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Os sinos da agonia, de Autran Dourado

by Lucas Gomes

A história de Malvina e Gaspar, que se passa no fausto da Vila Rica
do século XVIII, fez com que Os sinos da agonia, obra lançada
em 1974, de Autran Durado, fosse considerada, por um lado, um romance histórico
e, por outro, uma metáfora da situação política
do Brasil sob a ditadura. Mas Autran Dourado estava, no entanto, menos preocupado
com a recriação romanesca de uma época ou com o simbolismo
social ao se dedicar, em um ano e meio de elaboração, a um exercício
de estilo original que faz dialogar o universo barroco mineiro com a tragédia
grega.

Do primeiro, ele toma a ambientação histórico-social e,
também, a caracterização dos personagens. Bela, pobre e
ambiciosa numa sociedade próspera que já conhece seus primeiros
momentos de decadência, a jovem Malvina vê no casamento uma saída
para a vida sem horizontes na casa paterna. Porém, a união com
o velho e poderoso João Diogo Galvão vai representar menos redenção
do que danação a partir do momento em que ela se apaixona pelo
enteado, Gaspar.

Da tragédia clássica vêm os arquétipos deste amor
incestuoso: Malvina é, como afirma o próprio Autran, uma recriação
de Fedra, personagem-título da tragédia de Eurípedes que
também foi narrada por Racine. Prosseguindo neste paralelo, Gaspar é
Hipólito e João Diogo, Teseu. “Os mitos da Antiguidade
Clássica continuam existindo na medida em que, se você afasta um
mito da sua vida, o lugar dele não é ocupado pela razão,
mas sim substituído por outro mito”, afirmou Autran ao justificar
sua opção estética.

A narrativa é dividida em quatro “blocos” — “A
farsa”, “Filha do sol, da luz”, “O destino do passado”
e “A roda do tempo” — que correspondem aos atos do teatro grego.
O desenvolvimento, marcado pela morte como fim inexorável, é pontuado
pelo dobrar dos sinos — o que na Minas Gerais da época obedecia
a todo um código, sendo possível interpretar os fatos a partir
de seus toques.

“Os sinos da agonia como título de uma obra simbólica é
também simbólico”, afirma Autran, explicando, ainda, que
o toque da agonia consistia em sete pancadas longas e pausadas, para que todos
pudessem rezar pelo condenado em seus intervalos. Uma lenta aproximação
com a morte que pode ser a de seus personagens e, também, de todo um
intenso período da História do Brasil.

Através da temática de amores impossíveis, Autran Dourado,
recria a Vila Rica no iminente declínio do ciclo do ouro, trazendo informações
históricas sobre o peso e crueldade da escravidão, a estupidez
da nobreza racista, a corrupção do Estado e ainda, alusões
a Inconfidência Mineira.

A mesma história é contada sobre três perspectivas diferentes,
o que obviamente proporciona o prazeroso preenchimento dos espaços deixados,
revelando a habilidade técnica do autor ao transformar uma cena já
conhecida em algo novo e misterioso. Parece que através das palavras,
somos galinhas guiadas através de grãos de milho a uma mesma armadilha,
pelo mesmo terreiro, mas por caminhos diferentes.

No primeiro momento, quando a história é construída sobre
a perspectiva de Januário, através de vozes e recordações
guardadas na sua memória, a narrativa exige cautela. Segue ligeira e
por isso, muitas vezes precisei parar, pensar como que tinha chegado naquele
assunto, e voltar algumas páginas com a curiosidade de descobrir o caminho
traçado. É como tentar recompor um sonho, uma conversa com amigos
que sai constantemente dos trilhos ou tentar relembrar o caminho de volta após
caminhar por uma cidade desconhecida sobre o fascínio da descoberta.
As mudanças de assunto são frequentes e repentinas, sem qualquer
aviso, o tempo presente mistura-se com lembranças, com acontecimentos
do passado, delírios, sonhos e previsões futuristas.

