrbios cariocas e de sua população, retratando, de
um lado, a população pobre e oprimida desse subúrbio e, de outro, o mundo vazio de uma burguesia
medíocre; de políticos poderosos e incompetentes e de militares opressores. Parece refletir, muitas vezes,
a própria experiência do autor, principalmente a dos negros e mestiços, que sofriam na pele o preconceito
racial. Prendendo-se à autenticidade histórica daquele tempo, sua ficção retrata acontecimentos
importantes da vida republicana. Consciente dos problemas, critica o nacionalismo exagerado e utópico,
oriundo do Romantismo.

É sempre a República Velha o tema da caricatura que surge na ficção de Lima Barreto. Da República se fez
opositor irascível e irreversível, implacável e demolidor — utilizando os recursos da sátira, da ironia,
da caricatura, da crítica contundente, desmontou todo o esquema de sustentação do regime republicano
recém-implantado. As mazelas do governo republicano, o grau de corrupção política e econômica que
empestava o regime, não se cansou de causticá-las por toda a sua obra. Crítico intransigente dos
presidentes republicanos, do florianismo e do hermismo, do jacobinismo, da intervenção dos militares na
política, de formas de governo autoritário e ultracentralizado e militarizado, de todo e qualquer tipo
de violência na sociedade, das ideologias intolerantes.

Lima Barreto era um crítico mordaz da sociedade do seu tempo. Vivendo no Rio de Janeiro da
recém-proclamada República, pouca coisa escapava de seu olhar perscrutador.

Os contos de Lima Barreto, em maior ou menor grau, são exemplos de relações e interações entre modos
tradicionais de narrar e as especificidades do denominado conto moderno. Fogem a parâmetros estabelecidos
para o gênero; mantêm, sob a qualidade literária intrínseca, amplitude e coerência temáticas e
estilísticas presentes, de resto, em toda sua obra ficcional — nos romances e nas novelas — e em seus
artigos e crônicas.

Impôs na ficção contística — com seu estilo simples, direto e objetivo, que feria o convencionalismo
literário da época, impregnado de falsas concepções estéticas, floreios etc. — os prenúncios do
Modernismo logo a seguir irrompante na cultura brasileira, cujos primeiros elementos e formas apareceram
justamente pela linguagem típica da escrita barretiana.

Oposto à maioria de seus contemporâneos, praticantes da escrita floreada e vazia, aristocrática e fútil,
verdadeiros instrumentos literários do tal “sorriso da sociedade”, apregoado por Afrânio Peixoto, Lima
Barreto conferia à sua obra ficcional o sentido militante de uma “missão social, de contribuir para a
felicidade de um povo, de uma nação, da humanidade”. Talvez mais até do que nos romances, o tom de
denúncia conferido por Lima à sua literatura emerge com muita intensidade e freqüência nos contos,
tematizantes em sua essência da discriminação racial e social, o preconceito de cor, o vazio moral,
intelectual e ético dos políticos, a ganância e a ambição, o arrivismo, o bovarismo, a miséria e a
opressão social.

Nos contos de Lima Barreto estão contidos os traços recorrentes de sua obra ficcional: obsessão pela
origem, marcas da religiosidade, evocação do mistério e da surpresa, emocionadas descrições dos subúrbios
cariocas, as periferias urbanas, a divisão de classes, a exclusão social, os pobres e os enjeitados.

Lima Barreto é um dos mais profícuos, interessantes e instigantes analistas da realidade brasileira. Toda
a obra barretiana desenvolve-se a partir de e em torno de um tema nuclear: o poder e seus efeitos
discricionários — o poder visto e descrito por ele como “o variado conjunto de elementos, vetores e
procedimentos encadeados no interior da sociedade, compondo grandes e pequenas cadeias, visíveis e
invisíveis, tendentes a restringir e constringir o pensamento dos homens, coibindo-lhes as possibilidades
de afirmação, pessoal, cultural, profissional, social, e a justa inserção social”. Sua obra contística —
no mesmo diapasão da romanesca e da jornalística — constitui um conjunto de registros variados do Brasil,
sempre emocionados e opinativos, geralmente irados, quase sempre sarcásticos, satíricos, irônicos.

