Home EstudosLivros Pedro Mico (Peça da obra A Revolta da Cachaça), de Antonio Callado

Pedro Mico (Peça da obra A Revolta da Cachaça), de Antonio Callado

by Lucas Gomes

Pedro Mico

é uma das mais importantes obras de Antonio Callado. Peça em um ato,
cuja ação transcorre em uma favela do Rio de Janeiro nos anos 50.

Pedro é um negro que tem a fama de ser muito bom na arte de enganar a polícia, que
o busca por crimes de roubo. Sua grande agilidade em escalar prédios altos é a razão
pela qual os jornalistas lhe deram o nome de Mico. Para essas ocasiões ele tem
sempre uma corda ao alcance da mão. Pedro não sabe ler e, como quer estar informado
sobre o que aparece nos jornais, sobretudo na seção policial, para inteirar-se se e
como falam dele, resolve seu problema com ajuda de mulheres que sabem ler e que lêem
para ele as principais notícias. A peça apresenta uma cena entre ele e sua mais
recente conquista, a prostituta Aparecida, a quem pede que lhe leia os jornais do dia,
como uma espécie de prova ou condição para que continuem a relação amorosa. Aparecida
faz isso muito bem, mas o encontro de trabalho e amor é interrompido pela ciumenta
Melize, vizinha de Pedro Mico no Morro da Catacumba, onde vivem e onde transcorre a
ação.

Melize não sabe ler, mas está tentando aprender para ver se conquista Pedro, por
quem tem uma grande paixão. Seu irmão, Zemelio, é admirador de Pedro e o avisa que
a polícia está vindo apanhá-lo. Melize, por ciúmes, o havia denunciado. Antes disso,
Aparecida havia contado a Pedro a história de Zumbi, o escravo, líder do quilombo de
Palmares.

Esse quilombo existiu no Brasil entre 1630 e 1695 na Serra da Barriga, hoje região de
Alagoas, estado do nordeste brasileiro de onde provém Aparecida. Zumbi se matou quando
a polícia venceu a resistência dos quilombolas e ia prendê-lo. Matou-se jogando-se num
abismo e se transformou no herói mítico para os negros e para o movimento negro.

Na peça de Callado, quando chega a polícia, para prender Pedro, Melize e Aparecida
saem para tentar detê-la, ganhando tempo. Quando voltam, a janela aberta e uma roupa
de Pedro pendurada em uma árvore levam a pensar que ele se houvesse matado, imitando
o gesto desesperado de Zumbi. A polícia desce para buscar o cadáver e as mulheres
ficam chorando. De repente, reaparece Pedro na janela, pois tudo havia sido um de seus
truques. Enquanto a polícia o busca lá em baixo do morro, ele escapa com Aparecida. No
horizonte fica a possibilidade de que um dia Pedro volte para guiar a conquista da
cidade pelos negros da favela, tal qual um Zumbi redivivo. É o sonho de Aparecida que
tenta vendê-lo a Pedro: “Você já pensou, Pedro, se a turma de todos os morros
combinasse para fazer uma descida dessa no mesmo dia?… Tu já pensou, Pedro?”, pergunta
Aparecida no final, que se fecha com a resposta enigmática de Pedro: “Não. Mas vou
pensar”.

Pedro Mico trata com leveza e humor de questões que encontram-se em nossa
conjuntura sócio-econômica atual: exclusão social, a condição do negro, a falta de
perspectiva de sobrevivência e a condição da mulher, diante da condição de objeto.

Como vimos, a peça Pedro Mico tem também como personagem principal um negro,
que, entretanto, não dispõe de dotes artísticos ou de conhecimentos históricos para
tentar compor a sua história, identificando-se com um herói negro a exemplo do ator
Ambrósio, da peça anterior, A Revolta da Cachaça. Quem detém a memória histórica,
desta vez, é a companheira de Pedro, Aparecida, a mulher que sabe ler o suficiente para
deslumbrar o iletrado marginal que, de forma narcisista, quer saber o que publicam a
seu respeito.

Em Pedro Mico nos defrontamos com a figura típica do malandro, um ser deslocado
das regras formais da estrutura social, fatalmente excluído do mercado de trabalho,
aliás definido como totalmente avesso ao trabalho e altamente individualizado, seja
pelo modo de andar, falar ou vestir-se. Pedro Mico não reproduz, entretanto, apenas
a sagacidade e os gestos peculiares do malandro assim concebido, vivendo de expedientes.
É possível verificar que se trata de um “autêntico marginal ou bandido”, categoria em
que se inscreve o nosso anti-herói “sem nenhum caráter”, correndo os riscos que a sua
marginalidade plena apresentam. A homologia com o personagem Zumbi fica por conta dos
dotes de habilidade e sagacidade exigidos pelo negro a ser escolhido para governar os
Palmares. Só que a sagacidade de Pedro Mico serve a outros fins: é o típico malandro,
favelado de morro carioca, que tenta escapar das batidas policiais e é, de fato, envolvido
com a criminalidade. O seu sucesso presumível junto às mulheres lhe garante uma precária
segurança emocional num espaço em que o malandro subsiste na corda bamba, literalmente
pendurado no morro, sempre em atitude defensiva.