A partir do segundo capítulo a narrativa parece ser mais fácil.
A história segue linear, existem subdivisões de capítulo
que servem para o leitor respirar e já se sentir avisado quanto as possíveis
mudanças na narrativa. Porém a técnica continua a mesma,
só que desta vez, passa-se quase que imperceptível e não
há o sentimento de estar perdido. No segundo capítulo, Autran
nos dá uma importante pista quanto a sua técnica: “Passado
e futuro eram uma só memória, pasto do tempo presente” (p.
171). No terceiro, existe um momento em que, aparentemente, a narrativa tem
ares de incoerência, onde, utilizando-se de uma conversa com o mito de
Tirésias, o dedo do autor fica explícito, na tentativa de aprofundar
e explicar uma vontade de compreensão. Aparentemente.

Em Os sinos da agonia, Autran Dourado construiu uma perfeita rede
de proteção que inspira confiança a qualquer trapezista,
um impecável sistema de segurança em que as supostas falhas se
transformam em qualidade. Usando o artifício da história ser contada
através dos burburinhos e fofocas da cidade de Vila Rica, surge a liberdade
para a democratização de informações que seriam
restritas a apenas um personagem. Por mais de uma vez, Autran avisa “As
paredes têm ouvido”.

Para compreender as minúcias da trama é interessante questionar
o título da obra. A forte presença dos sinos na obra, inclusive,
no título do romance nos faz pensar sobre o que este símbolo pode
representar dentro dela. Os sinos, de acordo com a simbologia, são comumente
representativos de alegria e liberdade. O formato do sino está ligado
à câmara do paraíso. O movimento do pêndulo do sino
pode representar os extremos do bem e do mal, morte e imortalidade. Mas eles
também integram os rituais de exorcismo e excomunhão, assim como
o mecanismo para chamar à aglomeração. Seu som é
símbolo de poder criativo, mas também pode ser um chamado às
armas. É o símbolo de enunciação de um momento decisivo.
Pode ser o sinal do inconsciente para lhe preparar para o que está
acontecendo. Em todos os momentos decisivos da trama os sinos estão badalando:

De novo os sinos” (DOURADO, p. 138, 1991).

Uma, disse Malvina ao ouvir a primeira pancada do sino-mestre do
Carmo
” (DOURADO, p. 173, 1991).

Malditos sinos, que antes apenas a enervavam, enlouqueciam um cristão
(DOURADO, p. 173, 1991).

O sino batia longe, tão longe que (…)” (DOURADO,
p. 193, 1991).

Eles estão prenunciando o momento derradeiro dos personagens. Os personagens
estão sempre oscilando entre o bem e o mal, entre o moral e o imoral.
Aliás, a expressão que aparece no título do livro “sinos
da agonia” é explicada na própria narrativa, são
as badaladas tradicionais do local quando uma pessoa está agonizando.

Os sinos da agonia só param de badalar quando a pessoa morre:

Reza, pediam reza. Alguém que ia morrer, não morria.
Carecia de reza, muita reza. Não ela, alguém agonizando

(DOURADO, p. 173, 1991).

São as sete pancadas da agonia, disse ela” (DOURADO,
p. 203, 1991).

Não podemos ignorar estes sinos como metáfora da agonia dos personagens
da trama. Todos eles vivem uma agonia, algo de muito grave está para
acontecer. No caso de Malvina, sua agonia a levará, de fato, à
morte.

Apesar de existirem muitos estudos sobre o caráter trágico da
obra e suas relações com o mito, podemos levantar um caráter
romântico no texto estudado. Se analisarmos os episódios envolvendo
Malvina e seu amor, que acaba se tornando doentio e o fato de Malvina ter cometido
o suicídio em razão das recusas de Gaspar, somos levados a associar
à obra um caráter romântico. O romântico julga-se
centro do universo e o ego representa seu grande pólo de interesse, a
ponto de ver, na natureza e no universo, meras projeções de seu
mundo interior:

Vaidosa e interessada em si mesma” (DOURADO, p. 98, 1991).