Sucedem-se nas textos ficcionais barretianos flagrantes urbanos, o bovarismo das elites dirigentes e dos
diplomatas (e do brasileiro em geral), as elites econômicas, a burocracia. Poucos, na literatura
brasileira — nem mesmo Machado de Assis — criaram e apresentaram um elenco de personagens tão variado e
vasto — homens e mulheres despojados pela sorte, políticos empenhados unicamente com o poder,
pseudo-intelectuais abarrotados de retórica e voltados para a futilidade, militares crentes da própria
infabilidade e “ignorantes das coisas da guerra”, os donos de jornais venais e corruptos, os magnatas,
banqueiros, empresários, fazendeiros do café, os burocratas, pequenos burgueses, arrivistas, charlatães,
almofadinhas, melindrosas, aristocratas, gente do subúrbio, operários, artesãos, vadios, mendigos,
bêbados, meliantes, prostitutas, mandriões, subempregados, artistas, coristas, alcoviteiras,
funcionários, moças casadoiras, noivas, solteironas, loucos, adúlteros, agitadores, usurários,
estrangeiros.

Vislumbra-se no conjunto dos contos de Lima Barreto os mesmos cinco eixos temáticos em torno dos quais
desenvolve-se sua obra romanesca e sua obra não-ficcional: a política; a mulher; o cotidiano da cidade; o
subúrbio; a vida literária — os três primeiros, assumindo escalas quase que majoritárias.

CONTOS:

Um Especialista

Personagens: Comendador, Coronel Carvalho, Alice.

Espaço – Rio de Janeiro

Narrado em 3ª pessoa onisciente, o conto é centralizado na história de promiscuidade do Comendador, que
adorava as mulatas a ponto de colecionar uma porção em seu vasto currículo de amantes, apesar de ser
casado e de ter filhas. No princípio de suas aventuras no Brasil, pois assim como seu amigo, o Coronel
Carvalho, era português, o Comendador, ainda como caixeiro-viajante no Recife, desencaminhou uma jovem e
lhe deixou uma filha nos braços, sumindo com uma pequena herança que ela havia recebido quando da morte
dos pais. Vindo para o Rio, conseguiu evoluir à posição de Comendador que ora ostentava. No momento, o
Comendador estava envolvido com uma bela mulata, que ao final do conto descobre ser a filha que ele
abandonara anos antes.

O ataque à conduta imoral e ao falso moralismo da burguesia é explícito, e é o alvo preferencial dos
ataques de Lima Barreto, que torna público os desvios, as vilanias, as tortuosidades e as baixezas da

classe que ostentava o puritanismo da bandeira familiar.

Lima Barreto tem o poder de retratar sua época e seu momento como um historiador o faria, com o rigor
técnico que lhe é peculiar.

O conto vai se arrastando nas tramas das festas, dos bailes e dos espetáculos que animavam as noites da
burguesia carioca, e da conversa franca e aberta que os amigos têm com a amante do Comendador, que
somente no final, quando a mulata começa a falar sobre seu passado, descobre ser sua filha. A descoberta
final é chocante, mas o leitor não se define nem se entende com as próprias sensações, em um efeito
brilhante obtido pelo autor, que cria a dualidade do choque moral e a piedade que sentimos com tamanha
desgraça em que cai o incestuoso pai, e a punição “justa” e forte que sobre ele recai, purgando seus
desvios de conduta e sua imoralidade explícita e despudorada. O que qualquer um que desconhece a
literatura de Lima Barreto pode notar, desde este primeiro conto, é um poder de ironia só comparável a
Machado de Assis, uma veia satírica, a meu ver inimitável, e uma capacidade de descrever todos os
meandros de uma época e de pessoas com uma postura que lembra o Realismo pela análise investigativa do
caráter dos indivíduos e suas ambigüidades, mas antecipa o Modernismo na forma, jocosa e aberta com que o
faz, tanto na criação das cenas e das seqüências, quanto na adoção de uma linguagem despreocupada com os
cânones gramaticais e retóricos de sua época.

O Filho da Gabriela

Personagens: Gabriela, Horácio, Laura, Conselheiro Acácio.

Espaço: Rio de Janeiro.

Narrado em 3ª pessoa onisciente, tem o seguinte enredo:Gabriela é empregada na casa do casal Laura e
Conselheiro Acácio, que se tornam padrinhos de seu filho e o criam após a sua morte. No início do conto,
discute com a patroa por não obter permissão para levar a criança ao médico, já que esta estava enferma.
Durante a discussão, e diante da negativa da patroa, Gabriela diz ter conhecimento dos relacionamentos
extra-conjugais de Dona Laura, ficando um silêncio sepulcral entre ambas, até que o choro convulsivo da
patroa leva a empregada também às lágrimas.

