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Os sobreviventes (Conto), de Caio Fernando Abreu

by Lucas Gomes

Os sobreviventes

, que no encadeamento geral dos contos do livro é
um dos principais contos do livro Morangos
Mofados
, representa toda uma geração que saiu do desbunde
lisérgico da contracultura com aquele gosto amargo, angustiantemente
azedo, dos morangos de “Strawberry Fields” (música dos Beatles)
na garganta, agora já esverdeados de podres, e que não conseguiam
cuspi-los, nem os engolir de forma alguma. Morangos Mofados, nesse
sentido, se caracteriza por ser ao mesmo tempo um balanço desse percurso
e um rompimento com elementos que nele se fizeram presentes. O sujeito se depara
com emoções, realidades e ilusões já conhecidas
e que necessitam ser superadas. Ele se esforça pra ser um sobrevivente
ao esgotamento de uma realidade na qual as utopias não se concretizaram,
se revelaram sonhos e morreram antes de frutificar.

Neste conto pode-se observar um reflexo das perturbações e angústias
da juventude revolucionária, inconformada e transgressora da década
de 70. Entremeada ao espaço ideológico, há, também,
uma instância de revelação do ser humano, das descobertas
da sexualidade e da individualidade, de modo que o texto se adensa na matéria
existencial ao mostrar indivíduos solitários, suas sensações,
inseguranças, fobias, instabilidades, bem como suas frustrações
ideológicas. No conto Os sobreviventes, tais indivíduos são
representados por dois personagens amigos desde a juventude, ou seja, amigos
que partilharam dos mesmos processos de construção ideológica
e identitária. Estes personagens travam, ao longo do texto, um diálogo
permeado por uma linguagem descontraída e informal que revelará,
por um lado, o desolamento, a desesperança e o desgaste causados pela
falência do ideal de reformulação social e, por outro, os
anseios de realizações e conquistas que se firmam no contínuo
da existência, ou da resistência.

Este conto não é uma simples resposta aos estímulos de
repressão, violência e censura do sistema ditatorial brasileiro.
O texto ampara-se no contexto histórico,
trabalhando-o esteticamente e apresentando um resultado válido, já
que, além de sublinhar uma atitude crítica em relação
ao passado recente, cria uma experimentação estética, um
modo singular de narrar a história, deixando evidente uma preocupação
em encontrar uma forma narrativa capaz de explorar o social e o histórico,
afastando-se de uma literatura de cunho jornalístico ou descritivo.

A repressão política e moral é o tema do conto Os
sobreviventes
, texto incluído na primeira parte de Morangos
Mofados
, “O mofo”, a qual contém narrativas mais sombrias
e de caráter crítico elevado. Com uma alternância entre
vozes masculina e feminina que se confundem em primeira e terceira pessoa, o
conto é um diálogo entre dois idealistas do período ditatorial
que têm sua subjetividade atingida devido à experiência de
repressão e não concretização de ideais. Ao longo
de toda a narrativa, a crise dos sujeitos e a sensação de fracasso
diante das ilusões perdidas marcam uma visão de mundo desesperançada,
pois, afinal, os personagens são sobreviventes (e, nesse sentido, vale
ressaltar a pertinência do título do conto) de uma geração
que lutou contra o sistema sócio-político e cuja resistência
foi enfraquecendo com o tempo.

Durante uma fase problemática decorrente da repressão, em que
os companheiros debatem sobre suas angústias e seus ideais, o personagem
masculino tenta
uma reanimação para a companheira diante do desespero em que ela
se encontrava, como se percebe na sua fala:

[…] eu te olhava entupida de mandrix e babava soluçando perdi
minha alegria, anoiteci, roubaram minha esperança, enquanto você,
solitário & positivo, apertava meu ombro com a sua mão apesar
de tudo viril repetindo reage, companheira, reage, a causa precisa dessa tua
cabecinha privilegiada, teu potencial criativo, tua lucidez libertária,
bababá, bababá. As pessoas se transformavam em cadáveres
decompostos à minha frente, minha pele era triste e suja, as noites não
terminavam nunca, ninguém me tocava, mas eu reagi, despirei, voltei a
isso que dizem que é o normal, e cadê a causa, meu, cadê
a luta, cadê o po-ten-cial criativo?
(1995, p. 18).

A referência ao processo ditatorial é feita indiretamente, há
uma elaboração literária que torna possível a identificação
do tema e do contexto sócio-político a que
alude o texto. São expressões ligadas aos termos usados por militantes
da época, recursos lingüísticos e relatos de experiências
os procedimentos que nos direcionam à leitura do conto através
do contexto e são também eles que fazem da narrativa uma criação
artística, literatura. Por ser arte, e não simplesmente documento,
é que o exame de suas estratégias narrativas se faz importante,
pois, afinal, o sentido do texto deve ser alcançado com uma análise
que contemple forma e conteúdo.

O conto de Caio possui uma particularidade no que diz respeito ao foco narrativo.
Este aparece na voz de um eu e de um você – os personagens masculino
e
feminino – que estabelecem um diálogo desenfreado e também na
voz de uns outros, cuja fala é introduzida nos próprios discursos
dos personagens. O foco narrativo, assim constituído, direciona-nos a
observar três posicionamentos (o do personagem masculino, o do feminino
e o dos outros) que, na verdade, são entrecruzados para causar um efeito
estético, o que, aliado aos outros recursos do conto, contribui para
sua valorização. É nesse sentido que as reflexões
de Adorno sobre a posição do narrador podem ser associadas ao
conto, já que a narrativa é construída com personagens
que contam sua história através de seus próprios diálogos.
O trabalho de um narrador, no sentido tradicional, fica ausente no conto. Isso
também aponta para a suspensão do caráter objetivo da narrativa,
que se mostra voltada para a subjetividade e interessada pela participação
do leitor.

Fonte: Luana Teixeira Porto, Departamento de Letras, UFRS

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