O Romantismo, além de outras coisas, é um estado de espírito.
E, nesse sentido, há resquícios românticos nas mais variadas
obras em toda a Literatura Brasileira. Nossa Literatura sofreu forte influência
deste movimento que pode ser percebido até os dias de hoje. No amor romântico
o ser amado é parte de sua subjetividade, para que se possa viver deve-se
preservar sua integridade, portanto se não é correspondido, o
romântico está incompleto e prefere a morte. Quando Malvina percebe
que apesar de suas armações não receberá o amor
de Gaspar ela se mata:

por que aquele primeiro encontro, o amor, que ela julgava uma dádiva
de repente caída do céu, era um destino há muito traçado,
do qual não podia fugir
” (DOURADO, p. 186, 1991).

Siá Malvina se matou” (DOURADO, p. 205, 1991).

É a idéia romântica da morte como redenção,
como liberdade para seus sofrimentos. A morte para os românticos não
é um mal, torna-se salvação, uma maneira de libertar-se.
Neste sentido Malvina se liberta de seu destino trágico em que ela buscou
o amor e encontrou a desgraça.

Porém, na obra há uma insistência nesta questão
do destino que para românticos não tem relevância, está
mais associada ao trágico, mas não podemos deixar de perceber
que há uma idéia romântica na obra, apesar de não
ser tão forte quanto a trágica, já amplamente discutida
em trabalhos acadêmicos. Marisa Silva e Vicente de Oliveira entendem a
obra como “romântica”, no sentido de corresponder à
mistura de gêneros, em razão da liberdade que os românticos
pregavam e por dar voz aos personagens mais humildes como Inácia e Isidoro.

Aliás, o caráter trágico citado acima é um fator
relevante para a compreensão da obra, além de sua relação
com o mito de Fedra. Sobre este tópico existem muitos estudos, dentre
eles, o texto de Maria Lúcia Lepecki, consultado para a realização
deste trabalho. Lepecki aponta as relações desse romance com o
mito de Fedra (LEPECKI, 1976), em sua abordagem, aponta as relações
de certos personagens com as Parcas, Tirésias, Fedra e Hipólito.
Na verdade, segundo outros estudiosos da obra, Marisa Corrêa Silva e Vicente
Soares de Oliveira, já referidos acima, todas as personagens pertencentes
ao núcleo aristocrático, que
corresponde à elite da época, da narrativa podem ser relacionados
ao mito de Fedra e seus antecedentes. O autor Autran Dourado, em entrevistas
e em seu livro sobre sua criação, explica que boa parte da trama
do romance foi originada no mito de Fedra.

Foco narrativo

A narrativa é dividida em quatro blocos. Cada bloco possui um foco
narrativo distinto, apesar de o narrador ser sempre o mesmo e contar a história
em terceira pessoa. O foco da narrativa é, na primeira parte do texto,
centrado na figura de Januário, mameluco e bastardo, filho de um rico
fazendeiro com uma escrava. Esta bloco conta a paixão de Januário
por Malvina e sua fuga após assassinar o marido da amada:

Bugre, diziam quando queriam ofendê- lo. E ele saltava como
uma onça pintada (…)
” (DOURADO, p. 19, 1991).

Bugre e bastardo, filho das ervas, as duas chagas de sua alma
(DOURADO, p. 19, 1991).

Alguma coisa devia ter acontecido depois que ela lhe mandou a carta,
pensava. Ela não pode foi avisar. Alguém o tinha visto, foi delatar.
Como foi que souberam que ele ia voltar?
” (DOURADO, p. 23, 1991).

Neste bloco fica clara a paixão de Januário por Malvina e seu
sentimento de inferioridade em relação a ela e aos demais aristocratas,
pelo fato de ele ser um mestiço, filho bastardo de um homem de posses.
Aqui ficamos sabendo as fraquezas de Januário, e entenderemos como Malvina
consegue manipulá-lo, apesar de o personagem ser apresentado como um
homem rude, ele se deixa enredar por aquela que ele chama inicialmente de filha
do sol.

No segundo bloco, o foco é centrado inicialmente em João Diogo
Galvão e em seu filho Gaspar; depois, e mais profundamente, em Malvina:

Assim, apesar dos seus vinte anos, Malvina era paciente tecedeira,
Mariana virava uma sombra perto dela
” (DOURADO, p. 76, 1991).