Lima Barreto utiliza o caso criado na narrativa para manifestar sua idéia acerca da igualdade imanente
dos seres, iguais em desgraça e frustração, humanos na mais pura e cristalina acepção que a palavra
possui, igualdade negada pelos adereços sociais da fortuna, da sorte, do status e da pele, mas que o
instinto, a dor, o sofrimento e outras ações imanentes e naturais, vêm revelar e trazer à tona.

A empregada resolve sair da casa da patroa após ter lhe ofendido, revelando escrúpulos que a outra não
demonstrara em relação ao marido que traía, embora o narrador mostre sua fragilidade emocional em função
da frieza do conselheiro em sua relação com a esposa. Gabriela vaga pelas ruas da cidade à caça de
emprego mas não consegue, e enquanto procura, deixa o filho com uma amiga que o maltrata, impaciente com
o choro que não fora trazido ao mundo por ela. Passando coincidentemente pela porta da casa da ex-patroa,
Gabriela é vista e pára para conversar. Dona Laura lhe convida a retornar, e após pensar e relutar,
Gabriela, sem outra alternativa capaz de dissuadi-la, aceita. Logo após o retorno a patroa resolve
batizar o filho da Gabriela, que aceita com lágrimas nos olhos. O Conselheiro lhe dá o nome de Horácio,
pois a criança nem mesmo possuía um antes, fornecendo-lhe também tratamento médico regular e educação.

Guardou, sempre, os traços da primeira infância, mantendo-se calado e quieto a maior parte do tempo, e
rompendo em erupções em outros momentos. Apresentava a face enrugada e o semblante sempre enfezado. Após
a morte da mãe, fechou-se mais ainda, deixando de lado os rompantes de alegria e mergulhando em si mesmo,
num estranho silêncio, aumentado pela indiferença clara que lhe devotava o padrinho:

Já a esposa, encontrou no garoto um mecanismo para fugir à frustração e mesquinhez da sua vida, devotando
a ele os sentimentos que não via realizados com relação ao marido e também com nenhum dos amantes que
acumulara ao longo do casamento. Horácio, o garoto, continuou isolado e fechado em seu mundo de
fantasmas que a infância lhe proporcionou, recordando em devaneios os tormentos da infância pobre e
violenta, o que acaba levando-o à demência, sofrendo ataques de alucinação nos quais saía completamente
de si, como o que ocorre no final do conto.

Nota-se na turbulenta existência de Horácio, traços da vida do próprio Lima Barreto, não só na demência
de que também foi vítima o autor, mas sobretudo no relacionamento com o padrinho (o seu fora o Visconde
de Ouro Preto, pelo que recebeu o Nome de Afonso ), tal qual o de Horácio, frio e distante, tanto que
chegou a despertar a frase já expressa no início desta análise: “Os protetores são os piores tiranos.”

A Nova Califórnia

Personagens: Raimundo Flamel, Bastos (o boticário), Coronel Bentes, Tenente Carvalhais – Principais; e
Fabrício, Capitão Pelino, Cora, bêbado Belmiro e outros, secundários.

Espaço: Tubiacanga (RJ).

Narrado em 3ª Pessoa – onisciente, tem o seguinte enredo: Na primeira parte, um homem misterioso e
estranho chega a Tubiacanga, para curiosidade da cidade inteira, que acompanhava a ida diária do
carteiro à casa do forasteiro para a entrega da vasta correspondência que ele recebia. Logo as atenções
se voltaram exclusivamente para ele, com toda a cidade desejando conhecer o novo morador, saber o que
fazia, como e de que vivia, dentre outras amenidades. Mas o homem praticamente não saía de casa, e não
procurou estabelecer amizade com ninguém. Após Fabrício ter sido contratado para construir um forno na
sala de jantar do misterioso habitante, as visões passaram a ser negativas, com toda a cidade imaginando
ser ele um falsário, ou alguém pactuado com o diabo, a fazer experiências mirabolantes em sua casa
pestilenta. Coube a Bastos, dono da Botica e homem respeitado na cidade a mudança de ânimos e opiniões na
comunidade, dizendo ser possível que se tratasse de um químico, um cientista, que resolvera se instalar
em Tubiacanga para desfrutar da tranqüilidade do lugar para melhor desenvolver seus experimentos. Bastou
tal possibilidade para a cidade passar a adorar o visitante sem mesmo conhecê-lo, e para alguns, como o
Capitão Pelino, destilarem inveja por tamanha fama.

