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Parangolivro, de Aroldo Pereira

by Lucas Gomes

Parangolivro

, de Aroldo Pereira, dialoga intensamente com a obra de
dois importantes artistas plásticos brasileiros do século XX:
Hélio Oiticica e Raimundo Colares. A influência do primeiro é
explícita, sentida já no batismo do livro de Pereira, homenagem
à arte vestível dos parangolés, criaturas plásticas
gestadas para cobrir o humano, demasiado humano.

O título da obra, Parangolivro, já nos remete ao caráter
dialogal da poesia de Aroldo Pereira. Trata-se de um neologismo criado a partir
das palavras “parangolé” e “livro”, dois expressivos
objetos artísticos. Um parangolé-para-ornar-o-corpo: a dança,
o movimento. Um livro para “ler e descobrir”. Um parangolé
com suas cores e ritmos, oiticicano-brasileiro-subversivo. Um livro feito paisagem,
assim como o êxtase de um João Cabral diante da arte de um Juan
Miró.

Poesia e artes plásticas se vêem nesta obra totalmente entrelaçadas,
como também a música, o cinema e a performance. São inúmeras
as vozes que emergem de Parangolivro. Inúmeras as referências.
Isto nos sugere que o poeta, quando está criando, nunca está sozinho.
Aqui são evocados nomes-coisas, personagens reais, lugares-acontecimentos.
Um mundo se abre dentro desta tela-linguagem. Um mundo pictórico ao alcance
da mão que se lambuza com a tinta das palavras.

A obra é uma coletânea de poemas que abordam questões contemporâneas,
especialmente aquelas relativas a comportamentos, tensões culturais,
existenciais e poéticas.

Em suas performances, Aroldo não abre mão dos capotes oiticiquianos,
apenas uma das criações de Hélio, junto aos penetráveis,
ninhos e usáveis, berços da bifurcação do sensorial.

A poesia de Pereira é assumidamente colorida. O poema-título,
“Parangolivro”, dedicado a Adriana Calcanhotto, traz à tona
este cromatismo selvagem:

o azul não suporta o cavalo
mentir é arma de domínio
negro
pobre
poeta
uma chuva rala
uma
procissão
de indiferentes
o corpo permanece
no asfalto parangolivre
.

Há espaço, ainda, a um desbragado romantismo, máquina
humana, livre, leve e solta. É só sentir o poema “Pecado”,
pequeno e notável:

a cada instante que você
comete uma loucura
meu amor angustiado
arde nas chamas dos jornais.

A beleza e densidade da faina diária é resgatada naquele que,
talvez, seja o mais lindo poema do “Parangolivro” de Aroldo, embalado
pela simplicidade que já vem no título, “Cotidiano”,
onde o poeta vivifica o ser e estar no mundo:

meu filho Lucas
dorme
minha filha amanda
cuida do rosto
o gato zilon
ressona zzzz
no rádio rola
01 velho blues
em alguns momentos
viver é quase
sem mistério.

Parangolivro se constitui, sem dúvida, como um instrumento
de propagação de humanismo singular que vai se desenhando na trajetória
de Aroldo Pereira. Trata-se de um lírico disposto a apaziguar as tempestades
do mundo, um lírico no auge da globalização. Porém,
um lírico dotado de consciência crítica, ou, por que não
dizer, de consciência revolucionária.

negro pobre poeta
(…)
ler e descobrir
escrever bater com a cabeça
(…)
viver longo
cada instante
olhar os filhos sem fim
caminhar sob o sol
fugir do inferno de si

Os fragmentos acima fazem parte do poema-título que abre a coletânea
(“Parangolivro”). Através dele Pereira nos aponta, sobretudo
ao justapor as palavras “negro pobre poeta”, a necessidade de ressignificação
do modo como concebemos o mundo e a existência.

A poesia torna-se uma referência ética e étnica, um apelo
a favor das minorias sociais, uma possibilidade de orientação
da vida, um espelho por onde nos enxergamos. Assim, somos levados a refletir
o que T.S. Eliot chamaria de “função social da poesia”
numa conferência de 1943 do qual nos possibilita entender que vida e poesia
não se separam.

Aqui o poeta situa-se diante do seu ofício (“escrever bater com
a cabeça”), o ofício de sentir com a razão, de produzir
pensamento, de “fazer uma experiência pensante com a linguagem”
(Heidegger), de intervir com a sua prática poética na estética
gritante da realidade. A poesia, para ele, é algo que ontologicamente
encontra-se enraizada em sua condição humana. É o elo de
aproximação entre o Ser e as coisas, o homem e a vida (“fugir
do inferno de si”). Além disso, o exercício reflexivo presente
nos poemas que compõem Parangolivro associa-se a outros elementos
dissecados pelo poeta. A poesia é imagem-som-ruído-invenção-verdade.

Créditos parciais: Alécio Cunha, Caderno Cultura –
Jornal Hoje em Dia | Wagner Rocha

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