Vendo os olhos da filha mais nova, dona Vicentina disse não
é pra você, Malvina. É a vez de Mariana (…)

(DOURADO, p. 80, 1991).

Na passagem abaixo temos o primeiro encontro de Malvina e seu enteado, a partir
de seu ponto de vista:

Gaspar saiu do quarto. Malvina estava na sala, junto da janela, quando
ele surgiu na porta do corredor. Não entrou logo, e os seus olhos percorreram
atentos tudo ao redor (…) Rente à cortina, Malvina procurou se esconder,
assim podia vê-lo sem ser vista. (…) Tão interessada em saber
se ele aprovava a sua obra, não pode reparar como era mesmo o filho de
seu marido, teria enorme tristeza se ele não aprovasse. (…) E mesmo
trêmula e atônita conseguiu avançar para ele, lhe segurou
o braço e imperiosa disse não!
(DOURADO, p. 98-100, 1991).

Nesta passagem percebemos que a vaidade de Malvina é que comanda seus
atos, ela queria ser aprovada, podemos até supor que ela tentaria seduzi-lo
apenas para alimentar seu ego. Este pequeno trecho já nos faz compreender
um pouco mais acerca da personagem. O mesmo episódio será contado
sob o ponto de vista de Gaspar na bloco seguinte. A segunda bloco narra
ainda o casamento de Malvina com João Diogo realizado por interesse,
principalmente da parte dela que queria sair da pobreza:

Não ela não moraria por muito tempo naquela casa acachapada
e terreira, sem comodidades, com a nudez dos pobres
” (DOURADO, p.
82, 1991), são narrados também os antecedentes das duas famílias;
o amor de Malvina pelo enteado assim que o conhece; as armações
da moça para persuadir Januário a
cometer o crime. Aqui conhecemos a índole de Malvina, pois percebemos
que ela planeja todos os passos que dá, tendo seduzido João Diogo
intencionalmente a fim de “roubá-lo” da irmã, que
era sua prometida inicialmente. Na página 76, o narrador se refere à
Malvina como “paciente tecedeira”, o que de fato percebemos que
ela é, pois cada atitude que toma, o faz com interesse.

No terceiro bloco o foco volta a se aproximar de Gaspar, recontando os meses
passados enquanto João Diogo era vivo, o encantamento do enteado pela
madrasta, sua recusa em agir contra seus princípios, seu conflito interior
ao perceber que Malvina estava apaixonada por ele e sua decisão de se
afastar da madrasta após a morte do pai. Na passagem abaixo temos o episódio
em que Gaspar e Malvina se vêem pela primeira vez, contado na perspectiva
dele:

Uma cortina se moveu e ele disse é o vento, não viu
ninguém. Assim sozinho podia ver a sala a vontade (…) Ela tinha gosto
não podia nega r. (…) Súbito aquele grito. Ela disse não!
e a mão lhe apertando o braço, segurando-o
” (DOURADO,
p. 155-158,1991).

Neste bloco, temos mais detalhadamente o ponto de vista de Gaspar, conhecemos
sua índole, e seu conflito ao perceber que está se apaixonando
pela esposa de seu pai.

No quarto bloco, o foco segue inicialmente em Malvina, em seu desespero, a
paixão não correspondida que a leva à loucura; depois,
Gaspar, acompanhando as últimas maquinações da madrasta,
que comete suicídio e acusa a si própria e ao enteado pela morte
do marido, remetendo uma carta de despedida ao Capitão-General; o foco
passa por Isidoro, escravo de Januário, que acompanha seu senhor na volta
a Vila Rica; e por fim o foco volta a fechar em Januário, em seus últimos
momentos, morto num confronto com a polícia:

Mesmo acordado, Januário continuava de olhos fechados (…) As
coisas agora faziam sentido. As ligações, as raízes subterrâneas
vinham à tona. Tudo aquilo que não pode, não quis ver.
(…) Malvina é que tinha a ponta dos fios, a agulha, ele era um joguete
nas mãos dela
(DOURADO, p. 211, 1991).