A segunda parte é curta, e revela o motivo da estada do forasteiro, chamado Raimundo Flamel, em
Tubiacanga. Ele procura Bastos e pede para demonstrar-lhe uma experiência que havia desenvolvido, mas
que ainda não poderia divulgar ao mundo científico, necessitando, por isso, que três testemunhas vissem
tal feito e testemunhassem a sua autoria. O detalhe significativo do trecho é que as pessoas que
acompanhariam a experiência deveriam ser honestas e de alta confiança, e Bastos tem enorme dificuldade
em encontrar os nomes, em clara ironia aos valores da sociedade, hipócrita e imoral. Ficou marcado para
o domingo a verificação do experimento e depois desse dia, Flamel desapareceu misteriosamente.

A terceira parte revela de que se tratava a experiência, ao mostrar a indignação da cidade com uma série
de crimes que insistia em se repetir, e que aumentava a revolta de todos na comunidade. Os ossos do
cemitério do sossego estavam sendo roubados, e algo assim atacava justamente dois dos pilares mais
sólidos da sociedade: a crença religiosa, e o respeito aos mortos. As pessoas resolvem fazer vigília no
cemitério para flagrar os criminosos, e após algumas falhas conseguem fazê-lo, matando um a pancadas e
deixando o outro a suspirar moribundo, e qual não foi o espanto de todos quando perceberam tratar-se do
Tenente Carvalhais e do Coronel Bentes, que ainda murmurava, e disse o nome do terceiro criminoso que
havia conseguido fugir. Perguntado acerca do motivo para tal desfeita com todos, o coronel disse que o
farmacêutico (o terceiro meliante) detinha uma fórmula capaz de transformar ossos humanos em ouro.

A multidão vai em peso à casa de Bastos, que consegue evitar o linchamento prometendo passar para o papel
todos os passos e etapas da experiência e entregar a todos na manhã seguinte. A noite foi um caos, uma
verdadeira barbárie no cemitério, com todos se engalfinhando por um punhado de ossos, havendo até
batalhas e homicídio na luta por uma porção maior. Pais reviravam túmulos de filhos, filhos de pais, em
uma maratona insana e desesperada movida pela cobiça e pela ambição desenfreadas. E enquanto as pessoas
guerreavam no cemitério, o farmacêutico Bastos fugia carregando seu segredo, e o bêbedo Belmiro se
extasiava, indiferente a tudo, com a cachaça que retirou do bar abandonado, ficando deitado, às margens
do rio Tubiacanga, tendo a lua como testemunha de que seu alcoolismo era, sem dúvida, o mais ameno dentre
todos os crimes da cidade.

O Homem que Sabia Javanês

Personagens: Castelo, Castro, Barão de Jacuecanga.

Espaço: Rio de Janeiro.

Narrado em 1ª pessoa (personagem) se desenrola da seguinte forma: Em uma confeitaria, o narrador Castelo
confessava ao amigo Castro algumas das aventuras e golpes que empreendeu na luta pela sobrevivência,
centrando seu relato no caso das aulas de Javanês que ministrou, mesmo desconhecendo o tal idioma, ao
Barão de Jacuecanga.

Na verdade um anúncio no jornal, convocando um professor de Javanês para ministrar algumas aulas
particulares interessou Castelo, que embora não soubesse o idioma sabia que o aluno também não o sabia,
bastando portanto um pouco de criatividade para ganhar um dinheiro fácil. Castelo passa em uma
biblioteca, consulta uma enciclopédia e coleta algumas informações sobre Java, e sobre o alfabeto lá
utilizado. O barão, velho e doente, desejava aprender javanês para ler um livro que lhe fora deixado pelo
pai, que o fez prometer que o leria antes de morrer, promessa esta que o pai também havia feito ao seu
pai, tendo, porém, deixado de cumprir. O livro traria a quem o lesse os segredos da felicidade. O Barão
faz este relato com os olhos banhados em lágrimas, mas nem assim, Castelo deixa de lado a idéia de
ensinar-lhe o que não sabia, em clara despreocupação com o outro e falta de escrúpulos.

Ao fim de alguns dias, o Barão desiste de aprender javanês e pede a Castelo que leia o livro para ele,
pois não estaria assim deixando de cumprir a promessa feita ao pai. O narrador inventava histórias que
encantavam o velho, que lhe cobria de presentes, aumentava o salário, enfim, iludia-se cada vez mais com
a capacidade de Castelo.

O Barão cuidou então de indicar Castelo para a Diplomacia, onde foi recebido com louvor e admiração.

