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Os mortos estão no living, de Miguel Marvilla

by Lucas Gomes

Os mortos estão no living

, é o único livro de contos de Miguel Marvilla.
Foi escrito na década de 80, o que, no Brasil, significava a contraposição,
frente à euforia da abertura política, de um sentimento de ressaca, agravado
pelo acelerado processo de individualização que tanto marcou a década. Miguel
Marvilla chega a falar de um niilismo, que se traduz num reconhecimento de situações
intransponíveis, congeladas e sua superação, de forma pouco convencional, quase
inesperada.

Mais que falar da morte propriamente dita, o livro trabalha com a temática da
finitude: fim de um ciclo, de convenções, de liberdades, de relacionamentos
afetivos, de pequenas esperanças. Uma sucessão de pequenas “mortes” metafóricas,
mesmo quando tudo aponta para o início de uma nova etapa: “A noiva passa, de
carro, como para um enterro”, é a frase inicial do primeiro conto, “Três histórias”,
que sintetiza com bastante precisão o espírito dessa obra.

Como vimos, a temática da morte é uma freqüente em Os mortos estão no living.
A partir do conto-título, o autor confere ao tema variantes que vão desde o
delírio até cenas de comum realidade. A morte atua como redenção ou como punição,
e submete os personagens ao enfrentamento com a dor e com os mistérios que ela
acarreta. Em algumas histórias, a morte é pano de fundo para o exercício do
Realismo Fantástico, que torna corriqueiras as cenas absurdas.

Os dois volumes desta obra são:

1. Os mortos: Primeiro volume, enfeixando vinte e quatro contos se considerarmos
o primeiro deles como três.

2. Os outros: Segundo volume, com pouco mais de meia dúzia de contos.
O autor delimita, quer deixar bem claro seu tema. Ainda mais se considerarmos
a sugestiva antonímia: os outros só podem ser os vivos, aqueles, por imposição
natural, sujeitos à morte. É vida e é quase-morte e limiares da vida, e é morte,
com todo seu poder de aniquilamento, entrechocando todo o tempo nos contos de
Miguel Marvilla, viver e morrer

Os primeiros contos, reunidos num só, “Três histórias”, já instauram o cenário
lúgubre do resto do livro e apresentam o que vai se repetindo feito uma goteira
ácida até o último conto. É de morte que se trata, desde o princípio, morte
que se avizinha, que está no limiar de nossa consciência, morte de tudo e de
todos (parece uma visão dantesca de um tempo de atraso, descrença e aniquilamento
total), morte da fé, morte do ser, e, como bem ilustra outra vez Paulo Sodré,
os “textos desenham os cadáveres abstratos de nossa contemporaneidade.”

A obra tem pitadas de:

1. Perplexidade (“A gravidez é um estado masculino de desprezo. Nascer, fazer
nascer, são maneiras cômodas de não apresentar razões.” – Júlia D.: o banho);

2. Resignação (“…ouve-se um martelar de sinos e Mendelssohn. Selam seu destino.
Triste sina: não é um véu, mas mortalha, que a cabisbaixa carrega, presa.” –
Casamento);

3. Desejo (Deborah para o vampiro: “- Terá sido sua então a boca que senti sobre
os seios e suas as mãos que me desnudaram e seus os caninos que me romperam
a jugular, nas noites em que eu me julgava só? (…) Ah, e quanta doçura havia
em suas mãos e lábios em meus sonhos! Que foi feito dela? Trouxe-a consigo?”
– O vampiro, Deborah);

4. Imolação (“A noiva, (…) empunhada pelo pai circunspecto, adentra a igreja
e é entregue ao seu algoz. Nada lhe resta a fazer, senão calar-se e acomodar-se
aos destino que lhe reservaram.” – Três histórias);

5. Bem-aventurança: (“ajeitou, com gesto imperceptível e triste, os cabelos
deles, beijou a ambos carinhosamente e, ainda sem que notassem, sentou-se à
beira da cama onde estava o seu corpo e enjaulou-se em si mesma, acomodada em
sua condição de morta até o dia em que tivesse de levantar-se e passar o filme
dos cadáveres da família na memória de suas crianças.” – Os mortos estão no
living);

6. Imagens psicodélicas (“Uma borboleta atravessou o set e fez um pouso azul
na borda de um copo de cristal.” – O vampiro, Deborah);

7. Miríades de seios nus, imagens venéreas recorrentes (“Onde encontrar uma
vagina disponível?” – Fragmentos);

8. Aliterações (“São mais que várias em idade, sexo e solidão as crianças em
redor da fogueira e o cão, sedentos de carinho.” – Três histórias);

9. Sinestesias (“Um toca-discos manchava o ar com uma valsa de Strauss.” – Júlia
D.: o banho);

10. Desesperança (“Há nuvens, ninguém telefona, ninguém observa o luar incipiente,
ninguém acredita que” – O domínio).

Os mortos estão no living não é um livro de contos convencionais. Aqui,
o autor optou por enveredar por uma espécie de prosa poética com fartos recursos
oriundos da poesia (o “esteticismo caudaloso” de que fala Paulo Sodré, no posfácio
do volume): metáforas, aliteração, sinestesia, trocadilhos semânticos e sonoros,
recursos visuais (num texto, a palavra “estilhaços” literalmente se espatifa
pela página; noutro conto, a palavra “carcomidas” é propositalmente “apagada”
em algumas partes). Segundo Marvilla, a prioridade é muito mais a construção
de uma imagem, a construção do sentido, do que o ato de contar uma história.
Quando a gente embarca no clima do texto, é hora da estória se estilhaçar: e
qualquer parentesco com a experiência da leitura de poesia aqui é totalmente
intencional.

Talvez por isso, alguns textos, apesar de curtos, soem árduos ao leitor desavisado.
Principalmente se levarmos em consideração o tom de farsa assumido pelo livro
todo.

No conto “O vampiro, Deborah”, uma borboleta “atravessa o set”, revelando toda
a encenação, anunciada antes por pequenas pistas: “Parece poesia? É poesia”
(o conto foi todo construído a partir de trechos de cartas de amor, o que explica
quase tudo). Miguel ainda ressalta a profusão de citações aparentemente pedantes
como elementos de não-naturalização narrativa.

Curiosamente, os dois textos mais impressionantes do livro, são menos calcados
nessa prosa poética, abrindo espaço para um interessantíssimo desenvolvimento
da narrativa: em “Maria, Clara, Lia, Suzana”, cada uma das ex-mulheres é simbolicamente
arremessada pela janela, num expurgo de memórias dolorosas que se traduz numa
impactante imagem, a chuva de cadáveres que incomoda a vizinhança; já no conto
que dá título ao livro, Os mortos estão no living, em que uma dona-de-casa
percebe que finalmente falecera, ainda que tentasse continuar no desempenho
de suas funções cotidianas, o sentimento que se espalha pelo leitor é de um
doce estarrecimento.

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