Só então neste momento é que Januário se dá
conta de que fora usado por Malvina e a vê, não mais como filha
do sol, e sim filha do demônio, ou seja, seu ponto de vista dos acontecimentos
se modifica e ele percebe coisas que inicialmente não se dera por conta.

Existem duas questões importantes a serem elencadas sobre o discurso
de Autran Dourado, a primeira questão é o ponto de vista que se
modifica ao longo do texto através do foco dado aos personagens, a segunda
questão é o posicionamento do narrador. Em todas as blocos existe
uma espécie de simbiose entre o narrador e o personagem, a ponto de em
alguns momentos não podermos distingui- los. Apesar das marcas do discurso
indireto, e da predominância da narração em terceira pessoa,
o texto pode ser lido transposto para a primeira. Este recurso narrativo alternando
os pontos de vista a partir de um narrador “colado” às personagens
é ideal para o efeito que o autor quer criar, dando a sensação
de que estamos vendo a história acontecer. A presença de um narrador
discreto que por meio do contar e do mostrar equilibrados, dá a impressão
de que a história se conta a si própria. Daí o desaparecimento
estratégico do narrador, disfarçado numa terceira pessoa que se
confunde com a primeira. Podemos dizer que em Os Sinos da Agonia
uma visão com, o narrador sabe apenas aquilo que a personagem sabe, vê
e sente. Tal recurso é comumente utilizado em romances em que se quer
criar um discurso de monólogo interior e fluxo de consciência.
O que podemos dizer que ocorre na obra analisada. Os fatos não são
contados de maneira objetiva, mas sim a partir da subjetividade do personagem,
através de sua
consciência, do seu íntimo, dos seus sentimentos. Daí uma
maior intensidade dramática neste tipo de narração. Num
romance com estas características, até mesmo o ambiente é
modificado pela interioridade da personagem. Se seu íntimo está
inquieto, o ambiente se mostra inquieto, se está alegre, nos parece alegre,
afinal os fatos são contados a partir do seu ponto de vista, e o seu
íntimo se relaciona com o mundo externo. Na obra em questão podemos
observar essa influência do ambiente na disposição anímica
das personagens em vários momentos.

Destacamos um em que Januário observa a cidade de Vila Rica do alto
da Serra do Ouro Preto, enquanto reflete sobre seu destino, suas atitudes. A
lembrança de Malvina influencia o modo como Januário vê
o ambiente ao seu redor:

(…) Mesmo assim instintivamente se encolheu na sombra mais densa da
gameleira que um vento manso e frio começava a farfalhar. O farfalhar
seco e gasturoso das sedas e tafetás, quando ela se despia, de dentro
deles saltava, que mesmo de longe, afogado no tempo, ele podia ainda sentir
nas narinas, nas pontas dos dedos
(DOURADO, p. 42, 1991).

Quem fala em Os Sinos da Agonia é a própria personagem,
ou seja, é uma terceira pessoa que pode ser lida como primeira, como
se narrador e personagens estivessem enredados. O narrador não faz inferências,
apenas mostra o que o personagem está sentindo, como ele está
reagindo aos fatos em seu redor e por que esta agindo de tal forma: um narrador
discreto. Mas em Os Sinos da Agonia, o narrador não é
apenas discreto, ele está colado à personagem, refletindo suas
idéias. Na obra, o recurso da falsa terceira pessoa é fundamental
para a variação do ponto de vista e para esta estrutura composicional
da obra que o autor conseguiu criar, pois cada ponto de vista vai conduzindo
de maneira diferente o leitor ao desfecho. Ou seja, Dourado opta por utilizar
este tipo de narrador ou visão, a fim de conseguir este efeito de história
que conta a si mesma, de personagens que se apresentam a si próprios.
O personagem conduz a trama através de sua perspectiva no “labirinto”
do enredo que vai se construindo no desenrolar dos fatos.

É como se o narrador se retirasse da cena e deixasse que cada personagem
apresentasse seu próprio ponto de vista, sem que jamais uma interpretação
fosse dominante sobre as outras. É nesse jogo de vozes que surge a polifonia
do texto. Apesar de alguns episódios serem recontados de acordo com o
ponto de vista de cada personagem, a história não se torna repetitiva,
pois a cada bloco e, portanto, ponto de vista diferente, novas informações
são acrescentadas e o leitor vai “juntando as peças”
e montando o “quebracabeça”.