Quando passava por entre as mesas da Secretaria de Estrangeiros, alguns cutucávamos outros dizendo
tratar-se do homem que sabia javanês, outros, invejosos e vis, diziam também saber algo importante que
com certeza ele não saberia. O caso é que acabou sendo designado a participar de um congresso de
Lingüística e começou a publicar artigos sobre a literatura javanesa em revistas e jornais do Brasil e
da Europa, sempre com grande êxito, embora confessasse tudo copiar de artigos e revistas. Continuou sua
carreira diplomática recebendo homenagens, não faltado aí nem mesmo o Presidente da República, que
também se rendeu aos conhecimentos do gênio notável.

A grande relevância do conto reside na crítica à falsa sabedoria, e até mesmo à sabedoria inútil, aquela
que é dominada e cultivada por uma meia dúzia de “sábios” que não partilham com mais ninguém,
comunicando-se em uma língua que somente eles dominam.

Um e Outro

Personagens: Lola, Freitas, José, Mercedes.

Espaço: Rio de Janeiro.

Narrado em 3ª pessoa onisciente, tem o seguinte enredo: retrata uma personagem leviana e materialista,
dissimulada e promíscua que sobreviveu da prostituição, após abandonar o marido por não mais suportar a
vida pobre e difícil do campo, e ganhou dinheiro, fez fortuna, vivendo agora uma vida de rainha, com
três criadas para lhe servir, móveis luxuosos e caros, uma casa ampla e confortável, enfim, uma estrutura
material muito bem constituída, tudo fruto dos anos de prostituição durante os quais deitava-se com
homens em troca dos benefícios que recebia, servindo como amante temporária a vários deles e retirando
deles aquilo que mais lhe importava: dinheiro.

Lola, a prostituta espanhola, era mãe de Mercedes e amante de Freitas, funcionário de uma casa comercial,
mas sua grande paixão era um chauffeur chamado José, que dirigia um carro preto imponente, que ao lado do
condutor, compunha o universo de fantasias de Lola. A ela nada importava além da condição adquirida,
mostrando seu perfil materialista e frio.

Lola costumava presentear o chauffeur com mimos adquiridos pelo dinheiro que Freitas lhe dava, mas acaba
se desencantando súbita e totalmente de José quando este lhe revela que não mais dirige o carro potente,
preto, imponente, lustrado e maravilhoso que com ele compunha as fantasias dela. Lola não conseguia
dissociar as duas imagens, tanto o carro sem ele não fazia sentido, quanto ele sem o carro não lhe dizia
nada. E após ouvir dele a notícia, deitou-se ainda uma última vez, por medo de ofender-lhe a dignidade de
homem, mas com a indiferença de quem perde completamente o gosto por aquele que lhe vai acariciar.

Temos neste conto, além da denúncia do materialismo vazio e estúpido revelado por Lola, a promiscuidade
da sociedade carioca e um pequeno mergulho no universo das fantasias e desejos espúrios, que
ironicamente, não fazia parte somente dos cortiços e vilas do Rio, mas também se fazia ouvir em
Copacabana, Botafogo e outro bairros requintados da cidade.

“Miss” Edith e seu Tio

Personagens: Mme. Barbosa, Mlle Irene, Angélica, Miss Edith, Mr. George Mac Nabs, Magalhães.

Espaço: Rio de Janeiro.

Narrado em 3ª pessoa – onisciente, tem o enredo: Mme Barbosa é proprietária da pensão familiar Boa vista,
e mãe de Mlle Irene. O retrato que o narrador nos apresenta das duas acentua fortemente os traços de
materialismo e interesse, que levam Irene, inclusive, a colecionar noivos, estudantes das mais variadas
profissões com os quais não conseguiu se unir definitivamente, acabando por estar noiva do funcionário
público Magalhães, burocrata mediano, perto do que sonhara para a sua vida, mas que, retirados os
contras, recebia bem e lhe respeitava.

A mãe não era diferente ambicionando sempre muito mais do que possuía ou poderia possuir. Eis que chega
à pensão um casal de ingleses que se apresentaram como tio e sobrinha, alugando dois quartos da pensão,
um próximo do outro.O tratamento dispensado aos demais hóspedes é modificado, com as atenções recaindo
agora somente sobre o casal de estrangeiros, que devem ser muito bem tratados, segundo pensa a dona da
pensão, para poderem falar bem do estabelecimento e trazer mais ingleses para ele, tudo na expectativa
de um lucro maior.

Após inúmeros exemplos de submissão e adoração aos ingleses, principalmente protagonizados pela empregada
Angélica, que desenvolveu verdadeira devoção por Miss Edith, surge a descoberta fatídica e frustrante.
Certa manhã, como fazia todos os dias, Angélica foi ao quarto de Miss Edith despertá-la e levar-lhe uma
xícara de chocolate quente, mas não a encontrou no quarto e se espantou por encontrara cama arrumada.
Lembrou-se logo de ter visto a porta do banheiro aberta, e que Miss também lá não estava. Tal foi seu
espanto quando saindo para o corredor e viu a inglesa saindo do quarto do tio em trajes menores.

