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Paraísos artificiais, de Paulo Henriques Britto

by Lucas Gomes

O livro Paraísos artificiais, de Paulo Henriques Britto, publicado
em 2004, título poético, baudelairiano, reúne nove contos,
a maior parte escrita nos anos 70 e reescrita ao longo das últimas décadas.
Não há fio condutor, unidade temática ou estilística
nas narrativas.

A obra é resultado de obsessão e, também, depuração.
Britto diz ter escrito cerca de 30 contos durante o ano e meio (entre 1972 e
73) que passou em San Francisco, na Califórnia, estudando cinema. Quando
relidos, mais tarde, quase todos foram jogados fora. Os restantes começaram
a ser burilados.

Seja qual for o cenário – a cidade grande, o estrangeiro ou a provinciana
São Dimas -, os contos contidos neste livro capturam sempre situações
extremas – que podem ser uma doença sem nome ou um mero ônibus
errado – e encontros embaraçosos – quase sempre do protagonista consigo
mesmo.

Os pretextos podem ser mínimos, até mesmo banais, mas os impasses
que logo se criam não têm nada de trivial. Em contos desde já
antológicos, como “Uma visita”, “Um criminoso” e
“O primo”, a mão firme de Britto conduz seus heróis
e narradores a visões nuas e dolorosas de si mesmos: mais alheios, mais
tortuosos, mais covardes do que gostariam de ser.

Entre os contos está “Uma Doença”, em que o narrador
passa todo o tempo deitado, analisando curvas, manchas, rachaduras e acidentes
geográficos de paredes, tetos, chãos e até do seu lençol.

Os contos mais antigos são de uma época em que eu lia muito
[Samuel] Beckett [1906-1989]. “Uma Doença” é puro
Beckett
, diz Britto, classificando os primeiros textos do livro de “solipsistas”,
enquanto os finais são “mais convencionais”.

A imobilidade tipicamente beckettiana aparece também no pequeno conto-título,
que abre o livro, “Os paraísos artificiais” (que poderá
ler abaixo, na íntegra). O narrador mostra a um suposto personagem que
não há uma posição em que ele ficará duradouramente
confortável, seja deitado, sentado ou em pé. Só há
uma saída: Sentar-se na cadeira, pegar um lápis e uma folha
de papel e começar a escrever
.

A escrita como saída para a inércia se repete em “Uma Doença”.
Já em “Uma Visita”, é a narração que se
move de um personagem a outro, mas aquele que está na janela não
reage. A janela (indiscreta e paranóica) também é o cenário
de “Um Criminoso”, em que um homem narra o que vê de maneira
muito peculiar e exalta a imobilidade.

Essa lealdade das coisas sem vida me enternece profundamente, dá
quase vontade de chorar. A gente sempre pode confiar num escorredor ou num fogão
de quatro bocas ou num pano de prato, eles são absolutamente incapazes
de sacanear a gente. É mesmo um negócio comovente. O amor deve
ser mais ou menos isso
“, diz ele no conto.

“O Primo” e “Coisa de Família” nasceram como esboços
de romance nos anos 70, mas acabaram se transformando em contos. Em comum, eles
têm personagens para quem a convivência é (ou está)
nitidamente desconfortável, característica também de “O
Companheiro de Quarto”.

Acho que isso perpassa todo o livro por causa da situação
em que eu estava, morando sozinho num outro país
“, acredita
Britto.

O único conto escrito no século 21 foi “Os Sonetos Negros”,
o último e maior do livro. A história se passa na fictícia
São Dimas, cidade em que Britto situara oito contos nos anos 70, todos
jogados no lixo por seu perfeccionismo, para onde a jovem Tânia viaja
para pesquisar a obra da poeta morta Matilde Fortes.

Deliciosa farsa literária ao sabor de Henry James, “diário”
de uma viagem de iniciação, de um desencontro que põe em
xeque as certezas do politicamente correto e expõe um jovem estudante
às surpresas que a vida e a literatura não param de tramar.

A narrativa é recheada de ironias à vida acadêmica, como
a invenção de palavras pedantes e inúteis (“matildeana”,
“clitoricêntrica”) e a euforia desencadeada pela suspeita de
que a poeta poderia ter sido lésbica. Mistura enigma literário,
investigação crítica e trama misteriosa, quase sherlockiana.
Com a vantagem de que cada detalhe foi calculado com verossimilhança.

Vários personagens destes contos de Paulo Henriques Britto recorrem
ao ato da escrita para encontrar seus supostos paraísos.

Surpreendente é a capacidade que Paraísos Artificiais
tem de prender o leitor sem recorrer a uma escrita menos sofisticada. Mais surpreendente
ainda é a diversidade de temas abordados por Britto sem que a unidade
seja quebrada. Vai desde o clima policial em “O 921”, que mostra
um sujeito afogado em uma sucessão de equívocos, até o
intimismo de “O Companheiro de Quarto”, sobre a ambigüidade
de dois sujeitos que moram juntos e fingem ignorar a existência um do
outro, como já citado.