As vozes das personagens não formam uma unidade, mas, ao fornecerem
diversas maneiras de enxergar o conflito, formam a construção
estrutural de maneira composicional, o que nos leva a comparar a estrutura da
obra a um jogo de quebra-cabeças, ou então a um labirinto. O jogo
das vozes que compõem a narrativa forma um feixe de perspectivas através
da polifonia, de modo que não há verdades, apenas versões,
ou seja, temos diversas perspectivas da mesma trama, diferentes verdades de
acordo com o ponto de vista que acompanhamos. Cada versão é uma
nova história, uma nova realidade ficcional.

No quarto bloco são apresentadas simultaneamente os três pontos
de vistas principais, Januário, Gaspar e Malvina, ou perspectivas, formando
o que o autor chama de “roda do tempo”. Podemos dizer, então,
que são três interpretações dos mesmos fatos, ou
três aspectos distintos sobre a trama que se revelam no decurso da narrativa,
através da condução das personagens. E é através
deste narrador colado à personagem, praticamente alojado na consciência
do personagem fazendo o papel de refletor de suas idéias, que o leitor
de Dourado vai juntando os fatos e construindo a narrativa. O narrador não
emite opiniões, deixa que as personagens falem por si. E é isso
que nos faz compreender os motivos, interesses, a ação interna
de cada personagem.

Em Os Sinos da Agonia os eventos deixam de ser narrados e passam
a ser refletidos na consciência da personagem, de modo que o leitor visualiza
a realidade ficcional do ponto de vista de um personagem do romance, e não
do narrador, assim podemos dizer que o narrador de Dourado usou recursos com
a intenção de mostrar. O narrador ultrapassa a neutralidade e
se confunde com a personagem. Por isso, é que ao ler os fatos ocorridos
no passado percebemo-los como se fossem presente na nossa imaginação,
pois são “mostrados” por aqueles que melhor podem representar
o ponto de vista de quem vivencia a experiência, ou seja, o próprio
personagem. Os desejos secretos, os pensamentos íntimos da personagem
nos são revelados pelo estilo indireto livre, criado por Flaubert, que
entendia que o narrador na obra deveria estar presente, mas ser invisível.
Neste caso, é a própria personagem que apresenta seu pensamento,
mas a referência de terceira pessoa é mantida, em uma fusão
de vo zes entre narrador e personagem, que é o que acontece na obra analisada.
Muitas vezes esquecemos o narrador e lemos como se fosse o personagem vivendo
sua história, mas se olharmos atentamente o narrador está lá.

Percebemos que Dourado se utiliza de diversas correntes sobre o papel do narrador
e foco narrativo, que se convergem conseguindo criar a tensão necessária
para contar esta história. Pois, existem diferentes maneiras de se contar
uma história, e Dourado, como vimos, escolheu utilizar recursos para
que sua história se contasse por si só, através dos seus
personagens, conforme já falamos no decorrer deste texto. Além
disso, podemos classificar a obra analisada como um romance de cunho introspectivo,
pois com os recursos utilizados há uma preocupação com
a subjetividade, a interioridade de cada personagem, acompanhamos
muitas vezes o fluxo de consciência da personagem.

Convergência do tempo e memória

Como já citado, o romance Os Sinos da Agonia, é estruturado
em quatro blocos, ou capítulos, nos quais o narrador ausenta-se para
dar voz às personagens, que narram cada qual por sua vez, suas lembranças,
sua visão e suas expectativas em relação ao mesmo fato,
à mesma história: a morte de João Diogo Galvão,
rico proprietário de terras, nas Minas Gerais do século XVIII.
Malvina, esposa de João Diogo, trama o assassinato do marido para que
se tornem reais suas possibilidades de romance com o enteado Gaspar. Para tanto,
irá seduzir Januário, que iludido aceita colocar o plano em prática.
Os três primeiros blocos são destinados às versões
de Januário, Malvina e Gaspar, respectivamente. O quarto bloco, denominado
“A roda do tempo”, é destinado a apresentar simultaneamente
as percepções dos três personagens, e nele temos o encontro
de cada um com seu destino: a morte. É necessário acrescentar
que durante toda a obra há o badalar do sino, marca temporal do presente
da história, que não deixa os personagens esquecerem de suas dores
pela constante repetição das sete pancadas da agonia.