Como o Homem Chegou

Personagens: Delegado Cunsono, Doutor Sili, Douto Melaço, Doutor Jati, Fernando, Doutor Barrado e outros.

Espaço:Rio de Janeiro e Manaus.

Narrado em 3ª pessoa, com intervenções irônicas em 1ª pessoa, o enredo se desenrola fazendo uma violenta
crítica à burocracia do serviço público e à ineficiência de seus funcionários, apontando um caso no qual
a inépcia de um Delegado e de seus auxiliares levou um inocente, que havia sido preso sob a acusação de
ser louco, viesse a falecer.

Um homem em Manaus, chamado Fernando foi acusado de demência por estudar astronomia e divulgar
conhecimentos misteriosos acerca dos astros, o que causou indignação ao Doutor Barrado, uma espécie de
referência intelectual do lugar, que se revoltou com a súbita aparição de alguém com a ousadia de pensar
e investigar. O trabalho de prendê-lo coube à equipe do Delegado Cunsono, que faz jus ao nome, e
designou alguns elementos que buscaram Fernando no Amazonas. Com a informação de que o demente era
perigoso e violento, ficou decidido que a prisão deveria ser efetuada em um carro forte, que traria o
homem sem riscos aos que o prenderiam.

Para chegar em Manaus operou-se uma verdadeira epopéia, com carro blindado afundando e sendo retirado da
água, sendo colocado no restaurante de um barco, até que enfim chegou ao destino. Após mais alguns
problemas de percurso, que aliás, sempre quando surgiam, levavam os auxiliares do delegado a enviar um
telegrama a ele, no Rio, pedindo orientação sobre como proceder, e este celeremente enviava a resposta,
para que somente após isso, o bloco seguisse rumo, com destino ao Rio de Janeiro. Ao fim de pouco mais de
dois anos de viagem, o carro chega ao Rio, com o prisioneiro morto. O detalhe é que os encarregados de
trazer Fernando, “o demente perigoso”, já algum tempo desconfiavam de que ele poderia estar morto, mas
não ousavam quebrar os procedimentos, que indicavam a incomunicabilidade do preso e seu encarceramento
total e constante. Dificilmente outro texto que procure denunciar a lentidão, a morosidade e a
incompetência da burocracia pública o fará com tamanha perfeição, e tampouco estenderá um processo por
tanto tempo quanto o visto neste conto.

Harakashy e as Escolas de Java

Personagens: o narrador, Harakashy, Doutor Karitschá Lanhi.

Espaço (fictício): Batávia, na ilha de Java.

Narrado em 1ª pessoa (personagem) este conto é na verdade uma sátira às escolas brasileiras e a nossa
Academia e Letras, metamorfoseadas nas respectivas instituições de Java, como já foi visto em O Homem
que Sabia Javanês
. Lima Barreto destila aqui todo o seu ressentimento, seu rancor e sua mágoa por ter
sido barrado na Academia e ter sofrido na Escola Politécnica, na qual estudou Engenharia sem conseguir,
contudo, a formatura.

Há críticas à ciência produzida em Java.

No conto há uma figura interessante que muito lembra Lima Barreto, pela trajetória de sua vida contada
pelo narrador. Trata-se do jovem Harakashy, que foi preterido pelas escolas de Java por não adequar-se
aos seus perfis.

Não é difícil perceber o caráter pessoal destas palavras, bem como as utilizadas em O Filho da
Gabriela
, revelando mais uma vez que o tom irônico de Lima Barreto, não poucas vezes, obedece a
impulsos de origem íntima, frutos da mágoa e da do sentimento e inferioridade que passou a sentir após a
seqüência de fatos negativos de sua vida pessoal.

Cló

Personagens: Isabel, Clódia (Cló), Dr. André, Dr. Maximiliano, Fred.

Espaço: Rio de Janeiro.