Trecho do livro Paraísos artificiais

OS PARAÍSOS ARTIFICIAIS (1º conto da obra)

Você está sentado numa cadeira. Você está sentado
nesta cadeira já faz bastante tempo. Você fica sentado nesta cadeira
durante muito tempo, diariamente. Você não conseguiria ficar parado
em pé por tanto tempo; logo você ficaria cansado, com dor nas pernas.
Também não conseguiria permanecer tanto tempo assim deitado na
cama, de cara para o teto; essa posição se tornaria cada vez mais
incômoda com o passar do tempo, até fazê-lo virar-se para
um lado – por exemplo, para o lado esquerdo; mas depois de alguns minutos de
bem-estar, seu corpo seria dominado pouco a pouco por uma sensação
de desconforto que gradualmente se transformaria numa idéia, de início
vaga, depois mais nítida, mais e mais, até cristalizar-se nas
palavras: “Esta posição é a menos confortável
que há”, e essas palavras em pouco tempo levariam a estas: “A
posição mais confortável de todas seria ficar virado para
a direita”. A idéia aos poucos se tornaria mais forte, até
sobrepujar a inércia natural do corpo, e nesse momento você se
viraria para o lado direito. Imediatamente uma sensação deliciosa
de prazer lhe invadiria o corpo, como se cada célula sua fosse uma boca
a proclamar: “Esta é verdadeiramente a mais confortável de
todas as posições”. A nova sensação, porém,
não perduraria por muito tempo; logo você seria obrigado a trocar
de posição mais uma vez, e todo o ciclo recomeçaria.
Mas quando você está sentado, sentado nesta cadeira, nada disso
acontece. Você é capaz de ficar sentado nela horas a fio, os olhos
fixos na parede em branco, sem pensar em nada, sem sentir nada além da
sensação de ter um corpo, de estar ali, sentado, olhando para
uma parede em branco, intensamente acordado. Você consegue ficar sentado
assim nesta cadeira por muito tempo sem nem mesmo trocar de posição;
e quando você se cansa da posição em que está, basta
mudar ligeiramente as posições relativas das pernas e dos pés
– por exemplo, colocar o pé direito em cima do esquerdo se antes o esquerdo
estava em cima do direito – e logo você restabelece o conforto com um
mínimo de esforço, sem ter que reestruturar a posição
geral do corpo, como aconteceria se você estivesse deitado. É bem
verdade que tais trocas de posição não proporcionam a sensação
quase orgástica que você experimenta quando, deitado na cama, depois
de passar muito tempo voltado para um lado, cada célula de seu corpo
é como uma boca clamando: “A melhor posição seria
estar virado para o outro lado”, e você finalmente se vira; na cadeira,
tudo o que acontece é uma leve sensação de desconforto
ser substituída por uma leve sensação de conforto. Porém
tudo é uma questão de escolha, e entre, de um lado, uma situação
em que breves períodos de intenso prazer se alternam com longos períodos
de conflito entre inércia e desconforto crescente, e, de outro, uma situação
em que perdura uma sensação mais ou menos constante de bem-estar,
sem grandes variações, você prefere a segunda. É
um direito seu; o corpo é seu.
Mas esta escolha acarreta certos problemas. Ao contrário da situação
da cama, que pelo menos promete o sono, a perda da consciência, o esquecimento
de tudo isso que tanto incomoda você, a da cadeira não guarda promessa
alguma: é necessário tentar perpetuá-la, fazê-la
durar o máximo de tempo possível; porém chega uma hora
em que suas pernas começam a sentir-se desconfortáveis em todas
as posições possíveis – que, afinal de contas, não
são tantas assim -, e mais cedo ou mais tarde você é obrigado
a levantar-se, tão desperto quanto antes. E este prolongamento da vigília
tem seus perigos. Pois ao levantar-se da cadeira você se dá conta
de que a porção de espaço que você ocupou durante
tanto tempo, sentado na cadeira, está agora impregnada da presença
física do seu corpo; ou seja, ela guarda agora alguns vestígios
de substancialidade que seu corpo deixou ali. Cada vez que você voltar
a passar pelo trecho do quarto onde estava a cadeira, durante o momento exato
em que seu corpo reocupar o espaço exato em que permaneceu por tanto
tempo, você vai sentir uma intensificação súbita
da sua existência, de seu próprio corpo – a sensação
física de recapturar um pedaço de você que já não
lhe pertence. Naturalmente, nada impede que você recoloque a cadeira no
mesmo lugar de antes, se sente nela e permaneça ali por quanto tempo
quiser, ou conseguir, e durante todo esse tempo goze a sensação
de estar na posse da sua materialidade perdida. Mas essa sensação
é ilusória, pois esses vestígios não fazem mais
parte de você: só podem ser ocupados provisoriamente, como uma
roupa que se veste. Assim que se cansar desse jogo e se levantar da cadeira,
você vai voltar a perdê-los: mais ainda, vai perder também
uma pequena porção adicional de sua matéria, mais vestígios
seus que vão ficar no ar, superpostos aos anteriores. Esses vestígios
mais cedo ou mais tarde vão se dispersar, com o movimento constante de
corpos no quarto, e se perder para sempre. Assim, você está constantemente
largando camadas sucessivas de seu ser, desintegrando-se a cada instante de
sua existência no espaço; e é por isso que você não
é eterno, não pode ser eterno, pelo mesmo motivo que um lápis
ou uma borracha não podem ser eternos.
Mas há uma maneira simples de alterar essa situação – quer
dizer, não alterá-la objetivamente, o que seria impossível,
e sim modificar o modo como você a vivencia (e como você só
sabe das situações o que vivencia delas, para todos os fins práticos
modificar sua percepção de uma situação é
a mesma coisa que modificar a situação em si): basta sentar-se
na cadeira, pegar um lápis e uma folha de papel, e começar a escrever.

Fonte: Boletins da FM-USP

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