A primeira narrativa é inaugurada por Januário, que se encontra
escondido, próximo à cidade, fugido da polícia e à
espera de Malvina. Já na primeira página da obra, o autor nos
revela sua intenção de mesclar os tempos, refletidos e revelados
pelas consciências das personagens; as ações presentes na
memória e o badalar do sino, lembrando o personagem de sua agonia:

[…] ainda doía bulindo dentro dele, como ondas, ecos redondos
de volta das serras e quebradas, redobrando, de um sino-mestre tocado a uma
distância
infinita. Dentro dele na memória, agora, ainda, sempre.
Não agora de noite, antes: nos dias claros que a memória guardava.
Não agora que as batidas ritmadas, o tambor dos sapos e o retinir dos
grilos
enchiam os seus ouvidos. Muito antes, quando esticava os ouvidos, alargavaos,
buscando adivinhar, reconhecer, ouvir o que aqueles sinos diziam.
(DOURADO,
1981, p.15).

Januário revela-nos fatos, lembranças de sua infância,
os acontecimentos que envolvem a morte de João Diogo Galvão e
sua situação atual, “preso àquela cidade, àquela
rua, àquela casa, àquela mulher de fogo que o seu coração
guardava, sufocando-o” e sabendo-se condenado à morte, “como
um destino de que ele não podia se afastar, de uma sina de que ele não
podia fugir.”

Isso mistura-se em sua consciência e ele perde a noção
real das coisas, tudo é confuso para ele, pois fatos passados, acontecimentos
futuros e sensações físicas do presente fundem-se.

Autran Dourado trabalha os tempos de forma maleável, convergente, sem
limites entre passado, presente e futuro.

Januário, atormentado pela confusão temporal e pelo futuro incerto,
revela-nos uma visão limitada, fragmentária dos acontecimentos,
é necessário conhecer as outras versões.

Malvina inaugura o segundo bloco, intitulado “Filha do sol, da luz”,
revelando-nos que possuía uma “memória do futuro”.
Desde que se descobre apaixonada por Gaspar, procura passar a maior parte do
tempo ao lado dele, para depois reviver esses momentos, que são consolos
para sua alma atormentada:

Mais tarde, sozinha na solidão do seu quarto, repassou mil vezes
aquele instante. Para gravar bem e depois se lembrar e sonhar. No sonho avançava
e prolongava no futuro, inventava o que deixou de acontecer. Depois se lembrava
do que inventou, era feito tivesse acontecido. Não queria esquecer nunca
os mínimos instantes, gestos e ruídos.
(DOURADO, 1981, p.110).

Malvina não se conforma apenas em relembrar breves instantes vividos,
sonhados ou desejados, ela quer realizá-los, vivê-los no momento
presente; por isso trama a morte do marido, acreditando que dessa forma Gaspar
se renderia à paixão e ela teria suas expectativas realizadas.
Assim, projeta em uma memória futura todos os seus desejos; vivencia
um futuro que ela julga deter. Assim Malvina traz para seu presente aquilo que
passou e aquilo que ainda virá, fundindo-os e transferindo-os para o
leitor, que acompanha sua lenta agonia da espera.

O seu real é pura transformação, tempo transcorrendo,
mas submetido a uma duração interior. Seus desejos não
se realizam porque Gaspar, ao contrário dela, possuía um “Destino
do Passado”, está preso às lembranças da mãe,
recusa-se a viver no mundo que avança para o futuro. Ele também
se sente atormentado, lembranças, sensações e medos mesclam-se
em sua consciência, pois percebe o que lhe poderia acontecer.