Narrado em 3ª pessoa onisciente, o conto retrata a decadência moral de uma família durante o carnaval no
Rio, tendo como centro a personagem Cló, filha do casal Isabel e Maximiliano, irmã de Fred, que procura
deliberadamente se insinuar para o Dr. André, um amigo da família que é casado. No entanto, o narrador
procura fazer demoradas descrições dos hábitos mundanos e lascivos da sociedade durante os festejos da
carne, na clara intenção de nos oferecer um retrato moral dessa sociedade, que certamente se confronta
com aquilo que publicam e normalmente as pessoas procuram demonstrar, emergindo então a idéia da
hipocrisia, da leviandade, e do falso moralismo que impera inabalável nos reinos familiares cariocas.
Em determinado momento, Doutor Maximiliano começa a reclamar das dificuldades da vida, principalmente
das financeiras, e o Doutor André lhe estende uma polpuda nota, que o primeiro recusa molemente aceitando
por fim após a insistência de André. Parece que o que liga André à casa de Maximiliano e Isabel é mesmo o
despudor explícito de Cló, que a ele se insinua com cada vez mais clareza, como nos revela o final, que
é, do ponto de vista da família melancólico.

Ao acabar, era com prazer especial, cheia de dengues nos olhos e na voz, com um longo gozo íntimo que
ela, sacudindo as ancas e pondo as mãos dobradas pelas costas na cintura, curvava-se para o Doutor André
e dizia vagamente:

Mi compra ioiô!

E repetia com mais volúpia, ainda uma vez:

Mi compra ioiô!

Adélia

Personagens: Adélia, Gertrudes e Giuseppe (seus pais), Dr. Castrioto (do dispensário).

Espaço: Rio de Janeiro.

O artifício empregado por Lima Barreto, criando um diálogo entre dois personagens cujos nomes sequer
aparecem, em que um procura convencer o outro de algo, e lhe conta a história que lemos como argumento.
Lemos uma história dentro de outra história, como aquelas bonecas de pano, que guardam dentro de si
inúmeras outras iguais, só que em tamanhos menores.

Este é um conto com forte carga social denunciativa, apontando os problemas do sistema de filantropia,
com base na crítica a um hábito que parecia ser comum para a época, de haver casamento das garotas
recolhidas à Casa de Expostos no dia de Santa Isabel. Duas pessoas conversam sobre o assunto e uma
procura comprovar para a outra o caráter negativo destas instituições, por protegerem as crianças que lá
chegam nos primeiros anos de vida, para depois lhes soltarem, sem nada que lhes assegure um futuro
garantido.

Para tentar convencer seu interlocutor, o personagem conta a história de Adélia, que fora deixada pelos
pais no dispensário (orfanato) e se casou no dia de Santa Isabel, sem amor ou nada com ele parecido. No
princípio a vida sexual ativa lhe animou e deu formas. Mas passados dois anos de casamento, o marido lhe
cai enfermo com uma tosse incurável da qual será vítima. Ela, insatisfeita com a vida de enfermeira de
alguém a quem ela não ama, acaba cedendo a um convite recebido, que é feito e aceito repetidas vezes
depois, até que Adélia adquire hábitos novos, aparece com novas roupas, sapatos e outros elementos de
vestuário.

Na verdade a mulher começou a se prostituir, ganhou dinheiro, presentes, comprou objetos e roupas mas
perto dos 30 anos começou a emagrecer, a definhar, a perder o viço e a beleza que lhe garantiam o
sustento, e acabou morrendo. Mas mesmo no período em que estava bem, em que era cobiçada e comercializava
seus amores, nunca perdeu o olhar vago e perdido que cultivou desde o início da vida, desde que foi
deixada na Casa de Expostos e que foi casada no dia de santa Isabel.

Lívia

Personagens Lívia e seus pais, Godofredo, Siqueira.

Espaço: Rio de Janeiro.

Narrado em 3ª pessoa onisciente, tem o seguinte enredo: Lívia é uma rapariga pobre e desarranjada, que já
teve inúmeros namoros mas nenhum resultou em casamento, e que fica em casa a arrumar, varrer, pegar
objetos para os outros, preparar o café da família, amesquinhada por uma vida medíocre e angustiada com
isso. Passa o dia alimentando-se de devaneios, nos quais consegue sua libertação da condição miserável em
que se encontra, sempre através de um bom partido, de um casamento que lhe redime e lhe garante boa
condição econômico-social. Seus delírios eram protagonizados ora por Godofredo, ora por Siqueira, mas
sempre recheados com fantasias luxuosas e requintadas, ambientados na Europa e com tudo mais que uma
mente sonhadora quer e deseja.

Trata-se de um conto curto, no qual repousa uma crítica contundente contra os casamentos arranjados, por
mera e pura conveniência, e destinados a solucionar problemas econômicos e alavancar socialmente as
pessoas.

Mágoa que Rala

Personagens: Dr. Mota Garção, Grauben, Lourenço.

Espaço: Rio de Janeiro.