A história de Zumbi dos Palmares que é contada pela prostituta Aparecida que acaba
motivando no companheiro a ardilosa escapada da polícia. Na cena final ambos tencionam,
efetivamente, fugir para a terra dos quilombos (Alagoas) indiciando, simbolicamente,
uma mudança de perspectiva para o negro alienado que preserva a imagem do crioulo
astucioso, prepotente, agressivo e sedutor.

Vimos que Aparecida é a porta-voz da História. Compete à mulher, também marginal, a
iniciativa de transmitir conhecimentos e gerar transformações. Os dados por ela
apresentados sobre a história de Zumbi são pouco precisos, relembra antigas lições
de escola, mas é o suficiente para dar a conhecer ao companheiro (e à platéia) a
história do herói que “fugiu com os outros negros que estavam cheios de apanhar
de chicote e de viver nuns barracos imundos e meteu o peito no mato até chegar no tal
morro dos Palmares. Lá não perdeu tempo com samba nem nada disso tudo que se faz hoje
não. Fez muro, botou lá uma fortaleza, cercou o morro e aquilo ficou feito um país.”
Não faltam, ainda, através da mesma personagem, informações sobre a expedição militar
que derrotou Zumbi, que “brigou feito um gato bravo, matou gente que não foi
brincadeira” e no final se atirou num precipício, seguindo a versão mítica mais
conhecida de Sebastião Rocha Pita, segundo a qual o herói perseguido se atira no
despenhadeiro no reduto do Macaco para fugir à escravidão. A perspectiva da morte
provoca, neste ponto, uma reação do companheiro: “Esse negócio de morrer no fim é
danado. Ganha quem fica vivo.”

A figura de Aparecida surpreende para a época, em se tratando de Brasil. Ela
representa a mulher nordestina, transladada para a capital do país, que se nega
a trabalhar como doméstica (destino da maioria), entregando-se à prostituição,
mas sem perder a ambição de sair dessa vida para uma melhor. Uma arma importante
para isso ela tem: sabe ler e tem uma compreensão maior que a do malandro das
contradições sociais em que está inserida.

A imagem da prostituta é positiva. A iniciativa é sempre dela. O seu saber vem
das letras mas também das lendas de sua terra, Alagoas. Ela é a portadora e
transmissora do mito de Zumbi, cuja história conta como se contam contos,
aumentando um ponto e associando-a ao seu amante: “Zumbi deve ter sido um crioulo
assim como você”.

A justaposição da história de Zumbi dos Palmares com o aparente epílogo de
Pedro Mico produz, como apontou a crítica na época, um choque de efeito dramático
extraordinário. A sabedoria de Aparecida, que lhe vem dessa combinação especial
entre letra e oralidade, é captada intuitivamente por Pedro Mico que a trata de
modo entre machista e cavalheiresco, proibindo Melize de desrespeitar a que agora
é sua mulher, o que parece redimi-la do passado.

Pedro Mico, negro, perseguido pela polícia, marginal de morro, vai transformando-se
numa réplica moderna do Zumbi, ou melhor dizendo, numa paródia deste. A sua fuga
juntamente com a companheira, para Alagoas, ou Bahia, conforme uma segunda decisão
de Aparecida, comandando a ação, contraria idéia enunciada pelo malandro segundo a qual
as mulheres servem para obedecer os homens. No desfecho da peça, após uma perseguição
policial, Pedro, não tem o mesmo destino de Ambrósio, assim como não tem o destino de
Zumbi. Influenciado pela história do herói palmarino, contada pela companheira, faz de
conta que se atira na ribanceira que dá para a janela do seu barraco, deixando um
casaco dependurado nela, como sinal de que havia precipitado no abismo. Quando os
policiais descem para conferir a suposta morte do perseguido, Pedro reaparece vitorioso,
saindo do seu esconderijo, debaixo do barraco, e se proclama, ironicamente: “-—
Zumbi, mas vivo.” O anúncio do anti-herói pode também ser interpretado como inversão
da história que virou lenda, segundo a qual o herói dos Palmares teria se atirado
num precipício, versão que a moderna historiografia não confirma. De qualquer forma
o personagem da peça de Callado se constrói como um Zumbi às avessas, que sobrevive
precariamente, confinado nas margens de uma sociedade em que a repressão policial não
é forma de combater a criminalidade, na medida em que a polícia acaba contaminada
igualmente pela corrupção, conforme o demonstra a peça.

Posts Relacionados