No quarto bloco, “A Roda do Tempo”, tem-se uma espécie de
recorte de cada bloco anterior com o desfecho da história, já
anunciado no enredo: Malvina, inconformada com o resultado fracassado de seus
planos, encontra na morte a solução para sua agonia:

Agora era o engenho em disparada, o engenho que ela não soube
mais como parar. O engenho enlouquecido de um relógio. O relógio
puxava os sinos, trazia as coisas. As coisas aconteciam sem parar. Tudo lhe
escapava entre os dedos.
” (DOURADO, 1981, p.175).

Gaspar, arrastado pela sucessão de acontecimentos, certo de um erro
que não cometeu, aceita seu destino, que também é a morte:

“Tinha pensado todas as saídas, tudo que aconteceu e ainda
podia acontecer. Como sempre esperava, sempre esperou as coisas acontecerem.
Mas desta vez era diferente, sabia: não esperava passivamente, tinha
feito o que competia, decidido sobre o que não ia fazer.”
(DOURADO,
1981, p.191).

Januário, que de certa forma já se sentia morto, entrega-se
também ao seu destino:

“Faz tempo que ele estava morto”. (DOURADO, 1981, p.222).

 

Resumo

O romance conta a história de uma família de proprietários
de terras, os Galvão, na Minas Gerais do século XVIII. A história
não é contada em ordem cronológica, mas para facilitar
o entendimento, faremos um breve relato do enredo na ordem em que os fatos acontecem.
Valentim, pai de João Diogo, morre do coração ao receber
a notícia equivocada da morte do filho, que assim herda seus bens. João
Diogo se casa e tem um único filho, Gaspar, que é descrito como
um rapaz diferente por ser casto e gostar da solidão, isolando-se constantemente.
Viúvo de Ana Jacinta, João Diogo resolve se casar de novo e passa
a cortejar
Mariana, filha de uma família de Taubaté, gente vinda da “nobreza”,
porém falida e, portanto, o casamento seria conveniente. Os pais da prometida,
Dom João Quebedo Dias Bueno e D.

Vicentina, têm mais dois filhos; Donguinho, insano, caracterizado por
seu comportamento animalesco, fruto de uma relação extraconjugal
da mãe, vive preso num quarto; e Malvina, a caçula, linda, porém
sem escrúpulos. Malvina que é uma moça muito ambiciosa
resolve seduzir João Diogo e obtém sucesso em seu plano, em detrimento
da irmã mais velha, que vai para o convento. Inicialmente o casamento
é bem sucedido, João Diogo faz as vontades da jovem esposa e ela
cumpre suas obrigações matrimoniais. Mas, quando Gaspar volta
de uma de suas caçadas, os dois acabam se apaixonando. Porém,
em função do caráter idôneo de
Gaspar, Malvina sabe que precisará tirar João Diogo do caminho,
pois o filho jamais trairia o pai. Então formula o plano que levará
Diogo à morte. Engana e seduz o mameluco Januário e o convence
a matar o marido. Sua fiel mucama Inácia, que é também
sua confidente, facilita o adultério com Januário.

Com a morte de João Diogo, Januário tem a fuga facilitada pelo
pai, que lhe dá o escravo Isidoro para que o acompanhe. Januário
é enforcado em efígie, o que corresponde, simbolicamente, à
sua morte oficial. Assim, Malvina se vê livre de Januário e João
Diogo com o mesmo golpe, e revela seu amor ao enteado, que a afasta, ficando
noivo de Ana, que assim como Gaspar é apresentada como casta e de hábitos
irrepreensíveis. Levada à loucura em função de sua
paixão, Malvina se suicida ao perceber que o enteado não cederá
aos seus encantos, mas antes escreve à polícia, acusando Gaspar
e a si própria pela morte de João Diogo. Januário, que
é inocentado pela carta de Malvina, é morto num confronto com
a polícia, pois devido a sua morte em efígie, já estava
condenado pela sociedade. Além disso, o Capitão-General sugere
que Januário estaria envolvido em conspirações contra El-Rei,
refletindo o clima que precedia a Conjuração Mineira.

Créditos: Editora Rocco | Thiago Corrêa | Carine
Bier Rodrigues
, Letras – Licenciatura Plena pela Universidade do
Vale do Rio dos Sinos | Andréa Abadia, UFU

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