O conto é dividido em duas partes bastante distintas, com a primeira servindo somente para ambientar as
ações, que serão narradas na segunda parte, e também para o narrador manifestar suas críticas e
denúncias, centradas especificamente na burguesia carioca.

Ainda na primeira parte, vem à tona o assassinato de uma mulher, uma alemã chamada Grauben, cujo corpo
foi encontrado no Jardim Botânico, ao lado de um punhal em que estava grafada a expressão: “Soy yo!” O
delegado encarregado do caso, Dr. Matos Garção fora nomeado por indicação, sem apresentar qualquer
indício da capacidade para ocupar o posto. O inquérito já havia se arrastado por várias semanas, muito
por obra da inépcia do delegado, até que um jovem, chamado Lourenço da Mota Orestes resolve ir delegacia
e confessar a autoria do homicídio. Com a apresentação voluntária do assassino o Delegado o encarcerou,
e convocou a Imprensa pra revelar o desfecho do caso, sem mesmo ter ouvido detalhadamente o réu confesso.
Todas as pessoas ouvidas em depoimento, umas mais outras menos, colaboraram na construção da ausência de
responsabilidade do jovem, o que contrastava com sua confissão, e cria um caso estranhíssimo para todos,
já que tudo indicava que o jovem não era culpado, menos sua confissão. Foi a Júri, mas ninguém, nem mesmo
o Promotor, tinha convicção da sua culpa, o que acabou levando, com certa facilidade até, a sua
absolvição. Contudo, o jovem ainda protestou contra a decisão do Júri, dizendo ser necessária a aplicação
de uma punição a uma pessoa como ele delituosa e vil. Um artigo publicado em uma pequena revista deu
conta de um caso análogo ocorrido na Alemanha, no qual um rapaz, tendo praticado um pequeno furto,
arrependeu-se por ter manchado o nome da família e maculado a imagem dos pais e assumiu a autoria de um
homicídio que não cometeu, com o intuito de aplacar a consciência.

Uma Vagabunda

Personagens: Frederico, Chaves, Alzira.

Espaço: Rio de Janeiro.

Novamente Lima Barreto utiliza o artifício do narrador que relata uma história que ouviu alguém contar a
uma terceira pessoa, apresentando uma 1ª pessoa em quase todo o texto, pra no final, ou em pequenas e
discretas passagens em seu interior, manifestar-se em 3ª pessoa.

Dois companheiros conversam em um bar, e Frederico resolve contar a Chaves a história de Alzira, uma
vagabunda que certa vez lhe pedira dinheiro emprestado, mais precisamente 5 mil-réis, após terem se
encontrado em uma bar. Logo após, vendo-o pagar a conta com um volumoso monte de cédulas, pediu-lhe mais
5 mil, que Frederico negou prontamente. Alzira indignou-se e lhe atirou os cinco mil que lhe haviam sido
emprestados no rosto de Frederico. No entanto, em a outra ocasião, Frederico, sujo, maltrapilho, vivendo
uma péssima fase, entra em um bar no qual Alzira está. Ela lhe cumprimenta educadamente e lhe oferece a
passagem do bonde. Frederico procurou negar, mas Alzira a ofereceu com tanta veemência que lhe foi
impossível recusar. O detalhe mais significativo é o choque da cena final com a idéia que faziam a
mulher, demonstrando a imperfeição dos juízos sem provas dos pré-conceitos.

Sua Excelência

Personagens: Ministro e cocheiro.

Espaço: Baile da Embaixada.

Narrado em 3ª pessoa onisciente, este é um conto diferenciado dos demais, sobretudo por seu caráter
psicológico e a variedade de interpretações que suscita. É notável, em sua temática a denúncia da vaidade,
o narcisismo, da autolatria manifestada pelo Ministro no início do conto, em que fica a repetir, para a
própria consciência, trechos do discurso que acabara de proferir. No mais, a interpretação a meu ver mais
clara é a de que o ministro entra em um estado de delírio, de transe, de devaneio, que o faz perder os
sentidos, e nesse delírio, ele vê a si mesmo descendo as mesmas escadarias que instantes atrás ele
descera, só que agora ele se sentia na pele de um reles cocheiro, perguntando a sua própria imagem se
queria o carro, como se o devaneio indicasse o caráter ambíguo da realidade e o fato de que a baixeza, a
inferioridade, a submissão também fazem parte do nosso mundo, da nossa realidade, e que, às vezes, as
pessoa poderiam passar pelos dois momentos, sentindo e sofrendo na pele com algo que sempre impeliu aos
outros.

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